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11/14/09

A bandeira Lusitana



O sol caia lentamente no poente colorindo o ambiente de tom alaranjado, quando inesperadamente um emissário branco e um homem makonde desembocaram na povoação de Mbavala portando uma mensagem do major Neutel de Abreu, acampado à escassos metros da entrada do planalto makonde com um efectivo militar de mais de duas centenas de homens brancos. Os dois estranhos atravessaram a aldeia em diagonal em direcção ao terreiro onde ficava a casa do nkulungwa Mbavala e outros parentes seus com laços consanguíneo. Enquanto caminhavam entre as casas da povoação o homem branco ia virando atracção, sendo, de quando em vez, apreciado com excessiva curiosidade como se estivesse em exposição. Quando chegaram a casa do Mbavala foram recebidos pelos súbditos do ancião sem emoção, pois meses anteriores haviam corrido em todo planalto notícias de aproximação de um contigente militar de homens brancos armados até aos dentes e que haviam subjugado os makondes da zona leste dos contrafortes do planalto. Segundo as mesmas notícias, grupos de infantaria e artilharia haviam respondido barbaramente alguns ataques perpetrado por nativos inconformados com a presença dos brancos que até já impunham novos valores que contrariavam, de certa medida, as expectativas dos diversos chefes das linhagens que tinham em seu poder o controlo das rotas do comércio clandestino praticado por swahilis, árabes do Zanzibar, povos do Madagáscar e alguns nativos.

Entretanto, os visitantes foram servidos uma cama de lutandove para se acomodarem e um jovem de estatura baixa, postura forte, dentes afiados e rosto tatuado afastou-se dali e entrou numa das casas que se encontrava no enorme quintal do nkulungwa Mbavala. Pouco tempo depois, o jovem voltou a juntar-se a outros três súbditos que encontravam-se sentados no beiral de uma das casas que aparentava ser a principal. Volvido algum momento, o nkulungwa atravessou a porta e marchou lentamente ao encontro dos visitantes.

- karibo, karibo. - Sejam bem-vindos. – Disse Mbavala acomodando-se numa das camas postas ali para si. De de seguida, quis saber. – O que vos traz nestas bandas?

- O major Neutel de Abreu manda informar que dentro de dias chegará um contingente militar que virá instaurar uma nova vida no planalto e pede a lealdade de todos chefes, em especial do senhor. – Disse o emissário de viva voz e acrescentou. – Qualquer tentativa de sublevação será esmagada impiedosamente pelas nossas forças e os chefes de tais sublevação serão presos e deportados para longe dos seus súbditos.

Mbavala manteve-se calado durante todo tempo em que o homem branco esteve a discursar e depois manteve-se atento ao interprete que era o homem negro que vinha na companhia do emissário. Entretanto, após a interpretação do discurso que foi feita de forma quase incoerente pelo homem makonde, que a avaliar o seu conhecimento rudimentar da lingua portuguesa não havia dúvidas que o sujeito aprendera a lingua do Camões com os padres católicos em Porto Amélia, terra até então desconhecida pela maioria dos makondes, nkulungwa Mbavala ergueu-se apoiando-se com uma bengala de pau-preto esculpido com esmero. Cruzou um braço nas costas e passeou lentamente pelo quintal enquanto o branco e o interprete permaneciam sentados aguardando o seu pronunciamento. O Mbavala estava perturbado, mas fez um esforço para não demonstrar aos visitantes. No entanto, enquanto passeava pelo quintal com a mente a fervilhar de tanto procurar um coerente pronunciamento face à afronta do major Neutel de Abreu, baixou os olhos e volvido algum momento, dirigiu-se ao emissário erguendo os ombros orgulhosamente e levantando o queixo com altivez e ar de desafio.

- Diga ao seu chefe que recebi a mensagem. – Olhou muito atentamente nos olhos do branco e prosseguiu. – Amanhã farei deligências para informar aos outros vakulungwa e dentro de sete dias receberá a nossa resposta.

- De que forma o major terá a tal resposta? – Quis saber o emissário com uma ponta de incredulidade.

Mbavala sentou-se entregando a bengala um dos súbditos. Humedeceu os lábios com a lingua e pensativamente, respondeu:

- Será muito simples. O nosso silêncio no sétimo dia significará o nosso consentimento à nova autoridade e a nossa presença no vosso acampamento será o sinónimo de recusa à tal dita autoridade branca.

- Muito bem. – Disse o branco torcendo o nariz. – As tuas palavras serão transmitidas ao major.

Mbavala não pronunciou uma palavra se quer e nisto, o emissário e seu acompanhante despediram-se do velho e sairam da aldeia admirando a grandeza e beleza da povoação e o prestígio que gozava o nkulungwa que há pouco tempo haviam tido a oportunidade de o conhecerem. Ao atravessarem o cerco da aldeia feita de troncos enormes de árvores seculares para impedir a entrada de animais ferozes e gente intrusa, os dois homens embrenharam-se pela floresta adentro deixando-se de avistar-se, devido as trevas que já começavam a cobrir o ambiente.

Já na povoação, Mbavala reuniu imediatamente os anciãos que compunham o conselho da aldeia, deu a conhecer a mensagem do major Neutel e rapidamente foram tomadas as posições cuja a realização dependia muito do pronunciamento dos demais vakulungwa das povoações de todo planalto makonde, incluindo os chefes do longinquo kundonde. Assim, uma vez que o nkulungwa Mbavala gozava de uma boa reputação entre os makondes do planalto e era o mais velho de todos vakulungwa e sua povoação era a mais expressiva do ponto de vista de grandeza e do número de aldeões, três dias depois houve na sua aldeia o grande encontro dos régulos makondes. Estavam no encontro os régulos Mbavala e seu súbdito Chilavi, Mbomela, Mbalale, Likama, Negomano, Machangano, Lidimo, Chipungo, Neengo, Nkapoca, Ntchingama, Kavanga, Nkwemba e Nachomwe.

O encontro começou, no terreiro da aldeia, no meio da manhã de um dia calmo e de céu coberto de nuvens brancas e cinzentas. Após um longo discurso do Mbavala explicando a razões que haviam norteado a convocação daquela historica reunião, os convidados foram chamados a tomar da palavra. Nisto, o nkulungwa Mbomela ergueu-se e com a voz fremente de emoção, disse:

- Caros irmãos! Nos tempos passados os nossos ancestrais resistiram a qualquer tipo de subjugação de outros povos. Hoje somos afrontados nas bárbas das nossas terras e da nossa gente por um povo branco e desconhecido. Face a esta infame provocação proponho ao povo makonde à resistência às intenções destes forasteiros que pretendem tomar de nós, de forma astuta, as nossas terras, o nosso povo obediente e respeitoso, o nosso prestígio secular, as nossas relações comerciais estabelecidas há séculos com povos de terras distantes e tudo o que é nosso e belo.

