A apresentar mensagens correspondentes à consulta Allman Ndyoko ordenadas por relevância. Ordenar por data Mostrar todas as mensagens
A apresentar mensagens correspondentes à consulta Allman Ndyoko ordenadas por relevância. Ordenar por data Mostrar todas as mensagens

4/01/10

O FALSO ALARME - Um conto de Allman Ndyoko

:: Allman Ndyoco pode ser lido em "Contos e Poesias do Índico" ::
 
Estavámos no longínquo ano de 1984, se a memória não me induz ao erro. Quino, Chiquito, Bacar, Saíde e Aidar haviam passado toda manhã no recinto do Jardim Infantil, próximo ao Estádio Municipal, brincando “pega – pega” e pulando habilmente nos ramos das numerosas amendoeiras que assomavam naquele pequeno mundo infantil. Brincavam incansavelmente com a ânsia de matar o tempo para assistir a grande partida de futebol entre a Associação Desportiva de Pemba e Textáfrica, equipa fabril do planalto de Manica. Era uma partida importante do Campeonato Nacional de Futebol, e isto provava-se pela chegada massiva de adeptos de todos quadrantes da baia, no recinto desportivo. Nos três principais portões do estádio eram visíveis bichas infindáveis de adeptos que entravam para o interior, a maioria com receptores colados ao ouvido. Era o tempo em que o futebol constituia o passatempo predilecto do pembenses.

Desceram das árvores. Em silêncio pularam o muro do jardim e pararam no passeio para traçar a estratégia de entrada, enquanto o sol decaía vagarosamente enchendo de brilho as cores castanha e vermelha da terra. As equipas defrontantes ainda não tinham descido ao pelado, mas a enchente era demasiada de tal ordem que, para qualquer incáuto, parecia o jogo ter iniciado.

- Vamos tentar a sorte. – Disse Quino enfiado num fato-macaco de jeans encardido. – Cada um de nós deverá pedir boleia alguém mais velho com bilhete de acesso ao estádio.

- Para isso devemos distribuír-nos nos três portões do estádio. – Observou Bacar, filho de árbitro Bacar Tarupa.

- Penso que sim, apesar de tu não precisares disso por seu pai ser árbitro. – Retorquiu Quino rindo-se de lado e ocultando a boca, em sinal de gozo.

- O facto do meu pai ser árbitro penso que não quer dizer nada, porque, por exemplo agora, não posso entrar no estádio porque ele já está dentro do campo. – Contra-atacou Bacar sorrindo.

- Mas os porteiros todos te conhecem até de cheiro. – Disse Chiquito brincalhão.

Riram todos satisfeitos. Depois de breves instantes de silêncio, Bacar, cabisbaixo e pensativo, disse:

- Tenho uma opinião importante e ideias interessantes para resolvermos o problema que nos preocupa. Não podemos tentar a sorte no portão três, porque está lá o carasco nhê Ibrahimo, inimigo da criançada em dias de futebol. E se nos portões um e dois não tivermos sucesso, temos quatro saídas à nossa disposição.

- Quais? – Quiseram saber os amigos em coro.

- Muito simples! – Bacar fez um suspense que durou breves instantes. – Podemos ver o jogo apartir do terraço do prédio da LAM ou dos galhos das árvores mais altas emergidas em volta do estádio; pulando o muro do estádio do lado mais baixo ou aguardando até ao período dos últimos trinta minutos que normalmente servem para a abertura dos portões para facilitar a saída atempada e ordenada dos adeptos.

As propostas foram analisadas rapidamente. No final, reavivando a esperança da malta, Aidar disse:

- Penso que nhê Ibrahimo já não é problema para agente. Ele deve-me alguns favores...

O pronunciamento do Aidar suscitou uma enorme curiosidade que podia-se ler nos olhos brilhantes de cada um. E com uma expressão corporal de quem cobra pormenores, ficaram alí, naquele momento, devorando-o e com vontade imensurável de pegá-lo pelo colarinho da camisa até vomitar o inígma. Porém, nada disso foi necessário, pois, os gestos inofensivos, mas expressivos, da malta venceram o momento enigmático.

- Durante as noites da semana passada, o nhê Ibrahimo serviu-se de mim para chamar sua amante que é minha vizinha.

- Já estou a ver quem é! – Rematou Chiquito em jeito de brincadeira.

A malta riu-se.

- A ideia é extraordinária! – Disse Quino acariciando levemente o queixo liso com os dedos polegar e indicador da mão esquerda. – E não há nada melhor que pensar e...
- Realizarrr...! – Acudiram-o os amigos em coro.
- Mãos à obra! – Gritou Saíde fazendo uma vénia grotesca com um braço apontado ao estádio.

Sairam do passeio às corridas com a esperança de ver-se no interior do campo. Enquanto corriam ao encontro da fila de adeptos e simples espectadores do portão três, na entrada da bancada de sombra a equipa da casa ia entrando e descendo aos balneários no meio de um ambiente de festa e encorajamento, caracterizado por assobios e apláusos desordenados dos adeptos. Nisto, alcançaram a fila. Desrespeitando à sequência estabelecida e abusando ingenuamente a confiança imaginária do nhê Ibrahimo, emergiram agarradinhos e em fila indiana defronte do portão com os olhos prenhe de esperança. Nhê Ibrahimo reconheceu imediatamente o seu pequeno confidente. Com a mão erguida e em forma de facão, separou-o dos demais amigos. Aidar reclamou imobilizando-se e fazendo uma careta de protesto. O protesto foi imediatamente aceite e a malta viu-se, finalmente, no interior do estádio.

O jogo tinha começado e a equipa da casa contra-atacava com vigorosidade chegando a alcançar diversas vezes a grande área adversária, mas sem sucesso. Todavia, a ausadia de alcançar a baliza adversária alimentava aos adeptos de Pemba a esperança de uma possível victória e a atitude da equipa prosseguiu até um quarto do fim da segunda parte da partida, quando subitamente um adepto da equipa Pembense, advinhando uma possível derrota para a sua equipa, aproximou-se à baliza do guarda-redes Zé Luís e, apontando algo nas malhas, saiu desesperadamente gritando em macua:

- “Inhanca”, “inhanca”, “inhanca”... – amuleto, amuleto, amuleto...

A noticia correu as bancadas com velocidade de uma ave de rapina; Em escassos instantes o pelado foi invadido por uma legião de adeptos furiosos que interrompeu a partida imediatamente e escorraçou os jogadores da Textáfrica à pedrada. A fúria dos adeptos Pembenses, que achavam que o amuleto descoberto impedia-lhes de ganhar a partida, foi tão forte de tal modo que o corpo policial, destacado para garantir a segurança e tranquilidade públicas no local do jogo, viu-se incapaz de suster as acções dos furiosos.

No entanto, os jogadores visitantes conseguiram, milagrosamente, abandonar o recinto desportivo e para escapar-se das investidas dos furiosos, procuraram alcançar o Hotel Cabo Delgado, que dista alguns metros do estádio, correndo em debandada. Por sorte, ninguém feriu-se gravamente, mas a situação criou um grande susto aos visitantes.

Na verdade, o que o adepto boateiro vira era um pequeno rolo de linha preta com algumas agulhas que um dos trabalhadores do estádio perdera, na manhã daquele dia, quando montava as redes das balizas. Todavia, o incidente fez correr rios de tinta na imprensa nacional e foi veemente repudiado nos mais diversos meios de comunicação social. E, de lá para cá, como resultado do trabalho da imprensa e do bom senso dos populares, jamais voltou a suceder algo de género no pelado do município da terceira baia mais linda do mundo; Mas o sucedido naquele ano ainda habita o imaginário do povo, principalmente, dos mais velhos e serve de exemplo para os mais novos perpetuarem a boa convivência dentro dos campos de jogos.
- Allman Ndyoko, 21/03/2010.

3/02/10

LURDES - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

:: Allman Ndyoco pode ser lido em "Contos e Poesias do Índico" ::

Era mais um dia de trabalho. Tinha que fazer o percurso habitual: Hulene, Benfica e Cidade da Matola e usar o meio habitual – o chapa. Contudo, já havia feito o primeiro percurso e agora acomodado no acento traseiro do segundo chapa, um Toyota Hiace, branco, com uma faixa preta e escritas brancas onde no pará-brisas se lia: C.Matola / Benfica, rumava à cidade da Matola, quando na paragem da Zona Verde uma figura feminina, desmazelada, desprezível e anónima subiu para o carro e sentou-se num dos acentos centrais. A mulher tinha aparência de uns quarenta anos de idade. Trançara mirabas na cabeça que desesperadamente clamavam concerto. Trajava uma blusa larga com mangas cavas, uma capulana descorada e chinelos de banho. Trazia um bebé no colo envolto numa capulana fedorenta e um plástico preto contendo couve e alface.

Nisto, enquanto percorriamos a avenida 04 de Outubro o carro imobilizou-se na paragem do bairro T-3, onde subiram quatro jovens professores e três deles acomodaram-se no banco ocupado pela mulher desmazelada e um no acento próximo à porta. Do grupo dos docentes, três eram do sexo masculino e um feminino. A do sexo feminino era a que sentara no banco separado dos demais.

A madrugada ia ao fim. O sol no nascente espreitava altivo emitindo raios quentes de verão e deixando antever que o resto do dia seria de calor húmido e incómodo e que massa de ar quente fustigaria majestosa e impiedosamente sobre as cidades de Maputo e Matola.

- Olá, Lurdes! – Disse a docente surpresa, assim que se virou para dialogar com os colegas.
- Olá, Marta! - Replicou Lurdes, a mulher desmazelada e de bebé no colo.
- Há quanto tempo?! – Marta sorriu de alegria. Estava encantada com o encontro inesperado. – O que é feito de ti?
- Nada, Marta, senão ficar em casa.

O carro estava silenciso e apenas as duas vozes se faziam ouvir.

- Conhecem a ela? – Marta questionou os colegas.
- A cara dela não me é estranha. – Respondeu um deles.
- Para mim, – Disse um dos docentes que trazia uma bata branca ao ombro direito. – parece que conheço da Matola.
- Sim. – Marta acudiu. – Foi minha vizinha frontal e mais tarde casou-se com Todinho.
- Áh, já tou a ver… - Disse um dos docentes que trajava uma bata branca. – Mas parece-me ter “crescido” muito.
- É o que também noto nela. – Confessou Marta sem reservas. – O que está a passar-se?
- Sofrimento! – Lurdes sorriu disfarçadamente.