Mbomela sentou-se. O ancião havia se emocionado demasiadamente e a pressão arterial subira vertiginosamente. No entanto, Mbalale levantou-se e dirigiu-se aos presente de forma vigorosa:

- Estas terras e esta gente que nelas vive é nossa por herança. – Fez uma pausa para ordenar o seu raciocínio e logo voltou ao ponto onde havia interrompido. – Os nossos ancestrais deram-nos de presente pelo amor que tinham por nós, pela confiança e certeza de que eramos capazes de conduzir os destinos da nossa gente num clima de paz e harmonia social. Por todas estas e outras razões eu, Mbalale, nkulungwa de kunambalale, discordo categoricamente qualquer presença nas nossas terras de qualquer povo com intenções de subjugar-nos.

Nkapoca ergueu-se assim que Mbalale acomodou-se tremendo de extrema velhice. Muito calmamente o ancião disse:

- Estou sem palavras! As palavras que havia reservado foram-me tiradas pelos ilustres que por aqui falaram de forma sábia. Assim, sem mais demora digo: como os brancos querem guerra, então guerra deverão ter. Eu estou disposto a sacrificar gente da minha povoação em número que se julgar conveniente... Esta terra é nossa e não concordo que sejamos arrancados sem mais e nem menos!

No entanto, muitos vakulungwa discursaram naquela manhã histórica e todos eram favoráveis à afronta ao inimigo. Nisto, Mbavala pediu a palavra e ergueu-se vagarosamente. De seguida, olhou aos seus compatriotas e de forma calma confessou:

- Estou extremamente admirado pela bravura de todos vós. – Baixou os olhos, levou uma mãos nas costas e continuou erguendo os olhos. – Contudo, confesso-vos que estou com medo. Esses homens brancos fizeram chacina na zona leste do nosso planalto tudo porque, os nossos irmãos se rebelaram. Se tais irmãos tivessem ponderado a sua capacidade, de ponto de vista de meios de combate, se calhar teriam agido de maneira diferente ao invés de se entregarem ao fogo como se tratasse de carne de canhão.

Houve um murmúrio ensurdecedor, mas logo o velho Mbavala soube refrea-lo usando a sua carismática diplomacia.

- Esses homens brancos trazem armas enormes que cospem fogo mortífero e uma infinidade de armas ligeiras extremamente potentes mais que as nossas de fabrico caseiro ou adquiridas junto dos comerciantes estrangeiros. Por isso, eu não gostaria de ver os nossos jovens a morrer por uma guerra possível de evitar.

Houve um grande protesto contra o discurso do ancião, chegando alguns a chama-lo abertamente de cobarde. Contudo, Mbavala, continuou:

- Pelo que ouvi do emissário, os brancos pretendem trazer outro dinamismo na nossa sociedade preservando as estruturas tradicionais, promovendo o convívio pluri-étnico, respeitando a natureza da nossa organização social e os diferentes valores humanos da nossa sociedade. O que não acho ser má ideia!

Mbavala calou-se. O gesto foi imitado pelos demais participantes do encontro. Depois, o velho prosseguiu o discurso procurando mostrar aos demais vakulungwa a sua visão pacifista.

- Por todas estas razões, eu Mbavala, sou de opinião que não afrontemos o inimigo através de uma guerra, mas sim deixemos que venha conviver connosco através de um processo contínuo de aprendizagem mútua e assim evitaremos o derramamento de sangue.

O velho sentou-se e o terreiro foi invadido por uma onda pacífica de protestos. Entretanto, Ntchingama pediu aos demais para que se mantessem calado e depois, em voz baixa e tom solene, como de costume, disse:

- O nosso irmão Mbavala pede-nos que aceitemos os brancos que veem, tudo para que a nossa zona mantenha a paz e harmonia social que sempre se caracterizou. Cá por mim, concordo plenamente com a visão e expectativa do nosso irmão. Pode ser que a maioria de nós esteja errado da forma como encaramos esta situação e também é normal que os nossos espiritos exaltem-se demasiadamente. Contudo, devemos reconhecer que o inimigo tem um poder bélico e militar mais do que nós. Assim sendo e, na minha opinião, qualquer tentativa de resposta por meio de guerra o nosso povo sairá em desvantagem, pois trata-se de uma situação que nenhum de nós preveu. – Fez uma pausa para ordenar o seu raciocínio e continuou. – Se formos a ver a nossa capacidade de resposta veremos que é extremamente insuficiente porque as nossas previsões não iam mais do que uma possível guerra com uma tribo distante e gente com recursos similares aos nossos. Analisando desta forma a situação, sou obrigado pela circunstância a concordar com o ponto de vista do nosso irmão Mbavala. Não à guerra! Vamos evitar o derramamento de sangue no seio do nosso povo. Vamos aceitar conviver com o estranho e no fim de tudo, independentemente das suas atitudes futuras, verão que sairemos a ganhar e as gerações futuras saberão compreender a nossa posição e valorizarão o nosso sacrifício.

Dito isto sentou-se. O terreiro ficou silencioso durante alguns segundos e as intervenções que seguiram subscreveram taxativamente à intervenção do Ntchingama. Assim, passado algum momento, a reunião chegou ao fim e os régulos voltaram às suas povoações.

Ao entardecer aquele dia, o céu ficou sinistro e rugiu, vezes sem conta, como se lá lançassem dezenas de tambores vazios. Trovoadas ensurdecedoras e relâmpagos aparentemente mortíferos coriscaram os céus emitindo faíscas assustadoras que formando alternadamente ângulos salientes e reentrantes acabavam se lançando rapidamente no coração da floresta. Este espectáculo natural cheio de luz e cores durou muito tempo até que ao principiar a noite uma chuva assustadora despenhou do céu ruidoso e luminoso. Choveu torrencialmente toda noite criando cursos de água que ameaçavam derrubar palhotas erguidas nos caminhos da água e as que tinham capim de cobertura reduzido. Ao alvorecer, a chuva parou e um belo dia nasceu com o céu azul e claro.

Uma semana depois, demanhã, o contingente militar português entrou no planalto makonde sem resistência e sob o olhar indiferente do Mbavala e apreciação curiosa dos aldeões. Naquela manhã calma e clara, o contingente militar marchou orgulhoso no meio da povoação exibindo, sobretudo, a sua superioridade militar e bélica e no coração da actual vila de Mueda, próximo da fonte Mweda, acampou içando de seguida a bandeira lusitana, numa acção clara de demonstração da mudança do curso da história do povo nativo.
- Allman Ndyoko, Moçambique, 04/03/2008

GLOSSÁRIO:
Lutandove – cama composta de base de estacas e atravessada com cordas tecidas com palha;
Karibo – Bem-vindo; Servido;
Kunambalale – Povoação de Mbalale;
Vakulungwa – O plural de nkulungwa.


11/13/09

MWEDA


(Gravura fictícia formada por imagens livres recolhidas na net)

O dia estava de inverno, claro, frio e com um grande céu azul e luminoso. Mweda e Dimike, duas belas raparigas vamwanga, desciam alegres as encostas do lado sul do planalto dos makondes, falando do triste fim do Nangonga, um jovem caçador da linhagem milandje, que morrera há dias atrás na floresta de kundonde vitima de ataque de abelhas quando tentava retirar mel de uma colmeia. As raparigas caminhavam cuidadosamente, uma atrás da outra, seguindo um caminho íngreme e serpenteante que descia a encosta abaixo até a um conjunto de arbustos rodeados de um imenso tapete de verdura fresca, onde desde os tempos imemoráveis as mulheres vamwanga colhiam os saborosos ingumbuli e muaka para o consumo.

Ingumbuli e muaka eram verduras apreciadas pelos makondes antigos e eram muito abundantes na zona baixa do lado sul do planalto makonde, mercê às condições climáticas associadas à humidade oferecida pela natureza naquele recanto do planalto. Estas verduras eram cozidas, temperadas com o pó de amêndoa de frutos silvestre e salgadas com maka e, normalmente, eram acompanhadas com ugwali de farinha de mapira ou mexoeira produzida no planalto pelos aldeões.

Entretanto, as raparigas chegaram junto aos arbustos, embrenharam-se pela pequena mata à dentro e onde se achava muito ingumbuli e muaka pousaram no chão vitumba que cada uma trazia nas costas amarrada com capulana, como se de bebé se tratasse, e que pretendiam enche-las de água do rio Chudi ao regresso. Dimike afastou-se para um lado e Mweda para o outro, não muito distante uma da outra.

A mata estava silenciosa. Aqui e acolá à uma distância razoavelmente distante, ouvia-se aves a piarem nos ramos e no céu azulado andorinhas e outras aves batiam as asas livres e desinteressadas.

As raparigas começaram a colher as verduras em silêncio guardando, punhado por punhado, nas capulanas que haviam servido para amarrar vitumba nas costas. Passado algum momento, Mweda aproximou-se a uma pequena porção de terra, curiosamente, muito húmida. Afastou cuidadosamente a vegetação que crescia em volta e de súbito, uma pequena porção de água borbulhou rapidamente. Mweda assustou-se. Olhou desconfiada a água que brotava da terra e de seguida, gritou:

- Dimike, Dimike... venha ver este incrível milagre!

Dimike assustou-se. Deixou no chão a verdura que colhera e rapidamente precipitou-se para junto da Mweda que não parava de admirar o fenómeno que se manifestava.

- O que foi? – Quis saber Dimike assim que se encontrou junto da amiga.
- Olha para esta nascente! – Mweda sorriu olhando a interlocutora com orgulho próprio. – Não é incrível avistar esta maravilha nestas bandas desprovidas de água?
É... – Concordou Dimike ajoelhando-se maravilhada junto da nascente que ainda borbulhava sem parar.
- Vamos cavar. – Sugeriu Mweda colocando-se de côcora.
- Vamos, vamos.

As raparigas limparam em volta da nascente, cavaram um pequeno buraco que rapidamente foi coberto de água e no fim, encheram vitumba de água limpa e cristalina e de seguida, sairam dali para casa felizes e anciosas de dar a conhecer a toda gente da povoação a boa nova.

Quando chegaram a povoação, o sol estava ao meio do céu. A aldeia estava quase deserta e muitos dos seus aldeões haviam ido às machambas deixando no terreiro da povoação apenas uma dezena de escultores, ferreiros e outros artesãos atarefados nos seus afazeres e embalados numa boa e animadora conversa. Pelas ruelas da povoação pequenos grupos de crianças nuas, na sua maioria, e razoavelmente nutridas brincavam alegres dando vida a pacata povoação dos vamwanga de Kaudje. Pouco tempo depois, Dimike e Mweda chegaram a casa da vovó Nkanama, onde a última vivia, e sem perder o tempo as raparigas contaram tudo o que haviam presenciado na baixa sul do planalto.

No entanto, a noticia não tardou a espalhar-se pela povoação inteira de tal modo que, até ao entardecer daquele magnífico dia a notícia chegou a outras povoações vizinhas. Nisto, na manhã do dia seguinte, muito cedo, o nkulungwa Kaudje mandou homens da povoação para junto com as raparigas irem certificar-se da veracidade dos factos que no dia anterior haviam alimentado, de certa forma, as conversas dos aldeões. Ao chegarem no local indicado, os homens constataram o que as raparigas haviam narrado e maravilhados cavaram em volta da nascente por forma que a água formasse uma lagoa considerável, onde permitisse os aldeões desfrutarem da água sem complicações. Quando terminaram, alguns homens tomaram banho, encheram as cabaças de água e regressaram a povoação, onde perante o conselho dos anciãos confirmaram o que as raparigas haviam narrado. Por unanimidade, o conselho decidiu baptizar a fonte pelo nome de Mweda e os aldeões passaram a desfrutar da sua água limpa, pura e cristalina.