Lurdes expressava fluentemente a lingua do Camões e esta fluência contrastava-se com a sua aparência. O seu sotaque e domínio da lingua do colonizador era, agora, um indicativo para todos que ela havia frequentado a escola e vivera durante muito tempo num ambiente citadino. Sua expressão facial e vocal, agora, despertava mais curiosidade. Por detrás daquela mulher desmazelada, refugiada nas capulanas e conformada com o destino que a vida lhe reservara, escondia-se uma bela jovem, maltratada pelo egoismo e ciúme doentio de um homem que um dia lhe levara ao altar e que ela considerava esposo e pai de seus três filhos menores.

- O que está a acontecer? – Marta estava curiosa.
- Depois do casamento, a minha vida virou um pesadelo. Todinho proibiu-me de ir a escola, relacionar-me com meus parentes, amigos e vizinhos. Como senão bastasse, passei a viver enjaulada na minha própria casa.
- Enjaulada? – Marta parecia revoltada e a conversa começava a interessar à todos passageiros.
- Sim. Todinho tranca a porta do quintal com cadeado todos dias e leva as chaves ao serviço. Arrancou-me o telemóvel para não me comunicar com ninguém, bloqueou há já três anos os canas de televisão e proibiu as minhas amigas de frequentar a minha casa.
- É impossível! – Disse o docente que envergava a bata branca. – Conheci Todinho antes do casamento. Brincavamos juntos na Matola e era um gajo “fixe” com todos, pá!
- Virou um monstro. – Desabafou Lurdes. Depois de alguns instantes, prosseguiu. – Bate-me todos dias e quando mando recados para os meus tios eles simplesmente dizem para eu aguentar, pois, o lar exige sacrifícios.
- Sacrifícios qual que é?! – Inquiriu ironicamente um dos docentes.
- E quem faz compras para a casa? – Quis saber Marta.
- É ele.
- E as crianças não estudam? – Inquiriu uma das passageiras sentada no banco traseiro do carro.
- São ainda menores. – Lurdes quase que chorava.
- Então, vejo que esse homem faz-te de máquina de gerar filhos… - Precipitou-se a passageira a concluir,
- É o que acho também. – Disse Marta.
- Esse homem precisa de ser denunciado junto às autoridades para nunca mais maltratar mulheres indefesas. – Observou o motorista em apoio à Lurdes.

Houve silêncio. Depois de alguns segundos, o professor que trajava a bata branca quis saber:

- Como saiste de casa hoje?
- Ele autorizou-me, excepcionalmente hoje, a sair afim de comprar verduras para o almoço. Assim está em casa a minha espera, mesmo sabendo que está a atrasar no trabalho. Como demorei um pouco agora porque as vendedeiras de verduras demoraram-se a chegar, sou capaz de ser agredida verbal e fisicamente sob o pretexto não ter acatado a ordem de regressar a casa à hora.
- Não me diga que ele determinou-te o tempo para chegar a casa?! – Perguntou Marta.
- Determinou.

Nas palavras da Lurdes lia-se para qualquer um certo traumatismo psicológico que precisava urgentemente de um atendimento especializado. Parecia deprimida, conformada com a situação em que se encontrava e, aparentemente, sem forças para lutar. Parecia viver numa ilha, onde os vizinhos, amigos e parentes serviam de cenário e nada mais.

No entanto, chegamos a zona da prisão de máxima segurança da Machava e na paragem da barraca verde, Lurdes desceu despedindo-se de todos acanhadamente. Quando o carro arrancou, os passageiros olharam-a até desaparecer numa rua vizinha.

- É inacreditável que a situação daquela rapariga esteja a acontecer aqui na cidade. – Disse alguém entre os passageiros.
- Onde está a família? – Inquiriu o cobrador.
- Os pais morreram faz muito tempo e ela era filha única. Os tios, apesar de lhe terem criado, nunca ligaram para ela. – Respondeu Marta visivelmente afectada pela situação da Lurdes.
- Há que fazer alguma coisa. – Disse o professor de bata suspenso ao ombro. – Daquilo que li no semblante da rapariga, ela até é capaz de cometer algum suicídio. E se tal acontecimento ocorrer, todos que ouvimos o depoimento dela sentirémo-nos culpados de nada termos feito para ajudar aquela pobre alma.
- Isso é verdade. – Foram respondendo em cadência os demais passageiros.

Dali em diante, a conversa dominante no mini-bus era a relacionada com o que acabava-se de ouvir. Cada um contava uma história similar evidenciando o modo de conclusão. E de toda conversa surgida, foi possível notar o quão as mulheres sofrem em silêncio tumular na nossa sociedade e quão algumas pessoas ainda ignoram o tal sofrimento.

Entretanto, cheguei ao meu destino. Desci do chapa, paguei ao cobrador e caminhei para o serviço pensando na Lurdes. A sua história de vida comovera-me até as entranhas e não conseguia desembaraçar-me dela sem nada fazer. Nisto, decidi rabiscar esta linhas para fazer chegar a toda gente o grito e o marasmo da Lurdes, aquela mulher desprezível, maltratada e recolhida em si como um caracol.
- Allman Ndyoko, Moçambique, 28/02/2010.

3/29/08

A ORIGEM... ou Como surgiu o povo MaKonde !

A ORIGEM
Por Allman Ndyoko (Francisco Absalão)
.
Não havia em todo planalto makonde um homem tão erudito como Alupeke. Ele era um homem simples de estatura baixa, robusto, escuro, cabeça calva e olhos castanhos de um tom aproximado ao cacau. Pertencia à linhagem namakongo* e tinha tatuado a cara, o tórax, o abdómen, a região renal e os braços. A sua tatuagem tinha um carácter decorativo do corpo com desenhos coloridos como acontecia com os demais makondes. Para além da tatuagem tinha os dentes afiados e este processo não fora de nascença, tinha sido feito no likumbi* quando era criança.
Como dizia, a sua erudição havia bebido dos velhos antigos makondes e uma boa parte contada pelo seu avô materno quem havia lhe feito crescer. O homem era por excelência um exímio contador de estórias antigas e tinha conquistado em todo planalto uma invejável fama e simpatia de gente humilde de todas idades. Nas festividades das aldeias Alupeke era o convidado de honra e lá delirava o auditório con suas narrativas heróicas grandiosas tendo no meio das façanhas personagens makondes valentes e destemidos.
Entretanto, um certo dia um grupo de jovens da povoação de Antupa irrompeu à casa do chefe da aldeia, que também se chamava Antupa, para pedir que intervisse numa contenda banal de dois jovens que discutiam sem consenso acerca da origem do povo makonde. Achando interessante a discussão, o chefe Antupa convocou todos os sábios da sua povoação para encontrar a verdadeira estória sobre a origem dos makondes. Porém, o dia aprazado para a reunião foi sábado à tarde. Era inverno. A tarde estava nublada, fria e agradável. A chitala* de Antupa em tão pouco tempo ficou repleta de jovens ávidos de ouvir estórias antigas transmitidas de boca em boca, séculos e séculos, sem que perdesse na totalidade o sentido que as perpetua de geração em geração. O terreiro, por sua vez, ficou abarrotado de gente, ruidoso, vivo e impressionante como nunca, e, dir-se-ia que uma competição de mapico* estava prestes a desenrolar-se.
No entanto, o velho Antupa apresentou ao auditório quatro sábios, dentre os quais, o afamado Alupeke. Os jovens ulularam de alegria, aplaudiram incansavelmente e assobiaram. Depois, chamou o primeiro sábio para contar o que sabia à propósito da origem do povo makonde. O terreiro gelou de silêncio que era tão profundo ao ponto de se ouvir a respiração compassada da multidão. Um velho baixinho, de rosto redondo e tatuado, de dentes afiados e barba desleixada atravessou o centro da roda humana e deteve-se no centro com ar cerimonioso.
- Sei muito pouco sobre a história da nossa origem. – Confessou o velho tímido e sem precipitar-se. Depois, continuou. – Contudo, rezam os relatos antigos que o nosso berço ficava no lado do planalto que pende para o rio Rovuma e lá a terra era coberta de mato grosso. Um certo dia desse mato saiu um homem que não se banhava e bebia e comia muito pouco. Este homem, um dia foi a uma floresta vizinha, onde esculpiu uma figura humana no pau-preto e trouxe onde vivia. Ao anoitecer, a figura esculpida despertou para a vida e tornou-se mulher.
O velho interrompeu a narração para respirar e de seguida, prosseguiu no ponto onde havia interrompido:
- Na mesma noite, os dois desceram ao rio Rovuma para se banhar e aqui a mulher deu luz uma criança que nasceu morta. Sairam dali, atravessaram o rio, subiram o planalto pelo meio até uma certa região, onde se fixaram. Aqui a mulher deu luz outro bebé que também nasceu sem vida. Depois disto voltaram ao Rovuma. Aqui nasceu o terceiro filho, vivo e saudável. Viveram aqui até gerarem muitos filhos que formaram a família makonde.
O velho girou pelos calcanhares e foi-se acomodar. Os dois que seguiram não trouxeram novidades, apenas subscreveram a estória narrada pelo primeiro sábio. E para terminar, foi convidado o famoso Alupeke para contar o que sabia à propósito do assunto que os reunia. O auditório animou-se repentinamente, criou-se um murmúrio ensurdecedor que cessou assim que Alupeke posicionou-se no centro balouçando a cabeça.
- O que vou contar não vem de mim. – advertiu Alupeke com uma voz viva, alegre e solene. – Foi contado por homens eruditos makondes que guardaram na sua memória um legado historico muito importante do nosso povo.
Alupeke baixou os olhos, pestanejou e manteve-se calado por uns breves instantes, durante os quais esteve a ressuscitar em pensamento as narrativas dos sábios antigos. Depois, como se acordasse de um sonho, acrescentou:
- Por isso, guardem no coração tudo o que de mim ouvirem porque tudo é verdadeiro como o orvalho que se forma nas madrugadas frígidas de inverno.
Todos riram satisfeitos pelas suas palavras belas e sábias. Porém, sem gaguejar e nem precipitar-se, Alupeke, continuou deixando um ofuscante relâmpago de sincero orgulho brilhar nos olhos:
- Há muito, muito tempo, o nosso povo no seu todo vivia lá para as bandas do lago Niassa. Um certo dia, veio naquelas bandas um povo estranho chamado Ngoni* que expulso pelos povos dos reinos lacustres do Lago Victória veio até às terras habitadas pelo nosso povo à procura de terras para habitar. – Sorriu e prosseguiu com uma entoação vocal embaladora. – Temendo um confronto sangrento com aqueles estranhos, o nosso povo veio a fixar-se no vale do rio Rovuma, à volta do Negomano, permanecendo pelas baixas do rio, onde havia abundância de caça. Contudo, aqui o povo foi expulso por uma terrível seca e fome. A fome que se seguiu era tanta que as pessoas foram obrigadas a alimentar-se de carne humana.
O silêncio em redor continuava pesado, a atenção aumentava à medida que o narrador contava os episódios históricos e o estado melancólico tornava-se evidente no auditório sempre que os factos penetrassem em cenários tristes.
- O nosso povo não se conteve. Caminhou à procura de alimentos até que, por sorte, encontraram desabitado o planalto onde hoje temos a honra de viver e aqui fixou-se. Contudo, neste planalto não havia água, mas a terra era fresca e produtiva. Daí em diante, os nossos ancestrais trabalharam a terra e, com ajuda da chuva e fortes orvalhos tiveram abundância de alimentos. A partir desse momento, o nosso povo, que não tinha o nome que hoje tem, ficou conhecido por vamakonde* que significa pessoas que vivem em terras sem água mas férteis.
Alupeke calou-se, retirou-se do centro da moldura humana para se juntar ao grupo de outros sábios e nesse momento houve uma chuva de aplausos que encheu o terreiro sem parar. A multidão irrompeu o centro cantando alegre e o erudito Alupeke foi imediatamente carregado pelos populares endoidecidos pela sua recente narrativa. O terreiro voltou a encher-se de murmúrios e assobios. Um largo sol aclarou a povoação e um grupo de jovens satisfeitos improvisou uma sessão de mapico* para homenagear o génio.
Por Francisco Absalão-01/04/2007.
.
*Glossário:
- Namakongo –
Linhagem Namakongo;
- Likumbi – Rito de iniciação;
- Chitala – Local de convívio social dos homens;
- Mapiko – Dança de máscara;
- Vamakonde – Makondes;
- Ngoni – Grupo étnico dessidente dos Zulus que por volta de 1834 veio a fixar-se na zona do lago Niassa vindo do lago Victória, provavelmente, expulso por alguns reinos lacustres.
.
O Autor:
-Francisco Absalão;
-Nome artístico -Allman Ndyoko;
-Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
-Residência actual - Maputo;
-e.mail's - frank_absalao@yahoo.com.br ou frank_absalao77@yahoo.com.br.
  • Leia "O Turbilhão Lendário", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 24/Outubro/2007 - Aqui !
  • Leia "O Nó Sagrado", um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) - publicado no ForEver PEMBA em 19/Março/2008 - Aqui !