Contudo, como antigamente, entre os makondes, quem descobrisse algo extraordinário morria por forças estranhas, Mweda, como não podia deixar de ser, morreu dias depois! Todavia, o seu nome ficou marcado na memória do seu povo, quem em 1913, aquando do conhecimento e aproximação dos portugueses com os makondes, soube influenciar o colonizador de forma astuta a chamar o planalto dos makondes de Mueda, em memória à Mweda que em tempos muito distantes descobrira a nascente de água limpa, pura e cristalina nas encostas do lado sul do planalto.
- Allman Ndyoko, Moçambique, 13/02/2008

Glossário
VamwangaLinhagem de Mwanga que também era conhecido por régulo de todos makondes da sua linhagem.
Milandje – Alguém da linhagem milandje.
Kundonde Nas baixas do planalto.
Ingumbuli Verdura comestível, espécie espinafre.
Muaka Verdura também comestível quase com características de cacana muito abundante na região sul de Moçambique.
Vitumba Plural de cabaça em makonde, recipientes usados pelos makondes antigos e contem porâneos para conservar e transportas água.
Nkulungwa Ancião que automaticamente era régulo na denominação portuguesa.
MakaCinzas de espiga de milho antigamente usado pelos makondes para salgar os alimentos.
Ugwali Xima ou massa de farinha.


10/24/09

A Intrusa - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)


:: Allman Ndyoco pode ser lido em "Contos e Poesias do Índico" ::


É noite. O céu escuro e baixo hospeda nuvens brancas que refletem o seu clarão aos bairros menos iluminados. De longe, ouve-se dois bêbedos cantarolando numa barraca em tom alto e num outro ponto do bairro um pastor prega o evangelho, em changana, aos crentes e a sua voz melódica atravessava o bairro na boleia do vento que sopra fraco.

Um avião estrangeiro aterra na pista que fica defronte da casa do Leo. O barulho do aparelho se prolonga até junto do limiar da pista e os reactores cumprem um silêncio tumular. Junto a relva, em frente à casa, grilos cantam pausadamente preenchendo o silêncio com musicalidade natural e hábitual.

Sentado na varanda da cozinha, Leo aprecia a noite e deixa a imaginação percorrer o caminho do passado: lembra-se de momentos alegres da vida, sorrí perceptivelmente, depois puxa o ar da noite para os pulmões e no fim, liberto-o demoradamente como se os pulmões fossem duas câmaras-de-ar pequenas em pleno vazamento.

A brisa nocturna acompanha-lhe amigavelmente e pouco-a- pouco, Leo perspectiva o amanhã ordenando as ideias no meio do silêncio e do escuro da noite. De repente, uma mulher, dos seus vinte e nove anos de idade, irrompe o quintal correndo apavorada.

- Hei, onde pensa que vai? – Gritou Leo aborrecido pela invasão inesperada ao domicílio e interrupção involuntária dos seus pensamentos.

A mulher, gorda, baixinha e trajada de uma calça e camiseta branca aproximou-lhe ofegante. Estava exausta de tanto correr. Medrosa dos seus perseguidores procurou, como se de um cão se tratasse, esconder-se ao lado do Leo olhando assustada por todos cantos da direcção por onde havia surgido. Leo olhou-a debaixo ao topo e vice-versa, e, depois quis saber:

- De quê foges, mulher?
- De polícia, tio. – Respondeu visivelmente dominada pelo medo. – Eu vinha do salão de cabeleireiro e junto ao muro do Durão avistei três policias a patrulhar o bairro.

Fez uma pausa para descansar. A mulher estava realmente exausta! A respiração ofegante dificultava a fala. Nisto, após um compasso de espera, prosseguiu:

- Fugi dos polícias com o medo de exigir-me bilhete de identidade que nem tenho.
- Achas que isso é motivo suficiente para empreender uma fuga de natureza a que agora acabas de me mostrar?
- Héeee. – Encolheu os ombros esboçando um sorriso forçado, depois, lançou o olhar a rua e acrescentou: – Fiquei com medo. É que, os homens quando me viram a fugir, perguntaram-me do que fugia, mas como tenho esse hábito de fugir autoridade, logo as pernas obedeceram ao impulso de fuga.
- Eles não te vão exigir absolutamente nada! – Sossegou-a. – Estão simplesmente a fazer seu trabalho de rotina, como forma de prevenir qualquer acção criminosa.

A mulher sob o domínio de medo ainda mantinha-se escondida nas costas do Leo, que não parava de se divertir com aquele espectáculo gratuito. Ela estava demasiadamente apavorada e o seu interlocutor achou anormal esse seu estado de espírito. Nisto, saiu para confirmar o facto. Espreitou a rua nas duas extremidades e não achou polícia algum. Deu meia volta e juntou-se novamente a mulher que agora se mantinha apeada na sombra escura da casa.

- Já devem ter ido. – Disse-lhe exibindo um leve sorriso nos lábios. – Agora penso que já podes retirar-se do meu quintal.
- Foram mesmo? – Saiu do escuro segurando chinelos nas mão para qualquer eventualidade empreender mais uma fuga espectacular. – Mas podem estar escondidos algures a minha espera.
- Não pode ser. – Atalhou. – Eles não precisam de ti e por isso se foram. E mais, hoje em dia já não é prática da polícia, em alguns pontos do país, exigir na rua e de qualquer maneira a identificação do cidadão, salvo em casos de extrema desconfiança…

Leo pareceu ter sido insuficientemente convincente com a sua argumentação, pois, em seguida, a mulher assustou-se em demasia ao avistar dois crentes de uma seita religiosa trajados de batinas brancas e azuis. A mulher riu-se perdidamente do sucedido e no final, disse:

- Não sei o que tenho ao certo com a farda policial ou militar. – Deixou cair no chão os chinelos propositadamente e calçou-os retomando no ponto onde havia interrompido. – Sempre que vejo alguém uniformizado com aquelas fardas entro em pânico. O meu desejo nesse momento é sumir do sítio.
- É estranha a sua atitude. - Observou Leo parado em frente da mulher. – Já foste presa alguma vez?
- Que isso, tio. – Fez vinco na testa e continuou. – Vira a boca p´ra lá. Shiii, deus me livre.
- Então, donde vem o seu medo por alguém fardado a polícia ou a militar?
- Não sei dizer.
- Quantos anos tens?
- Advinha.
- Vinte e dois…
- Não. – Sorriu. – Trinta e três.
- Então, viveste os tempos difíceis do país?
- E como! – Abraçou sua bolsa e iniciou a caminhada até ao limiar do quintal.

Em pouco tempo Leo percebeu o trauma da mulher e para confirmar, inquiriu:

- Nesse tempo passado terás sido submetida a uma situação embaraçosa em que no meio disso te exigiram identificação?

Atravessaram a porta do quintal que se encontrava entreaberta e já na rua iluminada, respondeu-lhe:

- Foram várias situações. Lembro-me que há muito tempo, quando voltávamos da escola a noite sempre eu e minhas colegas éramos interpeladas pela polícia, pelos militares e milicianos e exigiam-nos identificação. Quem não tivesse passava uns bons bocados.
- Como?
- Dormir na cela, limpar casas de banho das esquadras, subornar para ser liberto ou então, se for mulher, entregar as partes íntimas ao chefe ou então assistir impotente a sua própria agressão física…

Leo acompanhou a mulher até ao ponto onde dissera ter visto agentes policiais. Pararam alguns instantes e não viram nenhum polícia por ali. Retomaram a marcha conversando e andando lentamente como se se conhecessem há anos. Agora a mulher achava-se tranquila e conversava sem preocupar-se em olhar nos lados.

- Quer me parecer que você não consegue esquecer esse maldito tempo.
- Não consigo esquecer. Marcou-me prufundamente e fico aterrorizado quando vejo alguém vestido a polícia ou a militar.
- Estás traumatizada. – Balbuciou Leo extremamente comovido.

No entanto, mais adiante Leo despediu-se da mulher, encorajou-a a esquecer o passado e prometeram-se avistar mais vezes quando a oportunidade permitisse.
- Por Allman Ndyoko - 09/10/2009

10/13/09

O SUSTO - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Clique na imagem para ampliar - Imagem original daqui)

:: Allman Ndyoco pode ser lido em "Contos e Poesias do Índico" ::

Tinha saído da casa do Pascoal, um amigo de se tirar chapeu, fazia uns vinte minutos, se a memória não me induz ao erro, e caminhava na picada que atravessa por trás do Seminário Irmãos Maristas da Matola e se prolonga em direcção a Salina. Era uma manhã de sol e céu azul, dia próprio para um passeio a dois ou solitário.

Atravessei uma ruela que descia as quintas de grandes bastardos e continuei a marchar despreocupado e recolhido em pensamentos profundos. Ia pensando nas minhas coisas, quando de súbito vi uma Mazda 323, fechado, cor de vinho e apinhado de jovens vindo a minha frente rolando lentamente os pneus no chão da picada. Duas belas raparigas iam caminhando a minha frente, a uma distância de dois metros, e a rua achava-se deserta de gente como era de costume.

O silêncio era quase absoluto a ponto de se ouvir nitidamente o chilreio dos pássaros que vinha das espinhosas que serviam de muro na maioria das quintas daquela rua.

O carro passou lentamente ao meu lado esquerdo e cinco homens de cabeças rapadas e rostos assustadores dirigiram-me um olhar desconfiado. Todavia, continuei a caminhar. Quando fiz uns sete passos o carro parou e desceram dois homens fortes com caras de maus.

- Bróóó! – Disse um dos homens que descera do carro da porta direita.

Olhei atrás e vi os homens dirigindo-se ao meu encontro. Já no meio da distância que nos separava, o tipo que descera da porta esquerda disse, como se falasse consigo mesmo:

- Pára aí.

Parei. As raparigas que seguiam a minha frente prosseguiram a marcha sem darem em conta o que sucedia e, nesse instante, o meu coração pulou de medo. O corpo gelou imediatamente; Os olhos empalideceram e os ouvidos ficaram quase surdos. De repente, pensei sem saber porquê:

- “O criminoso não tem cara e hoje a criminalidade anda à solta por aí”.

Enquanto os homens se aproximavam deitei o olhar nas duas extremidades da rua, mas, como de costume, ela estava deserta de gente criando, assim, facilidade para a acção de qualquer malfeitor. Balbuciei umas palavras que não me recordo se era uma reza ou não e no fim, para me tranquilizar, pensei:

- “Devem ser uns forasteiros perdidos querendo saber qualquer coisa”.

Este pensamento ajudou-me de tal forma que, em tão poucos instantes, o meu coração deixou de pular e manti-me sereno e despreocupado.

- Somos polícias. – Disse um deles assim que parou ao meu lado direito. E tirando, do bolso traseiro das jeans que trajava, uma carteira para exibir, o tipo voltou a sossegar-me olhando-me como se estivesse em exposição: - Não tenhas medo, apenas queremos confirmar uma coisa.

A carteira do homem saiu do bolso com muita relutância, o dono abriu-a diante dos meus olhos e estranhamente vi um charro de maconha majestosamente deitado por cima de um cartão azul da Comissão Nacional de Eleições que o homem precipitou-se a me apresentar de raspão. Tive vontade de rir, mas contive-me. O homem guardou a carteira no bolso esboçando um rosto sério, ajeitou os óculos escuros que trazia pendurados no nariz, olhou os sulcos dos meus sapatos no chão e no fim, com uma voz rouca, quis saber:

- Posso ver a sola do seu sapato?
- À vontade! – Levantei o pé direito para trás e depois o dirigi na sua direcção.
- Não é. – Murmurou o homem abanando a cabeça negativamente.

O outro homem que se achava ao meu lado esquerdo apalpou-me a cintura e para lhe facilitar o trabalho ergui a camisete que envergava.

- Podes ir. – Anuiu o meu interlocutor enquanto o companheiro, que parecia o mais velho, olhava-me com desconfiança.

Calei-me. Dei meia volta e prossegui a caminhada com o destino ao chaveiro das Bombas de Combustíveis Madruga. Nas minhas costas o carro arrancou e continuou a andar lentamente como no inicio. Quando dobrei a esquina do muro da Direcção Provincial da Educação e Cultura e subi em direcção a paragem de João Mateus, questionei-me:

- “O que deve ser isto? Com quem me confundiram e porquê?”.

Como é lógico, não obtive respostas para os meus questionamentos. Contudo, achava muito estranha a atitude daqueles homens e não acreditava que me desembaraçara deles. Este sentimento era natural a avaliar o susto e o perigo que corria caso aqueles homens fossem assassinos no sentido real da palavra.

Entretanto, andei uns cem metros, passei umas duas senhoras que vendiam cigarros e doces e mais adiante voltei a cair em profundas meditações.

A vida na rua corria normalmente acompanhada de um fluxo rápido de automóveis. As pessoas cruzavam os passeios num vai e vem interminável enchendo de murmúrios o ambiente.

Passei um grupo de jovens que conversava numa sombra do passeio que usava e de repente, o Mazda 323 dos homens que haviam me interpelado inicialmente parou na berma da estrada, precisamente, ao meu lado. Os mesmos homens desceram do carro e vieram a minha frente. Parei desconfiando a atitude dos tipos e de seguida, um deles disse:

- És suspeito. Tens que aguardar até que venha alguém confirmar.