10/13/09

O SUSTO - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Clique na imagem para ampliar - Imagem original daqui)

:: Allman Ndyoco pode ser lido em "Contos e Poesias do Índico" ::

Tinha saído da casa do Pascoal, um amigo de se tirar chapeu, fazia uns vinte minutos, se a memória não me induz ao erro, e caminhava na picada que atravessa por trás do Seminário Irmãos Maristas da Matola e se prolonga em direcção a Salina. Era uma manhã de sol e céu azul, dia próprio para um passeio a dois ou solitário.

Atravessei uma ruela que descia as quintas de grandes bastardos e continuei a marchar despreocupado e recolhido em pensamentos profundos. Ia pensando nas minhas coisas, quando de súbito vi uma Mazda 323, fechado, cor de vinho e apinhado de jovens vindo a minha frente rolando lentamente os pneus no chão da picada. Duas belas raparigas iam caminhando a minha frente, a uma distância de dois metros, e a rua achava-se deserta de gente como era de costume.

O silêncio era quase absoluto a ponto de se ouvir nitidamente o chilreio dos pássaros que vinha das espinhosas que serviam de muro na maioria das quintas daquela rua.

O carro passou lentamente ao meu lado esquerdo e cinco homens de cabeças rapadas e rostos assustadores dirigiram-me um olhar desconfiado. Todavia, continuei a caminhar. Quando fiz uns sete passos o carro parou e desceram dois homens fortes com caras de maus.

- Bróóó! – Disse um dos homens que descera do carro da porta direita.

Olhei atrás e vi os homens dirigindo-se ao meu encontro. Já no meio da distância que nos separava, o tipo que descera da porta esquerda disse, como se falasse consigo mesmo:

- Pára aí.

Parei. As raparigas que seguiam a minha frente prosseguiram a marcha sem darem em conta o que sucedia e, nesse instante, o meu coração pulou de medo. O corpo gelou imediatamente; Os olhos empalideceram e os ouvidos ficaram quase surdos. De repente, pensei sem saber porquê:

- “O criminoso não tem cara e hoje a criminalidade anda à solta por aí”.

Enquanto os homens se aproximavam deitei o olhar nas duas extremidades da rua, mas, como de costume, ela estava deserta de gente criando, assim, facilidade para a acção de qualquer malfeitor. Balbuciei umas palavras que não me recordo se era uma reza ou não e no fim, para me tranquilizar, pensei:

- “Devem ser uns forasteiros perdidos querendo saber qualquer coisa”.

Este pensamento ajudou-me de tal forma que, em tão poucos instantes, o meu coração deixou de pular e manti-me sereno e despreocupado.

- Somos polícias. – Disse um deles assim que parou ao meu lado direito. E tirando, do bolso traseiro das jeans que trajava, uma carteira para exibir, o tipo voltou a sossegar-me olhando-me como se estivesse em exposição: - Não tenhas medo, apenas queremos confirmar uma coisa.

A carteira do homem saiu do bolso com muita relutância, o dono abriu-a diante dos meus olhos e estranhamente vi um charro de maconha majestosamente deitado por cima de um cartão azul da Comissão Nacional de Eleições que o homem precipitou-se a me apresentar de raspão. Tive vontade de rir, mas contive-me. O homem guardou a carteira no bolso esboçando um rosto sério, ajeitou os óculos escuros que trazia pendurados no nariz, olhou os sulcos dos meus sapatos no chão e no fim, com uma voz rouca, quis saber:

- Posso ver a sola do seu sapato?
- À vontade! – Levantei o pé direito para trás e depois o dirigi na sua direcção.
- Não é. – Murmurou o homem abanando a cabeça negativamente.

O outro homem que se achava ao meu lado esquerdo apalpou-me a cintura e para lhe facilitar o trabalho ergui a camisete que envergava.

- Podes ir. – Anuiu o meu interlocutor enquanto o companheiro, que parecia o mais velho, olhava-me com desconfiança.

Calei-me. Dei meia volta e prossegui a caminhada com o destino ao chaveiro das Bombas de Combustíveis Madruga. Nas minhas costas o carro arrancou e continuou a andar lentamente como no inicio. Quando dobrei a esquina do muro da Direcção Provincial da Educação e Cultura e subi em direcção a paragem de João Mateus, questionei-me:

- “O que deve ser isto? Com quem me confundiram e porquê?”.

Como é lógico, não obtive respostas para os meus questionamentos. Contudo, achava muito estranha a atitude daqueles homens e não acreditava que me desembaraçara deles. Este sentimento era natural a avaliar o susto e o perigo que corria caso aqueles homens fossem assassinos no sentido real da palavra.

Entretanto, andei uns cem metros, passei umas duas senhoras que vendiam cigarros e doces e mais adiante voltei a cair em profundas meditações.

A vida na rua corria normalmente acompanhada de um fluxo rápido de automóveis. As pessoas cruzavam os passeios num vai e vem interminável enchendo de murmúrios o ambiente.

Passei um grupo de jovens que conversava numa sombra do passeio que usava e de repente, o Mazda 323 dos homens que haviam me interpelado inicialmente parou na berma da estrada, precisamente, ao meu lado. Os mesmos homens desceram do carro e vieram a minha frente. Parei desconfiando a atitude dos tipos e de seguida, um deles disse:

- És suspeito. Tens que aguardar até que venha alguém confirmar.

Estas palavras soaram-me como um tiro e ao fim do cabo, calei-me. Abanei a cabeça em silêncio e suspirei profundamente.

- Não quisemos te deter lá para não pensares que somos assassinos ou uma coisa parecida. – Acrescentou o homem de óculos escuros.

- Fique sossegado. – Retorquiu o outro homem. – É uma questão de tirar as coisas a limpo.
- Compreendo. – Limitei-me a balbuciar.
- É que aquela rua que usaste sucedem muitos assaltos devido às condições que ela em si oferece e nós estamos, precisamente, a trabalhar para acabarmos com essa onda de criminalidade.

O motorista do Mazda ligou para alguém do telemóvel, falou uns breves instantes e quando desligou o aparelho, chamou o homem de óculos escuros. Confidenciou-lhe alguma coisa e no final, subiu para o carro, onde se acomodou a espera do confirmador que pelo visto não se encontrava muito longe daquele local. Passado algum momento, um Nissan Champion branco, dirigido por uma mulher mulata parou atrás do Mazda dos agentes. Uma rapariga que vinha ao lado da mulher, também mulata, olhou-me com manifesto interesse e o mesmo gesto foi imitado pela condutora. Nesse momento notei que estava metido num sarilho imperceptivelmente e que só escaparia por um milagre divino. O diabo em pessoa estava ao meu encalço e tudo dependeria da palavra e fé da senhora do Nissan Champion. Balbuciei rapidamente uma reza mal recitada e no fim, entreguei o meu destino a deus.

A mulher desceu do carro, chamou o agente que se encontrava ao meu lado e confidenciou-lhe algo. O homem dirigiu-se ao Mazda, onde conferenciou com os ocupantes do carro e mais tarde me chamou. Ao encontrar-se junto dele estendeu-me a mão, dei-lhe a minha e apertamo-nos efusivamente.

- Desculpa pela situação que lhe fizemos passar. A senhora confirmou-nos que não és a pessoa que precisamos.
- Não tem de quê. – Respondi-lhe desembaraçando-me da mão do homem.
- Adeus.
- Adeus.

Virei-lhe as costas e afastei-me dali andando lentamente e admirando, sobretudo, a sinceridade da senhora mulata que pelo visto os malfeitores haviam lhe assaltado há dias atrás quando metia o carro no quintal, na rua onde os agentes haviam me interpelado inicialmente.
- Por Allman Ndyoko, 07/04/2006.