Estas palavras soaram-me como um tiro e ao fim do cabo, calei-me. Abanei a cabeça em silêncio e suspirei profundamente.

- Não quisemos te deter lá para não pensares que somos assassinos ou uma coisa parecida. – Acrescentou o homem de óculos escuros.

- Fique sossegado. – Retorquiu o outro homem. – É uma questão de tirar as coisas a limpo.
- Compreendo. – Limitei-me a balbuciar.
- É que aquela rua que usaste sucedem muitos assaltos devido às condições que ela em si oferece e nós estamos, precisamente, a trabalhar para acabarmos com essa onda de criminalidade.

O motorista do Mazda ligou para alguém do telemóvel, falou uns breves instantes e quando desligou o aparelho, chamou o homem de óculos escuros. Confidenciou-lhe alguma coisa e no final, subiu para o carro, onde se acomodou a espera do confirmador que pelo visto não se encontrava muito longe daquele local. Passado algum momento, um Nissan Champion branco, dirigido por uma mulher mulata parou atrás do Mazda dos agentes. Uma rapariga que vinha ao lado da mulher, também mulata, olhou-me com manifesto interesse e o mesmo gesto foi imitado pela condutora. Nesse momento notei que estava metido num sarilho imperceptivelmente e que só escaparia por um milagre divino. O diabo em pessoa estava ao meu encalço e tudo dependeria da palavra e fé da senhora do Nissan Champion. Balbuciei rapidamente uma reza mal recitada e no fim, entreguei o meu destino a deus.

A mulher desceu do carro, chamou o agente que se encontrava ao meu lado e confidenciou-lhe algo. O homem dirigiu-se ao Mazda, onde conferenciou com os ocupantes do carro e mais tarde me chamou. Ao encontrar-se junto dele estendeu-me a mão, dei-lhe a minha e apertamo-nos efusivamente.

- Desculpa pela situação que lhe fizemos passar. A senhora confirmou-nos que não és a pessoa que precisamos.
- Não tem de quê. – Respondi-lhe desembaraçando-me da mão do homem.
- Adeus.
- Adeus.

Virei-lhe as costas e afastei-me dali andando lentamente e admirando, sobretudo, a sinceridade da senhora mulata que pelo visto os malfeitores haviam lhe assaltado há dias atrás quando metia o carro no quintal, na rua onde os agentes haviam me interpelado inicialmente.
- Por Allman Ndyoko, 07/04/2006.

- O Autor Francisco Absalão:
Nome artístico -Allman Ndyoko;
Nasceu - Em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
Residência actual - Maputo.
- Produto da nova vaga de escritores moçambicanos dos anos 90, cursou História da Literatura Portuguesa, promovido pelo Instituto Camões em parceria com a Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane. Tem textos literários publicados em antologias, como: Histórias do Mar (2005) e Esperança e Certeza II (2008). Venceu os seguintes concursos de contos: Historias do Mar (2005), Contos e Bandas Desenhadas - promovido pelo Instituto Camôes em Maputo/Moçambique (2006). Podem encontrar textos literários de sua autoria em seu blogue particular "
Contos e Poesias do Índico" e publicados em várias revistas e jornais electrónicos no Brasil, com destaque para a editora online Blocos e Recanto das Letras.
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10/02/09

As Moças - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Clique na imagem para ampliar)

:: Allman Ndyoko pode ser lido em "Contos e Poesias do Índico"::

Nunes devorou com gosto o peitoral e a asa do frango e batatas fritas, à moda KFC, e com o pão integral limpou no prato uma pobre nódoa de molho de tomate e maionese e saiu do Take away rotando e transpirando. Limpou a boca com as costas da mão direita e precipitou-se a apanhar o “chapa” que lhe levaria lá para as bandas do Xiquelene, bairro periférico de Maputo. Ao acomodar-se, ao lado de uma janela, como era hábito, abriu-a até a metade para arejar.

Era fim da tarde. Tarde muito quente, de calor húmido e incómodo. Lá fora do “chapa” o barulho dos motores misturados ao murmúrio dos populares que faziam da paragem de Benfica o seu ponto de trânsito com destino aos diversos bairros suburbanos, como são os casos de: Matendene, Zimpeto, Malhazine, Magoanine, Hulene e outros, era ensurdecedor. Entretanto, o motorista fez duas acelerações absurdas para chamar atenção dos passageiros e arrancou bruscamente para que um outro “chapa” não o vedasse a passagem e parou na única e estreita saída condicionando o trânsito e provocando um mar de protestos que se manifestou por meio de de buzinadelas de outros automobilistas como se quisessem chamar à quem de direito a restaurar a ordem e paz através de repreensão daquele acto deliberado que é característica, já de barba branca, de muitos chapeiros da praça.

- Xiquelene, Xiquelene sentado! – Gritou o cobrador totalmente indiferente aos actos de protesto dos demais automobilistas que ansiavam retirar-se daquele ponto infernal de trânsito.

Despreocupados também, os passageiros iam subindo ao carro sem pressa e pouco-a-pouco os acentos lotaram e finalmente a saída ficou transitável e o cheiro da fumaça resultante da queima do diesel nos motores dos “chapas” e os protestos ensurdecedores desvaneceram. Já em anadamento, o cobrador, um jovem de uns vinte e poucos anos de idade e com aparência de um drogado, fechou a porta do Toyota Hiace arastando-a e provocando um chiado de arrepiar os dentes.

O carro deslizou veloz no asfalto e na rotunda da Missão Roque descreveu à direita obrigando os passageiros a inclinar-se para o lado direito e no fim, tomou a direcção de Magoanine.

- Estamos a pedir reduzires a velocidade, senhor motorista. - Gritou uma rapariga dos seus desaseis anos de idade sentada no último banco traseiro do “chapa” na companhia de três amigas que falavam em voz excessivamente audível. Riu animada pelo seu grito e acrescentou. - Nós outros, senhor motorista, temos ainda filhos menores por criar... veja se não incurta a nossa vida.

As raparigas riram todas satisfeitas com a advertência feita ao motorista e continuaram falando em voz excessivamente audível. Já próximo à paragem de Malhazine, uma das raparigas vociferou:

- “Quebrador”!

O jovem cobrador torceu o pescoço e inquiriu com a cabeça.

- Diz-me quantos passageiros estão neste “chapa” e quanto vão pagar.