- O Autor Francisco Absalão:
Nome artístico -Allman Ndyoko;
Nasceu - Em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
Residência actual - Maputo.
- Produto da nova vaga de escritores moçambicanos dos anos 90, cursou História da Literatura Portuguesa, promovido pelo Instituto Camões em parceria com a Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane. Tem textos literários publicados em antologias, como: Histórias do Mar (2005) e Esperança e Certeza II (2008). Venceu os seguintes concursos de contos: Historias do Mar (2005), Contos e Bandas Desenhadas - promovido pelo Instituto Camôes em Maputo/Moçambique (2006). Podem encontrar textos literários de sua autoria em seu blogue particular "
Contos e Poesias do Índico" e publicados em várias revistas e jornais electrónicos no Brasil, com destaque para a editora online Blocos e Recanto das Letras.
  • Post's anteriores neste blogue!

10/24/09

A Intrusa - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)


:: Allman Ndyoco pode ser lido em "Contos e Poesias do Índico" ::


É noite. O céu escuro e baixo hospeda nuvens brancas que refletem o seu clarão aos bairros menos iluminados. De longe, ouve-se dois bêbedos cantarolando numa barraca em tom alto e num outro ponto do bairro um pastor prega o evangelho, em changana, aos crentes e a sua voz melódica atravessava o bairro na boleia do vento que sopra fraco.

Um avião estrangeiro aterra na pista que fica defronte da casa do Leo. O barulho do aparelho se prolonga até junto do limiar da pista e os reactores cumprem um silêncio tumular. Junto a relva, em frente à casa, grilos cantam pausadamente preenchendo o silêncio com musicalidade natural e hábitual.

Sentado na varanda da cozinha, Leo aprecia a noite e deixa a imaginação percorrer o caminho do passado: lembra-se de momentos alegres da vida, sorrí perceptivelmente, depois puxa o ar da noite para os pulmões e no fim, liberto-o demoradamente como se os pulmões fossem duas câmaras-de-ar pequenas em pleno vazamento.

A brisa nocturna acompanha-lhe amigavelmente e pouco-a- pouco, Leo perspectiva o amanhã ordenando as ideias no meio do silêncio e do escuro da noite. De repente, uma mulher, dos seus vinte e nove anos de idade, irrompe o quintal correndo apavorada.

- Hei, onde pensa que vai? – Gritou Leo aborrecido pela invasão inesperada ao domicílio e interrupção involuntária dos seus pensamentos.

A mulher, gorda, baixinha e trajada de uma calça e camiseta branca aproximou-lhe ofegante. Estava exausta de tanto correr. Medrosa dos seus perseguidores procurou, como se de um cão se tratasse, esconder-se ao lado do Leo olhando assustada por todos cantos da direcção por onde havia surgido. Leo olhou-a debaixo ao topo e vice-versa, e, depois quis saber:

- De quê foges, mulher?
- De polícia, tio. – Respondeu visivelmente dominada pelo medo. – Eu vinha do salão de cabeleireiro e junto ao muro do Durão avistei três policias a patrulhar o bairro.

Fez uma pausa para descansar. A mulher estava realmente exausta! A respiração ofegante dificultava a fala. Nisto, após um compasso de espera, prosseguiu:

- Fugi dos polícias com o medo de exigir-me bilhete de identidade que nem tenho.
- Achas que isso é motivo suficiente para empreender uma fuga de natureza a que agora acabas de me mostrar?
- Héeee. – Encolheu os ombros esboçando um sorriso forçado, depois, lançou o olhar a rua e acrescentou: – Fiquei com medo. É que, os homens quando me viram a fugir, perguntaram-me do que fugia, mas como tenho esse hábito de fugir autoridade, logo as pernas obedeceram ao impulso de fuga.
- Eles não te vão exigir absolutamente nada! – Sossegou-a. – Estão simplesmente a fazer seu trabalho de rotina, como forma de prevenir qualquer acção criminosa.

A mulher sob o domínio de medo ainda mantinha-se escondida nas costas do Leo, que não parava de se divertir com aquele espectáculo gratuito. Ela estava demasiadamente apavorada e o seu interlocutor achou anormal esse seu estado de espírito. Nisto, saiu para confirmar o facto. Espreitou a rua nas duas extremidades e não achou polícia algum. Deu meia volta e juntou-se novamente a mulher que agora se mantinha apeada na sombra escura da casa.

- Já devem ter ido. – Disse-lhe exibindo um leve sorriso nos lábios. – Agora penso que já podes retirar-se do meu quintal.
- Foram mesmo? – Saiu do escuro segurando chinelos nas mão para qualquer eventualidade empreender mais uma fuga espectacular. – Mas podem estar escondidos algures a minha espera.
- Não pode ser. – Atalhou. – Eles não precisam de ti e por isso se foram. E mais, hoje em dia já não é prática da polícia, em alguns pontos do país, exigir na rua e de qualquer maneira a identificação do cidadão, salvo em casos de extrema desconfiança…

Leo pareceu ter sido insuficientemente convincente com a sua argumentação, pois, em seguida, a mulher assustou-se em demasia ao avistar dois crentes de uma seita religiosa trajados de batinas brancas e azuis. A mulher riu-se perdidamente do sucedido e no final, disse:

- Não sei o que tenho ao certo com a farda policial ou militar. – Deixou cair no chão os chinelos propositadamente e calçou-os retomando no ponto onde havia interrompido. – Sempre que vejo alguém uniformizado com aquelas fardas entro em pânico. O meu desejo nesse momento é sumir do sítio.
- É estranha a sua atitude. - Observou Leo parado em frente da mulher. – Já foste presa alguma vez?
- Que isso, tio. – Fez vinco na testa e continuou. – Vira a boca p´ra lá. Shiii, deus me livre.
- Então, donde vem o seu medo por alguém fardado a polícia ou a militar?
- Não sei dizer.
- Quantos anos tens?
- Advinha.
- Vinte e dois…
- Não. – Sorriu. – Trinta e três.
- Então, viveste os tempos difíceis do país?
- E como! – Abraçou sua bolsa e iniciou a caminhada até ao limiar do quintal.

Em pouco tempo Leo percebeu o trauma da mulher e para confirmar, inquiriu:

- Nesse tempo passado terás sido submetida a uma situação embaraçosa em que no meio disso te exigiram identificação?

Atravessaram a porta do quintal que se encontrava entreaberta e já na rua iluminada, respondeu-lhe:

- Foram várias situações. Lembro-me que há muito tempo, quando voltávamos da escola a noite sempre eu e minhas colegas éramos interpeladas pela polícia, pelos militares e milicianos e exigiam-nos identificação. Quem não tivesse passava uns bons bocados.
- Como?
- Dormir na cela, limpar casas de banho das esquadras, subornar para ser liberto ou então, se for mulher, entregar as partes íntimas ao chefe ou então assistir impotente a sua própria agressão física…

Leo acompanhou a mulher até ao ponto onde dissera ter visto agentes policiais. Pararam alguns instantes e não viram nenhum polícia por ali. Retomaram a marcha conversando e andando lentamente como se se conhecessem há anos. Agora a mulher achava-se tranquila e conversava sem preocupar-se em olhar nos lados.

- Quer me parecer que você não consegue esquecer esse maldito tempo.
- Não consigo esquecer. Marcou-me prufundamente e fico aterrorizado quando vejo alguém vestido a polícia ou a militar.
- Estás traumatizada. – Balbuciou Leo extremamente comovido.

No entanto, mais adiante Leo despediu-se da mulher, encorajou-a a esquecer o passado e prometeram-se avistar mais vezes quando a oportunidade permitisse.
- Por Allman Ndyoko - 09/10/2009

10/14/10

OS LADRÕES E O CHAMBOCO

Não me lembro ao certo como ali parei. Apenas sei que o ambiente do mercado Mbánguia estava em fervescência como sempre, com os vendedores e compradores a realizarem suas pretensões num ambiente cordial, ameno e respeitoso, tal como as regras costumeiras recomendam. Mas aposto que, naquela manhã de céu azul, eu e minha malta de infância haviamos desembocado naquele aglomerado populacional impelido por algo “nobre” e próprio da adolescência, como, por exemplo, o passeio livre e sem destino pré-definido, facto que acontecia com frequência naquele tempo. Eram passeios que não punham ninguém temeroso, pois, todo mundo se conhecia até pelo nome. Era o tempo de Pemba do antigamente, tão distante que até “despedaça” os coraçoes dos que viveram aquela época saudosa.

Contudo, já voltando ao cerne destas linhas, algo surpreendente naquela manhã e naquele local sucedeu. Certamente que alguém no meio da multidão sabia o que ia suceder, mas também é certo que muitos, como nós, nada sabiam até que, de um momento ao outro, as entradas exitentes nos quatro cantos do quintal do mercado, feitos de estacas e bambú, ficaram forçosamente fechadas e consequentemente a actividade comercial interrompeu-se por ordem de quatro milicianos fortemente armados, que gritavam incansavelmente:

- Silêncio, silêncio, silêncio…

De súbito, o frenesim do mercado interrompeu-se e os populares prestaram prontamente a atenção aos milícias. Junto destes, achava-se um homem vestido ao rigor da época: uma balaláica e calça castanha de caquí e sapatos pretos polidos ao ponto. No entanto, os murmúrios dos que se achavam no mercado foram baixando paulatinamente e o homem de balaláica, ostentantando uma estatura baixa, corpo magro, cabelo curto e barba feita cuidadosamente, dirigiu-se a multidão que lhe devorava com os olhos aguçados pela curiosidade:

- Viva o povo unido!
- Viva, viva, viva! – Era a palavra de ordem e o povo tinha-a na ponta da lingua.
- Abaixo os ladrões, inimigos do povo!
- Abaixo, abaixo, abaixo.

Rapidamente esta palavras suscitaram curiosidade desmedida entre os presentes, pois, o memento em que se vivia, qualquer discurso que iniciasse nestes moldes antevia alguma novidade de interesse popular. Mais, o país vivia a guerra de desestabilização e qualquer mensagem saída da boca de autoridade tinha seu crédito, uma vez que, quanto mais as pessoas ficassem informadas, mais possibilidades haviam de precaver-se. Assim viviam as pessoas nos primórdios da guerra!

- Obrigado. - Palmas fortes ecoaram no recinto comercial. – Hoje viemos apresentar-vos os que sabotam o nosso desenvolvimento, a nossa afirmação como nação independente e a nossa unidade.

Quem seria? Um bandido armado? Estes eram questionamentos óbvios que cada um ali presente fazia. No entanto, este enigma não tardou a desvendar-se, pois, enquanto o homem de balaláica discursava, foram trazidos ao centro da moldura humana quatro homens algemados e com feições intristecidas. Perfilados e cabisbaixos, os homens deteram-se ao lado esquerdo do homem de balaláica aguardando a apresentação pública e a execução do veredicto do tribunal popular. Nos seus olhos e nas suas expressões faciais era notória a vergonha e a humilhação. Todavia, nada tinham a fazer para contrariar o destino que, por ganância ou ironia do próprio destino, eles mesmo haviam traçado ou tecido, contrariando a ordem instalada e desafiando a força e euforia do povo, quem o poder lhe pertencia.

- Estes homens foram confiados para nos servir, mas por ganância preferiram servir interesses pessoais roubando o que é do povo.

O povo acompanhava atentamente o discurso excessivamamente politizado e pacientemente aguardava a súmula do mesmo. Fez-se um silêncio, mas logo a voz do homem voltou a ouvir-se.

- Vocês conhecem estes homens? – Apontou com dedo em ríste aos quatro homens cabisbaixos.
- Não! – Gritou o povo desordenadamente.
- São trabalhadores de três cooperativas de bens de consumo. – Fez uma pausa para raciocinar. – Há seis meses que vêm roubando produtos de primeira necessidade, como: arroz, óleo de cozinha, açucar, sabão, etc, e este acto fez com que centenas de famílias fosse prejudicadas em abastecimento, isto é, estas famílias receberam alimentos e outros produtos que não corresponde ao real número do agregado familiar e outras ficaram privadas deste direito, como consequência dos actos destes senhores. Como devem saber, cada grão de arroz abastecida às cooperativas pertece alguém de algum agregado familiar, havendo a necessidade de fazer chegar ao destinatário sob o risco de privá-lo deste produto vital para a sua sobrevivência.

As mangueira frondosas do mercado Mbánguia balançaram ligeiramente agitando ramos e folhas como se concordassem com as palavras do discursante. Uma brisa suave cortou o mercado em diagonal afastando o ar quente e húmido que se fazia sentir.

- Assim, – Prosseguiu o homem de balaláica. – pelo que fizeram, foi-lhes aplicado a pena de vinte chambocos cada e seis meses de prisão.

Um ululu forte e calorosos aplausos emergiram do meio da multidão em saudação à decisão tomada e da boca do homem de balaláica soltou-se uma canção revolucionária que foi imediatamente entoada em coro pelos presentes. No fim, foi trazia ao meio da moldura humana uma cama de ikampala e imediatamente o primeiro ladrão, um homem alto, claro, cabeludo e de barba desleixada, foi amarado de bruços junto a cama para não escapulir. De seguida, um miliciano robusto aproximou-se com um chamboco e quando a ordem foi dada, o chamboco assobiou no ar e no fim ouviu-se um estalo forte acompanhado de um grito de cortar o fôlego. Todavia, as chambocadas prosseguiram com o ladrão agritar pedindo mil desculpas. Este gesto, repetiu-se para o resto do grupo e foi muito doloroso assistir, contudo, parte dos espectadores incitava o miliciano a chamboquear demasiadamente para servir de lição a outros homens com pensamento semelhamente a dos quatro ladrões.

Quando o “espectáculo” terminou, as saidas do mercado foram abertas para permitir a retoma da vida do mercado e os ladrões foram levados de Waz para o calaboiço. E como não podia deixar de ser, o sucedido alimentou conversas quase o resto do dia e, pelo interesse que o assunto suscitara, certamente que servira para desencorajar atitudes semelhantes em muitos que até então roubavam ao povo.
- Allman Ndyoko - Moçambique, 13/10/2010


Vocabulário:
Ikampalacorda de palha tecida que normalmente no norte de Moçambique serve para fazer o leito da cama feita na base de estacas;
ChambocoCacete. Chamboco foi uma expressão que evoluiu ou foi frequentemente usado no tempo em que Moçambique adoptara o socialismo;
Chamboquearacto de cacetear;
Waz Carro de fabrico russo, que geralmente era usado pelas forças de defesa e segurança do período socialista.

12/15/09

O MAPIKO

O mapiko foi desde sempre a figura mais importante da cultura makonde, simbolo vivo de um espirito humano usado pelos homens para dominar pelo medo, mediante bailarinos mascarados, as mulheres e os jovens ainda não iniciados nos ritos de iniciação, contribuindo não só para integrar as crianças no grupo dos adultos, como ajudando a estabelecer o equilíbrio entre o grupo dos homens e o das mulheres. O mapiko foi e continua a ser uma actividade lúdica que tem conquistado muitos adeptos e serve de pretexto ao longo dos tempos para servir de uma actividade competitiva, onde determina-se os melhores grupos cujo mérito advém no facto dos grupos pautarem pela linha da originalidade na dança e máscara. Contudo, em tempos muito recuados as actividades competitivas do mapiko originaram conflitos sangrentos entre grupos rivais desta dança que simboliza o povo makonde. As vitimas destes conflitos, na sua maioria jovens, acabavam morrendo muitas das vezes devido a gravidade dos ferimentos que eram feitos pelos batuques conhecidos por vinganga e outros viam-se salvos graças aos préstimos dos vakulaula que magicamente e usando o método de takatuka transferiam as feridas de um ponto do corpo para o outro que não representasse perigo de morte para a vítima. Este comportamento de jovens daquela época deixou marcas profundas na história do percurso do povo makonde, onde algumas linhagens, como por exemplo, vanachuluma e vamboei chegaram a cortar as suas relações sociais durante muito tempo devido a um triste e trágico episódio sucedido em tempos muito passados, conforme passo a narrar:

Era uma atarde de domingo. O dia ia ao fim e a luz do sol desaparecia pouco-a-pouco anunciando a chegada da noite. O terreiro da aldeia dos vanachuluma achava-se cheio de gente que desde ao princípio da tarde assistia a competição de mapiko. O som dos tambores, de quando em vez intercalado pelo som do lipalapanda, avivava a povoação provocando um barulho ensurdecedor, próprio de ambiente festivo.

Tinha vindo na aldeia o grupo de mapiko de jovens vamboei que depois da actuação dos anfitriões foi convidado a mostrar o que mais sabia na arte de dançar o mapiko. Rapidamente, vinganga e ntodje soaram impetuosamente irrompendo o terreiro da aldeia de forma rude e um lipiko mboei saltou para o meio da roda humana dançando com estilo e conhecimento e acompanhando com perfeição o tam-tam dos tambores. Uma salva de palma encheu o terreiro e o intusiasmo apossou-se aos espectadores criando rastos de inveja no grupo de mapiko local. Decorridos alguns minutos, os tambores calaram-se e o grupo de percussionistas começou a cantar com ímpeto cânticos antigos enquanto o lipiko se dirigia às crianças e mulheres procurando domina-las pelo medo. Pouco depois, o som dos tambores voltou a fazer-se presente pondo em delírio os espectadores que acompanhando os cânticos dos percussionistas, batiam as palmas e ululavam de contentamento pela exibição espectacular do jovem lipiko mboei.

Passado algum momento, os tambores cessaram e o lipiko recolheu-se numa palhota que se encontrava nas imediações para descansar. Os percussionistas levaram os batuques ao lume para aquecer a pele que já se achava abrandada e, nesse instante, Apediupinde, um jovem da linhagem vanachuluma e percussionista do grupo juvenil local de mapiko, atravessou o centro da roda humana e bem perto do rosto de um dos jovens mboei, que na altura aquecia chinganga ao lume, disse com desdém:

- Nós somos o melhor grupo de mapiko do planalto. – Passou a mão à cabeça e acrescentou. – Vocês não passam de um bando de mulheres que finge ser homem com todas suas propriedades somáticas e psíquicas.

O jovem de chinganga ergueu-se, olhou para o interlocutor com ar de desconsideração e continuou a aquecer o batuque sem dizer uma palavra se quer. Apediupinde girou os calcanhares e voltou a atravessar o meio da multidão dizendo maldições inúteis com a testa vincada de profundas rugas devido ao facto do público nachuluma aplaudir e simpatizar-se pelo grupo juvenil mboei.

O som dos tambores voltou a irromper novamente o terreiro acompanhado do som lipalapanda que cortou o ar, vezes sem conta, chegando a ouvir-se nas povoações vizinhas do interior da floresta. O lipiko atirou-se ao meio da roda humana e recomeçou a dançar fazendo gestos para os espectadores. Dançou durante muito tempo afastado dos espectadores e depois, aproximou-se a um pequeno aglomerado de crianças. Os petizes fastaram-se desesperadamente assustados pela máscara envergada pelo lipiko. Apediupinde aproximou-se sorrateiramente o lipiko e empurrou-o energicamente caindo de seguida nos braços do público que imediatamente repudiou a atitude. Ngole, um jovem mboei, tomou o chinganga que tocava, correu rapidamente ao encontro de Apediupinde com o olhar rude e lábio inferior apertado entre os dentes. Assim que se encontrou perto, arremessou o chinganga cantra Apediupinde atingindo-o a testa. O público correu em debandada e num abrir e fechar de olho desenrolou-se uma luta feia entre jovens dos dois grupos de mapiko.

Nisto, Apediupinde levou a mão à testa e de súbito, um jato de sangue regou a mão ensanguentando-a total e imediatamente. A cabeça andou-lhe a roda, deu três passos incertos e no fim, tombou no chão beijando violentamente a terra castanha do terreiro. Entretanto, Ngole foi agarrado pelos jovens nachuluma e acidentalmente uma catana atravessou-lhe a nuca. O jovem caiu por terra estrebuchando e regando-a de sangue quente. Vendo o sucedido os outros vamboei fugiram a sete pés.

Durante um instante breve como relâmpago, Apediupinde foi levado a casa de nkulaula, onde foi tratado com ervas e feito atravessar o meio da rachadura da nala para fazer takatuka. Quando passou para o outro lado da árvore, a ferida desapareceu misteriosamente da testa e veio alojar-se no braço. Depois, foi conduzido a casa, onde ficou a convalescer.

No entanto, ao anoitecer aquele dia, os parentes do Ngole removeram o corpo e dias depois o nkulungwa dos vanachuluma reuniu os jovens da sua povoação no terreiro, onde repudiou a atitude vergonhosa protagonizada contra os vamboei e proibiu o uso da violência e a realização de competições juvenis de mapiko na sua povoação.
Dali em diante, jamais ocorreu um incidente similar no planalto makonde, contudo, o sucedido originou uma grande rivalidade disfarsada entre os jovens das duas linhagens que só veio a conhecer o seu término com a chegada dos portugueses.
- Allman Ndyoko, 10/03/2008.