- O que tu queres fazer com essa informação? - Quís saber o cobrador esboçando uma expressão facial de poucos amigos.

- Quero pagar-lhes o “chapa”, porque vejo que muitos deles têm cara de pobreza.

As quatro raparigas desataram a rir animadas, sabe-se lá com que raio de droga.

- Não é muito dinheiro, passageira. – Respondeu depois o cobrador brincalhão. – São apenas cem meticais... só.

- Tá bem. – Respondeu uma delas com uma voz rouca.

Uma das raparigas que parecia a mais nova, ligou um dos toques do seu Nokia 1200 e pôs-se a cantarolar algo despido de nexo. E, como combinação se tratasse, os restantes passageiros, todos mais velhos que as raparigas sem educação, voltaram-se para elas e de forma desordenada, pediram:

- Deixem-nos viajar em paz, por favor!

- Não estamos neste carro a viajar de favor. - Acrescentou um deles que ostentava uma calva tímida e uns cabelos grisalhos.

-Senhor motorista! - Gritou umas das raparigas que parecia ter uns quinze anos. – Pára o “chapa” para descer quem não aguenta viajar connosco.

Desataram novamente a rir e a assobiar cantarolando uma música do Zico.

- Esta geração, esta geração! – Lamentou o homem de calva tímida abanando a cabeça. – Muito novas e com muita vida pela frente, mas estão entregues às bebidas alcóolicas.

-É uma geração perdida. - Concluiu Nunes intimidando as meninas com um esboço facial feio.

O truque de um esboço facial feio pareceu ter dado certo, pois, temporariamente o barulho das meninas cessou. Mas, momentos depois, voltou a eclodir o barulho já com intensidade aborrecedora.

- Porra pá, Zaida, fizemos mal termos fugido aquele “kôta”. – Disse uma das raparigas denotando cansaço e ar de quem passou o dia se enchendo a cara. – Até este momento, se tivessemos ficado a “matrecar” o gajo, estariamos a beber “maningue” ampolas de cerveja.

- Viram aquela carne assada que esquecemos de levar? – Inquiriu uma das moças com lábios molhados e aparentando ter ficado com água na boca.

- A Tininha é que é culpada, porque logo que aquele senhor começou a querer as partes íntimas e a pegar-lhe torta e direita veio com a estória de fugirmos dalí.

-Não se preocupem minhas amigas. – Sossegou Tininha, pelo visto, a mais fala barato de todas. – O “kôta” pensava que ia pegar-me e molhar-me de prazer de borla, mas eu, Tininha, lhe mostrei que sou mais esperta que ele.

-Hemmmm? – Inquiriram as amigas visivelmente felizes,

-“Bati-lhe” quinhentos “paus”, minhas “sister’s” e temos “taco” para chupar tantas cervejas que quisermos.

- Por falar nisso, agora tou a lembrar-me que na minha bolsa – Zaida ergueu uma bolsa preta e agitou-a. – ainda temos meia garrafa de whisky.

O “chapa” parou na paragem da primeira rua. Nunes desceu e o carro arrancou enquanto as raparigas continuavam em alvoroço provocando com palavrões qualquer automobilista que, naquele momento, ousasse ultrapassar o “chapa” que transportava as raparigas mal-educadas. Parou na margem direita do asfalto e esperou que uma fila enorme de carros interrompesse a marcha, e quando assim aconteceu, atravessou o asfalto com prudência e mergulhou-se no meio das primeiras casas de Hulene “B” pensando na situação de vulnerabilidade ao alcóol e a infecção por doenças sexualmente transmissíveis em que aquelas adolescentes se expunham, achando que tudo o que faziam era o melhor pra as suas jovens vidas, ignorando visivelmente todos perigos que aquele estilo de vida podia transportar.
- Allman Ndyoko, 21/09/2009.

- Vocabulário:
Kota - Pessoa mais velha, que pode ser pai, mãe, tia, etc.
Chapa - Autocarro de transporte semi-colectivo de passageiros.
KFC - Loja de origem estadunidense com filiais na África do Sul, especializada em venda de frangos confeccionados.
Matrecar - Enganar, aldrabar...
Maningue - É um termo moçambicano que quer dizer muito.
Bater - Levar algo sem o consentimento do proprietário, roubar...
Sister’s - Irmãs ou amigas, isto no contexto moçambicano.
Take away - Local onde se confeccionam comidas rápidas.
Quebrador - É a forma pejorativa de denominar o cobrador dos transportes semi-colectivos.
Paus – É um calão usado com frequência pelos jovens moçambicanos para quantificar o dinheiro (metical) ao invés de chamá-lo pelo nome.
Taco – Dinheiro. É também um calão usado pela juventude moçambicana.

- O Autor Francisco Absalão:
Nome artístico -Allman Ndyoko;
Nasceu - Em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
Residência actual - Maputo.
- Produto da nova vaga de escritores moçambicanos dos anos 90, cursou História da Literatura Portuguesa, promovido pelo Instituto Camões em parceria com a Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane. Tem textos literários publicados em antologias, como: Histórias do Mar (2005) e Esperança e Certeza II (2008). Venceu os seguintes concursos de contos: Historias do Mar (2005), Contos e Bandas Desenhadas - promovido pelo Instituto Camôes em Maputo/Moçambique (2006). Podem encontrar textos literários de sua autoria em seu blogue particular "Contos e Poesias do Índico" e publicados em várias revistas e jornais electrónicos no Brasil, com destaque para a editora online Blocos e Recanto das Letras.

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9/23/09

Nostalgia - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Fotografia original realizada em praia de Fortaleza-Ceará-Brasil por Gotael - Clique na imagem para ampliar)

Hoje passei na rua do avô Buanamele na zona de Kumilamba, no histórico bairro de Paquitequete. A sua cadeira de descanso e de movimento ondulante e contínuo balançava na varanda de macuti a sós e ao sabor do vento, inspirando aos transeuntes a melancolia e incredulidade no que sucedera ao fiel companheiro das sextas-feiras à tarde.

A cadeira balançava continuamente no meio da brisa do mar, do murmúrio dos habitantes e das palmeiras bailantes, do grasnar pausado e melódico dos corvos, dos vôos rasantes e atrevidos dos milhafres, do rufar persistente de batuques de tufo, da pacífica convivência do islamismo e cristianismo, da beleza singular das mulheres, do sol abrasador de Setembro, enfim, no meio da doce melodia das linguas kimuane e macua entrelaçados coniventemente ao longo dos séculos.