GLOSSÁRIO
Vakulaula –
O plural de nkulaula que significa curandeiro;
Vinganga – O plural de chinganga que quer dizer batuques pequenos, achatados e meio delgados;
Nkulaula – Curandeiro;
Takatuka – Método tradicional que consiste na remoção mágica de uma ferida de um ponto do corpo para o outro que coloca em perigo a vida do paciente;
Ntodje – Batuque delgado;
Nkulungwa – Chefe da povoação;
Vamboei – Plural de mboei que significa pessoas da linhagem mboei;
Mboei – Alguém da linhagem mboei;
Vanachuluma – O plural de nachuluma que quer dizer pessoas da linhagem nachuluma;
Nachuluma – Alguém pertencente a linhagem nachuluma;
Lipiko – Dançarino de mapiko geralmente mascarado;
Mapikos – O plural de lipiko e também assim se chama a dança de máscara feita pelos makondes de Moçambique;
Ñala – Árvore através da qual o curandeiro usa para fazer curativos ao doente através do uso do método de takatuka.

12/23/09

O DESAFIO - Allman Ndyoko

Tinham caminhado toda manhã no meio da mata fechada e debaixo do céu sinistro coberto de nuvens enormes, pesadas e escuras sem que trocassem palavra alguma. Levando as costas o filho mórbido, a casa toda mudada a cabeça num volumoso atado de pano, Achepe marchava em frente do Nkule, seu marido, num passo nervoso e sem ocultar a sombra de aflição e tristeza que lhes perspassavam pela fisionomia. O filho menor estava doente há dias. Não comia e nem falava e o infurtúnio sucedera subitamente quando brincava na companhia de amigos no terreiro da casa do tio materno. Várias tentativas haviam sido accionadas para devolver a saúde ao menor, mas todas mostraram-se infrutíferas restando agora, como último recurso, a consulta do wihiyango mais afamado da região para desvendar o mistério ocultado por detrás da doença.

Caminhando em silêncio e com a mente mergulhada em profundas meditações, Nkule ia tentando advinhar o mistério que rodeava a doença do filho e o provável autor. De quando em vez, maldizia a tradição que lhe obrigara a viver na aldeia dos pais da esposa até nascer o primeiro filho, pois, na sua óptica o infurtúnio que se alojara no filho sobrevinha indubitavelmente da acção de um feiticeiro da família da mulher. Enquanto ordenava o juizo deste modo, Nkule aguardava com ansiedade a chegada à aldeia Mwanga, que ficava a norte de Miteda, onde esperava confirmar às suas deduções.

Entretanto, o casal prosseguiu a caminhada tortuosa no caminho apertado e ladeado de arbustos e capim alto. O silêncio entre eles era tumular e a aflição pelo filho era-lhes maior. Porém, à medida que avançava a passos largos em direcção ao destino ia se ouvindo, em forma de eco, nas proximidades do caminho, o sistemático e repetido «coc, coc, coc, coc,...» do batimento dos pés descalços no chão castanho e rico de humo, que era característica principal do planalto makonde em todas suas extensões. Já a meio caminho do destino, dois perdizes passaram próximo deles voando de forma razante e fazendo-lhes sentir no rosto o ar deslocado pelas asas. Nkule assustou-se, tossiu uma vez e riu exibindo a sua dentadura branca, cor de marfim, afiada com mestria conforme as velhas tradições. O sucedido lhe causara uma impressão dramática a ponto de fazê-lo esquecer temporariamente o drama que vivia. Olhou atrás sorrindo, meneou a cabeça e quando volveu o olhar, passou a costa da mão no rosto e sentiu os sulcos das tatuagens marcadas indelevelmente na pele. Roçou-as levemente, sem dar em conta, e no fim, comentou:

- Aquelas aves são demasiadamente atrevidas. Contudo, espero que não estejam a anunciar um mau augúrio.

Achepe não pronunciou palavra alguma e limitou-se a marchar serpenteando o corpo e fazendo tocar ao de leve no capim seco os vestes que trazia.

De repente, um vento forte agitou o capim e torceu as árvores, fustigando-as furiosamente e ameaçando derrubar a trouxa que Achepe carregava no alto da cabeça. A mulher fez um movimento brusco para atrás e afrente e, tentando equilibrar a trouxa, prosseguiu a marcha sob o olhar atento e vigilante de Nkule que lhe seguia acompanhando-a os passos.

- Pelo visto, vai chover. – Afirmou Achepe, finalmente, passados escassos momentos após a acção fustigante do vento.
- Certamente. Por isso, temos que apressar para que achuva não molhe-nos demasiadamente.

Manteram-se calados novamente e continuaram a andar cada vez mais rápido. Passado algum momento, uma claridade ofuscante e violenta brilhou instensamente, o céu bramiu e dentro das nuvens estrondeou brutalmente. Num instante, o casal viu-se alucinado visualmente pelo relâmpago e ensurdecido pelos ribombares dos trovões. De súbito, a chuva despenhou em catadupa encharcando o casal dos pés à cabeça e obrigando-o a refugiar-se debaixo de uma frondosa mangueira que se achava ao lado do caminho que seguia em direcção a aldeia.

Quando a chuva abrandou, o jovem casal retomou a marcha já sentido nas entranhas da medula o ar frígido do planalto. Volvido alguns instantes, a chuva parou e começou a ouvir-se de longe vozes de gente trazidas pelo vento. Nisto, acelerou o passo procurando alcançar as vozes o mais breve possível. Cruzaram-se com alguns aldeões vindos das machambas e poucos metros depois alcançaram o limiar da aldeia. A aldeia era excepcionalmente grande e bela, conhecida e admirada pelo esplendor invulgar que revestiam as festas tradicionais e sobretudo pelo excepcional prestígio de que gozava o chefe da aldeia e o wihyango Nkapalule. Curiosamente, o chefe da aldeia chamava-se Mwanga e era demasiadamente idoso; Tinha uma estatura baixa e era considerado uma personalidade invulgar, pensador original e filosófico. O seu prestígio e seus feitos heróicos haviam se espalhado por todo o planalto e não havia linhagem makonde alguma que não conhecesse alguma das suas proezas.

No entanto, o casal aproximou-se a uma palhota, onde uma mulher grávida peneirava o milho sentada debaixo do beiral. Nkule pediu licença e depois de autorizado cumprimentou a mulher grávida e no fim, quis saber onde vivia o wihyango Nkapalule. A mulher indicou com o dedo uma palhota que se achava em frente da chitala. Nkule agradeceu cordialmente e retomou a marcha, juntamente com a sua esposa, dirigindo-se às palhotas próximas a chitala sob olhar devorador dos aldeões que lhes apreciava como se estivessem em exposição. Enquanto caminhavam, Achepe ia apreciando as belas palhotas da aldeia e sua gente mansa e alegre.

À semelhança da disposição das palhotas da maioria das aldeias makondes, a estrutura arquitetónica da aldeia Mwanga não fugia a regra. A aldeia era de forma circular e as palhotas que se encontram na primeira fila à volta do terreiro central eram habitadas por um homem ou uma mulher da mesma likola a que pertencia o chefe da aldeia. No terreiro central emergiam árvores de fruto e no centro se encontrava a chitala, casa de reunião dos homens. Na chitala os homens passavam o seu tempo livre esculpindo, conversando e tomando a mesma refeição, enquanto as mulheres passavam parte do seu tempo trabalhando no terreiro junto das suas habitações e comendo juntamente com as vizinhas à sombra da árvore ou do beiral da palhota ou dentro dela no tempo de chuva.

Nisto, ao chegarem na casa do wihyango Nkapalule foram recebidos por duas mulheres idosas que trataram de receber a trouxa que Achepe trazia à cabeça e lhes servir igoli no beiral da palhota para se acomodar. Nkule pediu água para beber e quando uma das mulheres que lhes recebera afastou-se em busca da água, Achepe despredeu nas costas o filho mórbido e deitou-o no leito do igoli cobrindo-lhe uma capulana com delicadeza. Quando a mulher trouxe água fresca numa cabaça e entregou ao Nkule, a outra entrou na segunda palhota que assomava no quintal para lhes anunciar.

Gerou-se, no entanto, um momento de extrema espectativa durante o qual o casal esteve atento à movimentação das mulheres que por coincidência eram esposas do famoso Nkapalule. Pouco tempo depois, saiu da palhota principal e maior uma figura humana cheia de rugas, esquelética, velha, de boca sem dentes e chupada. O homem era magro, por natureza, a ponto de parecer não ter carne sobre os ossos. Atravessou o terreiro da casa andando lentamente e curvado, e, dirigiu-se ao encontro dos visitantes.

- É ele? – Inquiriu Achepe, com os olhos esbugalhados de pasmo e pavor.
- É... Mas não te incomodes ele é apenas velho. – Respondeu Nkule com toda serenidade que lhe foi possivel. Contudo, ele também estava embaraçado, mas fez um esforço para não o demostrar.

De costas curvadas o ancião passou lentamente em frente deles e entrou na terceira palhota. A esposa mais velha do ancião convidou os visitantes a entrar na palhota, onde se encontrava o marido. Quando os visitantes se acomodaram numa esteira de palha do lado oposto do wihyango, Nkapalule, disse:

- Sei tudo o que levou-vos a me procurar e tudo o que se passou convosco pelo caminho. Não me perguntem porquê, pois, essa é a minha virtude.

Nkule espantou-se pelas declarações e, por fim, fixou o olhar no rosto do velho. Apesar da pequena escuridão que se desenhava no interior da palhota, naquele momento descobriu que nas órbitas profundas do Nkapalule os olhos eram extraordinariamente vivos e atentos e a sua face estava profundamente tatuada de dinembo que lhe emprestavam a elegáncia e perpetuavam a sedução e o orgulho de ser makonde. Porém, manteve-se atento às palavras do ancião.

- Vocês querem saber o que se passa com o vosso filho. – Prosseguiu Nkapalule. – E querem saber quem provocou esta desgraça.
- Sim. – Apressou-se Nkule a responder com convicção.
- Muito bem! – O velho arregalou os olhos e com ar misterioso, continuou: - Vamos rogar que os espiritos dos antepassados conceda-nos permissão para que o vosso desejo seja realizado.
- Assim seja. – Anuiu Nkule visivelmente curioso.

Nkapalule despejou na esteira ossadas de diferentes animais bravios, pegou numa faca e começou a cantar a pleno pulmões olhando para os ossos. Enquanto cantava, as suas esposas entraram na palhota respondendo em coro com uma aperfeiçoada concordância e comoção, e, por fim, sentaram-se ao seu lado prosseguindo com o coro. De repente, os olhos do wihyango mudaram de expressão, os lábios tremeram e a voz mudou de tom. Agitou a faca freneticamente durante alguns instantes e, a dado momento, manteve-se sereno a escutar a voz do coração. Nesse instante o cântico parou e fez-se um silêncio quase absoluto. Depois, suspirou profundamente, inalou um punhado de rapé meneando a cabeça, aspirou três vezes consecutivas e apontando a figura da Achepe, disse:

- O seu tio materno é o causador desta moléstia. Ele pretende matar o seu filho para lhe servir na machamba em forma de lindandocha. Voltem a casa o mais breve possível e digam a ele que eu lhe apontei como o causador do mal que se manisfesta nesta criança. Se ele sentir-se afrontado, lesado e difamado, sem justa causa, poderá queixar-me em qualquer aldeia e se provar que eu sou culpado, digo-vos do alto da minha dignidade que, deixarei de ser wihyango. Porém, se as minhas palavras forem verdadeiras verão que ele não se insurgirá e limitar-se-á a fazer uma coisa, que agora não vos digo, que restituirá a saúde ao vosso filho.

- Mas tem a certeza mesmo que o autor desta moléstia é o meu tio? – Inquiriu Achepe incrédula.
- Tenho, pois, o que digo não vem de mim... tudo é divino.
– É que não pode ser!
- Mas é... – Respondeu Nkule visivelmente revoltado.

Achepe baixou a cabeça, esfregou as vistas com a ponta da campulana que trazia enrolada ao corpo e, logo, as lágrimas não tardaram a salatarem-lhe dos olhos. Indignada pela revelação estrondosa e inesperada, Achepe, começou a chorar profundamente deixando escorrer, pelas faces negras e tatuadas, lágrimas copiosas.

No fim de algum momento, Achepe acalmou-se; Limpou-se as lágriamas com as palmas da mão e soluçando pós o filho nas costas. Nkule pagou a consulta com um um balde menor de amendoim que tirou da trouxa que a mulher carregava e abandonaram a palhota de regresso a casa. Quando atravessaram o limiar da aldeia e se embrenharam pela floresta adentro através de um carreiro que lhes foi indicado por uma das esposas do Nkapalule, as sombras da noite invadiam a floresta e as aldeias makondes, e, de longe ouvia-se o rufar dos batuques que vinha de algures distante trazido pelo vento. No alto do céu, os morcegos e outras aves de rapina iniciavam o seu voo habitual saindo de maneira espectacular das cavernas e dos troncos seco de árvores frondosas e seculares.

Ao chegarem a aldeia, dirigiram-se a casa do tio da Achepe, onde curiosamente esperava-lhes sentado à porta da sua palhota.

- Não digam nada! – Apressou-se o tio a dizer, assim que Nkule pediu licença. Depois, prosseguiu. – A ganância e o egoismo levaram-me a molestar o vosso filho de forma abominável. Sei que não mereço perdão, mas ao menos permitam-me restituir a saúde ao vosso filho.

Parado diante a entrada da palhota, Nkule, ouvia o discurso fervendo de ódio. Naquele momento o homem quis desferir um golpe, mas a sua consciência falou mais alto e, nisto, limitou-se a olhar a figura do tio abanando a cabeça desaprovadamente.

No entanto, reinou entre eles um silêncio de magoar os ouvidos, durante o qual Achepe aproveitou tirar da cabeça a trouxa que trazia e entregar o filho mórbido ao tio. Ao recebê-lo encaminhou para o interior da palhota, onde deitou na esteira e saiu para a outra palhota que se encontrava no mesmo terreno. Nkule e Achepe assistiam com interesse a movimentação do molestante vigiando-lhe todos seus movimentos. Pouco depois, o molestante voltou com uma cabaça cheia de água, parou no limiar da porta da palhota, onde se encontrava o doente e começou a confessar o crime proclamando, de seguida, que a doença não prossiga. Ao terminar a proclamação, que foi feita em voz baixa para que os vizinhos não ouvissem, cuspiu dentro da cabaça mormurando numa linguagem imperceptivel e lançou a água sobre os pés do doente. Feito isto, Nkule e Achepe levaram o filho a casa e no dia seguinte, incrível que pareça, o menino acordou sarado...
- Por Allman Ndyoko - 01/03/2007.

Glossário
Wihyango advinho.
Lindandocha Fantasma ou escravo mágico, isto é, entre os makondes antigos existia a prática de matar magicamente alguém e posteriormente servi-lo de escravo para trabalhar na machamba e outros locais. Para gente comum a pessoa morria de verdade, mas para o lado mágico a pessoa passava a viver, mas sem o contacto nem o conhecimento dos progenitores se o autor da morte não forem eles.
Igoli Cama de base feita de estacas de árvores e o leito tecido de uma corda de palha trançada.
Chitala Alpendre erguido no terreiro da aldeia e funciona como local de convivio dos homens.
LikolaLinhagem.

3/19/08

O Nó Sagrado - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Imagem original recolhida na net)
Era uma tarde azul de chambo – época seca que começa em Julho e termina em Outubro.
Isolado do resto do mundo, a vida no planalto corria normalmente com a sua gente envolvida em labores diferentes, como é lógico, e despreocupada com a evolução e inovação, contudo, fiéis a tradição herdada dos ancestrais.
Kandingwele, jovem caçador da linhagem de midamu, chegou exauto na margem esquerda do rio Chudi acompanhado de três cães de caça e pousou no chão quatro dimbutuka, produto de um dia de caça na densa floresta makonde. Limpou com a palma da mão o suor que lhe escorria pela face abaixo e sentou-se na sombra de um arbusto que crescia alegre na margem do rio. Tirou do lipeta um favo de mel, sacudiu-o contra o tronco do arbusto e, destraido, pôs-se a saborear o mel com gosto naquele recanto da natureza digno de admiração.
O sol estava escaldante, o ar pesado e quente. Ao longo do rio a vegetação era toda fresca. Havia sombras de sobra por todo lado e no leito do rio podia-se ouvir o murmúrio das águas correntes que passavam entre os musgos e as pedras levando e espalhando por todo leito folhagem seca e fresca caída das árvores que se prostravam majestosamente ao longo das duas margens.
Passado algum momento, Kandingwele ergueu-se do arbusto e pequenos ramos com folhagem roçaram-lhe cordialmente a face tatuada com esmero. Espreguiçou-se bocejando e marchou cansado até perto das águas do rio. Lavou as mãos lentamente, bebeu a água com avidez de um guerreiro perdido e por fim, lavou o rosto com as duas mãos. De seguida, ergueu-se ajeitando a sua ingonda e no silêncio da imensidão da floresta ouviu vozes e risos estridentes. Deteve-se alguns instantes escutando atentamente e, nesse momento, os cães ladraram com ímpeto correndo em direcção ao nascente do rio, onde três donzelas makondes banhavam-se destraídas e envolvidas numa louca brincadeira que obrigava água a espumar e a emitir um barulho ensurdecedor.
As donzelas assustaram-se.
Sairam da água a sete pés tapando com as palmas das mãos as partes íntimas do corpo.
Kandingwele escondeu-se entre as árvores e, sorrateiramente, pôs-se a assistir as raparigas apavoradas. Dobrou-se sobre o ventre três vezes, como quem não podia mais de tanto rir, e depois manteve-se sereno espreitando entre a ramada as donzelas que se esforçavam a vestir rapidamente. Nisto, puseram-se as bilhas com água à cabeça e sairam apavoradas em direcção à povoação aliando a presença de cães, noutra margem do rio, à presença indubitável do homem.
Quando as donzelas desapareceram da vista, Kandingwele sentou-se, novamente, debaixo da sombra do arbusto e sem dar em conta viu-se mergulhado em profundas meditações através do coração, órgão que, segundo os velhos sábios makondes, pensa e sente. Melancólico, Kandingwele, rebuscou relíquias amorosas de um passado muito recente e guardadas a sete chaves nas profundezas da sua memória. Revisitou com gosto a lista de raparigas que namorara às escondidas longem dos olhos desconfiados dos aldeões e por fim, sorriu de orgulho e satisfação esboçando na sua fisionomia triste uma expressão alegre e animada. Aspirou o ar profundamente, meneou a cabeça vigorosamente para afastar da mente aquelas recordações que lhe enchiam de emoção o coração. Volveu o olhar nas águas que corriam no leito cantando em tom cristalino e depois arrancou nas proximidades uma pétala enorme de uma flor selvagem. Desfez em pedaços insignificantes, sem saber porquê, e lançou-os para o rio. Olhou os retalhos com indiferença enquanto se esmeravam em vão contra a correnteza das águas que faziam os objectos passarem velozes por entre as pedras e o caniçal musgoso que predominava o leito do Chudi. Repetiu vezes sem conta esta brincadeira até que passado algum momento, ouviu o estalar insistente de ramos e folhas secas. Kandingwele revistou rapidamente a mata com os olhos e escondeu-se por entre os arbustos. O som insistente de pisadas de ramos e folhas secas intensificou-se significativamente e de repente, surgiu em frente dos seus olhos, noutra margem do rio, uma bela e sedutora rapariga que levava debaixo do braço esquerdo uma bilha decorada com perfeição por uma ceramísta makonde anónima perdida algures nas inúmeras povoações do planalto. Desceu o rio distraída até às águas, onde encheu a bilha e saiu para pousa-la na margem coberta vegetação verdejante. De seguida, despiu-se naturalmente, desceu, novamente, o rio e lançou-se às águas trauteando feliz com a vida.
Kandingwele saiu do esconderijo profundamente encantado pela beleza extraordinária da jovem makonde. Aproximou-se ao leito do rio e os olhos se encontraram. A donzela sorriu e continuou o banho olhando para o estranho que lhe assistia estupefacto noutra margem do rio. Kandingwele acenou-lhe a mão timidamente e a rapariga retribuiu o gesto naturalmente. Os dois olharam-se tranquilamente nos olhos como se se conhecessem de toda vida. Kandingwele sentou-se no chão cruzando os braços no peito e continuou apreciando a rapariga admirando, sobretudo, os seus seios túrgidos, olhos semi-esbugalhados, lábios escuros e carnudos, o seu olhar contagiante, suas coxas fartas e nádegas bamboleantes.
A rapariga saiu da água, passou as mãos pelo o corpo abaixo escorrendo gotas que lhe cobriam a pele e vestiu-se lançando olhares furtivos e sedutores ao Kandingwele. Quando acabou de vestir-se, pôs-se a bilha à cabeça, acenou a mão em sinal de despedida e serpenteando o corpo, propositadamente, desapareceu da vista seguindo o caminho que conduzia a povoação.
Entretanto, naquele dia à noite, já em casa e dentro do aposento, Kandingwele, não conseguia encetar o sono. Rebolava de um lado para o outro tentando apagar na sua mente aquela extraordinária donzela que vira à tarde daquele dia na margem direita do Chudi. Todavia, as suas recordações eram mais vivas e fortes do que o seu simples desejo de apagar na sua mente aquelas doce lembranças que lhe roubavam o sono. Contudo, já perto da madrugada o jovem foi vencido pelo sono.
No dia seguinte era domingo. Ao entardecer, o som de lipalapanda irrompeu o céu do planalto cortando-o de lés-a-lés e anunciando a sessão dominical de mapiko. Em pouco tempo as ruas ficaram agitadas. O terreiro encheu-se de gente e jovens de povoações distantes chegaram para uma competição de mapiko. Os murmúrios multiplicaram-se e o terreiro ficou barulhento. Era um grande dia!
Entretanto, soaram, por alguns instantes, os sons de vinganga e ntodje e, por fim, o som de lipalapanda cortou, novamente, o céu anunciando o inicio da competição. Kandingwele saiu do quintal e já na rua que conduzia ao terreiro da povoação juntou-se a um grupo de aldeões que se dirigia a competição fazendo comentários dos melhores grupos de mapiko. Enquanto caminhavam com destino ao terreiro, junto deles vinham vozes entrecortadas embaladas em cânticos antigos trazidos até ali pelo vento que soprando sem impetuosidade, levava consigo à terras distantes o tam-tam secular dos tambores, despertando assim os espíritos antigos adormecidos na imensa e densa floresta makonde.
Pouco tempo depois, chegaram ao terreiro e juntaram-se à multidão que cantava acompanhando orgulhosamente as batucadas dos tambores. Havia muita gente. O ar estava pesado e o cheiro humano era intenso. O mapiko com seus vestes e máscara característicos dançava no centro da roda humana fazendo, de quando em vez, brincadeiras engraçadas com o auditório. A sua frente, um grupo de tocadores de batuques esforçava-se em tocar os tambores procurando ganhar a simpatia do público que delirava acompanhando os cânticos dos percussionistas.
Kandingwele fez ao acaso uma ronda com os olhos em torno da multidão e, de repente, algo chamou sua atenção: doutro lado da moldura huamana estava a donzela do rio. Fez um esforço no meio da multidão caminhando ao seu encontro e quando chegou perto a donzela tinha já desaparecido. Ficou perplexo! Olhou em redor como se estivesse a procura de um diamante perdido e, por fim, saiu da multidão todo melancólico e pôs-se a procura da rapariga nos pequenos aglomerados de gente que se achavam nas inúmeras sombras de mangueiras espalhadas pelo terreiro.
De súbito, alguém bateu-lhe suavemente as costas. Kandingwele virou-se interrogativamente e viu à sua frente a donzela do rio sorrindo-lhe.
- O que procuras? – Quis saber a rapariga.
- Eu?
- Sim!
- Nada. – Disse Kandingwele embaraçado e depois acrescentou. – Estou a tentar apanhar ar fresco.
- Muito bem.
- E tu? O que fazes aqui?
- Queria ver se conseguias me descobrir...
- Como soubeste que vinha ao seu encontro?
- Advinhei.
O jovem fez um movimento para caminhar deixando um casal de velhos passar e depois, questionou:
- Chegaste bem ontem?
- Cheguei. – Sorriu. – E tu?
- Cheguei também, mas não consegui dormir nem tão pouco.
- Porquê?
- Não parava de pensar em ti.
A donzela riu. Olhou o interlocutor nos olhos e manteu-se serena e sorridente.
- Nunca alguém havia me deixado assim na vida. – Confessou Kandingwele honestamente.
- A sério?
- A sério. – O jovem esboçou uma expressão facial sincera e patética.
A donzela agitou o corpo toda gingona acompanhando com estilo o rufar dos batuques. Dirigiu o olhar para o centro da roda humana onde dois mapikos dançavam procurando mostrar à todo custo o auditório tudo o que sabiam acerca da arte de dançar mapiko. De seguida, volveu o olhar ao interlocutor.
- Posso te fazer uma pergunta? – Questionou Kandingwele.
- À vontade.
- O que faço para ganhar o seu coração?
A donzela riu. No fim, disse:
- Mostra que és valente.
- Como? – Sorriu. – Matando um leão ou domando um crocodilo?
- Não. – Retorquiu a donzela sorrindo.
- Então, como?
- Pedindo a minha mão em casamento.
Os dois jovens desataram a rir todos satisfeitos.
- A propósito. – Disse a rapariga assim que os risos cessaram. – Como te chamas?
- Kandingwele. E tu?
- Nkalimile.
- Belo nome.
- O seu também é muito belo, pese embora seja meio engraçado. – Observou Nkalimile.
- Porquê?
- Sei lá...
Os dois desataram a rir novamente felizes com a vida. Entretanto, afastaram-se da multidão e caminharam até perto do limiar do terreiro, onde detiveram-se no beiral de uma das palhotas que circundava o terreiro. Já longe do barulho dos populares e dos tambores, kandingwele, quis saber:
- Que linhagem pertences?
- Sou ntchipedi . E você?
- Midamu.
- Bem que não somos da mesma linhagem . – Monologou Nkalimile.
- Já agora, que faço para te ver novamente?
- É muito simples. – Assegurou a donzela. – Vivo na entrada da povoação e também podes me encontrar no rio nas tardes.
- A mesma hora que te vi ontem?
- Com certeza.
- Então, para não te roubar mais tempo,vejo-te outro dia.
- Não tem de quê.
Kandingwele fez movimento para caminhar. Os jovens olharam-se nos olhos intensamente e, no fim, deram-se as costas. Kandingwele dirigiu-se a casa muito feliz e Nkalimile voltou a juntar-se à multidão que assistia e dançava ao som das batucadas de vinganga e ntodje que, de quando em vez, eram intercaladas pelos sons ensurdecedores de lipalapanda .
No entanto, nos dias subsequentes Kandingwele e Nkalimile encontraram-se no rio e na floresta várias vezes até que uma certa tarde de quinta-feira e de céu nublado Kandingwele sentado na cama de lutandove ao lado do pai e do tio materno informou-lhes da sua pretenção de casar-se com Nkalimile.
- A ideia é boa e eu estava a espera de ouvir algo semelhante faz muito tempo. – Disse o pai rabiscando com uma bengala umas linhas obliquas na terra.
- E quem é a menina? – Quis saber o tio visivelmente emocionado.
- É Nkalimile. Uma bela e educada rapariga que vive lá no fim da povoação.
- É trabalhadora e saudável? – Inquiriu o pai olhando o filho firmemente.
- É, pai...
- Muito bem.
- E de que linhagem ela é?
- É ntchipedi.
Houve silêncio. Depois de alguns instantes, o pai disse:
- Há problema, meu filho.
- Que problema? – Quis saber Kandingwele estupefacto.
- Não é possível casares com essa rapariga. – Disse o tio tocando levemente o ombro do sobrinho.
- Porquê?
- É uma longa e complicada estória... – Explicou o pai. De seguida, acrescentou. – Foi há muito, muito tempo que tudo começou.
O velho calou-se. Reflectiu alguns instantes e voltou ao fio de pensamento.
- Há muito tempo um homem da linhagem vankundya matou um elefante na floresta. Ele e gente da sua linhagem comeram o animal todo de uma só vez e ficaram dali em diante a serem chamados vantchipedi, isto pelo facto de terem conseguido devorar sozinhos um elefante enorme.
O velho fez uma pausa novamente para ordenar as suas ideias, mas logo voltou ao ponto onde havia interrompido:
- Depois deste acontecimento, passaram duas gerações e houve likumbi muito grande. Na véspera do regresso dos rapazes do mato, morreu um deles e, pelo sucedido, todos rapazes adoptaram o nome de vamidamu em alusão às marmitas que era levadas para eles no mato. Depois disso, passaram-se ainda gerações. Portanto, vankundya e vamidamu são parentes dos vantchipedi e não é permitido casar entre eles.
Kandingwele suspirou. Meneou a cabeça como se estivesse a desaprovar a estória e manteu-se cabisbaixo. O tio olhou-o, passou-lhe a mão pelas costas e disse:
- Há muitas outras estórias antigas que proibem casamentos entre certas linhagens. Por exemplo, gente da linhagem vamboei estão impedidos de casar-se com membros da linhagem vanachuluma porque antigamente estes últimos mataram um parente dos vamboei. Apesar desta morte ter sido compensada com uma outra, infelizmente, estas duas linhagens ficaram para sempre inimigas.
- Por isso, filho, tens que procurar rapariga doutra linhagem para casar. – Disse o pai visivelmente abalado.
- Tenho certeza que vais achar, novamente, alguém especial que te fará muito feliz. – Encorajou o tio procurando animar o sobrinho.
Kandingwele manteu-se calado. O pai e o tio não pronunciaram uma palavra se quer e, passado algum momento, o jovem ergueu a cabeça e saiu dali melancólico para passear...
.
Glossário:
- Chambo – Época seca que começa em Julho e termina em Outubro;
- Midamu – Alguém da linhagem vamidam;
- Dimbutuka – Gazelas;
- Vanachuluma –Linhagem Nachuluma;
- Vamboei – Linhagem Mboei;
- Rankundya – Linhagem de Nkundya;
- Likumbi – Lugar onde se realizam ritos de iniciação para os rapazes. Normalmente é lugar perto da povoação, mas escondido no mato, onde os vaali (rapazes ou meninas) vivem durante os meses de sua segregação no mato;
- Lutandove – cama composta de base de estacas e atravessada com cordas tecidas com palha;
- Ntchipedi – Alguém da linhagem vantchipedi;
- Lipalapanda – Chifre de antílope, normalmente, usado para anunciar uma festa ou animar uma sessão cultural;
- Midamu – Alguém da linhagem vamidamu;
- Vinganga – Batuque pequenos, achatados e meio delgados;
- Ntodje – Batuque delgado;
- Mapiko – Dança de máscara;
- Makonde – Povo do norte de Moçambique.
  • Leia também "O Turbilhão Lendário" outro texto de Francisco Absalão transcrito no ForEver PEMBA em 24/Outubro/2007 - Aqui !
O Autor:
- Francisco Absalão
- Nome artístico - Allman Ndyoko;
- Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
- Residência actual - Maputo;