Na varanda onde sempre avô descansava recitando o alcorão, vestido de túnica branca de neve e cofió com bordados multicolores, simbolo do islamismo, o ambiente era lúgubre; Já não se ouvia mais salama e alihandolilahè ditos de viva voz e nem gargalhadas animadas como era hábito.

No interior da casa, que é de pau-à-pique, rebocada de matope e coberta de macuti, só o miar agudo e insistente de gatos marcava a presença preenchendo o vazio como se reivindicassem a morte do avô ou reclamassem a solidão e o silêncio incómodo que se instalara alí desde que o mar, fiel companheiro do avô, traira-lhe roubando-o a vida e escondendo o corpo nas profundezas verdes das suas águas, numa manhã prateada, de céu acinzentado, chuvoso e de tempestade repentina.

Incrédulo, parei defronte da casa e imperceptivelmente o meu olhar perdeu-se no movimento contínuo da cadeira.

Os transeuntes olhavam a cadeira com curiosidade aguçada que se confundia com medo e respeito e relembravam o avô, certamente, sentado alí com o olhar perdido no horizonte e recolhido em seus pensamentos, numa sexta-feira qualquer após a sua habitual reza na mesquita, próxima à casa do sô Ruela, e depois de uma semana intensa de labuta no mar, balançando o corpo de frente para atrás num embalo profundo, de quando em vez, acompanhado de um recital melódico do alcorão aprendido na mocidade distante numa das inúmeras madrassas do Paquite.

O vento soprou suavemente. Pestanejei vezes sem conta e caí na emoção. Dois fios grossos de lágrimas desceram dos cantos dos olhos e precipitaram-se à boca abaixo. Suspirei profundamente. Enchi os pulmões de ar e no instante seguinte libertei-o. Manti-me alí parado como estátua se tratasse e de repente, após um ligeiro redomoinho estranho, ví avô Buanamele sentado na sua cadeira e acenando-me a mão. Tinha um olhar sereno e alegre. Seus lábios cor de mulala tremiam de emoção, deixando à vista os seus únicos quatro dentes incisivos. Tinha bochechas chupadas, olhos perdidos no fundo da órbita, corpo esquelético, pele cansada e profundas rugas na testa. Balançava na cadeira de frente para atrás trajado de túnica, cofió e chinelos de banho, seus vestes habituais às sextas-feira.

Fiz movimento para caminhar. Curiosamente as pernas cederam sem relutância e de seguida caminhei ao seu encontro. Quando me encontrei junto dele, acomodei-me medroso e atentamente na borda da varanda, sem muro, e bem próximo dele.

- Estás com medo? – Inquiriu o avô olhando-me de esguelha.

- Medo? Eu? – Sorri para disfarçar o meu real estado de espírito. – Não, avô.

- Sei que estás... – Sua voz era serena. Tinha aspecto facial descontraido, olhar meio ausente e um sentimento nostálgico. – Mas fique sossegado. Sou inofensivo.

- Obrigado. – Balbuciei.

- Ainda estou de viagem. – Comunicou ele evitando olhar pra mim. – Apenas quís vir reviver os momentos alegres que passei nesta varanda.

Mantive-me calado e com os ouvidos à sua disposição.

- Momentos que ficaram para atrás e na poeira do tempo. – Acrescentou o avô após uma breve pausa. – Anos em que pescadores com caixotes transbordantes de peixes à cabeça passavam de rua-à-rua e beco-à-beco deste bairro gritando de viva voz hopa, hopa, hopa – peixe, peixe, peixe. - e em seguida as mulheres todas lindas, vestidas de blusas de mangas compridas e curtas e capulanas multicolores amarradas à cintura, muitas delas com mussiro no rosto e lábios pintados de mulala, interrompiam os gritos dos pobres pescadores comprando o peixe, polvo e mexilhão que eram medidos aos montes modestos e justos que davam para alimentar meia dúzia de bocas sem grandes sobressaltos.

O avô fez uma pausa, durante o qual pareceu ordenar as suas ideias e depois, prosseguiu:

- Eram momentos em que o mar e os homens viviam em harmonia. Momentos em que o mar obedecia aos homens e os seus recursos pertenciam a todos. – Sorriu feliz com os olhos pregados no céu. Quando baixou-os, acrescentou: - Eram tempos em que os pescadores com os remos atravessados ao ombro e cestos de peixes suspensos na ponta do remo, distribuiam sorrisos à toda gente de tanta satisfação, gabavam-se do ofício que exerciam e viviam dele exclusivamente.

- São, com certeza, momentos que jamais voltarão! – Acrescentei com um tom de voz carregado de profunda tristeza.

- Sem dúvida! – Respondeu-me também com um tom de voz triste.

- Mas acho que nem tudo se perdeu na poeira do tempo.

- Com certeza! – Animou a sua face sulcada de profundas rugas e continuou. – Há coisas que o tempo não apaga! Por exemplo: o rubro que as acácias se revestem de Novembro à Janeiro; o simpático bailar das palmeiras gigantes; o vivo grasnar dos corvos; o azul do mar; a areia branca, macia e solta da praia; o cheiro do mar; as madrugadas prateadas; o pôr do sol silencioso; o bailar espectacular das casquinhas na crista das ondas; o verde do fundo do mar; enfim.

Calou-se. Olhou-me silencioso e depois, disse:

- Tenho que partir. – Arregalou os olhos erguendo as pestanas, encolheu os lábios e de seguida, prosseguiu: - Devem estar a minha espera para a viagem sem retorno.

- Viagem sem retorno? – Inquiri curioso torcendo o pescoço para o avô.

- Sim. – Sussurou inspencionando a nossa volta com os olhos arregalados e com um incómodo sentimento de medo.

- Schh, avô! Como assim? – Incentivei-o a continuar. – Diga-me, por favor, como se faz essa viagem?

Avô manteve-se calado e cabisbaixo. No entanto, baixei os olhos procurando perceber a maldita viagem sem retorno e quando ergui-os, a cadeira do avô balançava à sós. Levantei-me boquiaberto. Revistei o local em vão e rapidamente tratei de sumir dalí com o espírito dominado pelo medo e o corpo repleto de um calafrio estranho que deixava os cabelos tesos.
- Allman Ndioko, 23/08/2009.

- Vocabulário:

Macuti – Palha muito abundante no litoral da zona norte de Moçambique e usado para a cobertura de casa e fabrico de objectos de uso doméstico e pessoal (cestos, chapéus, leques, etç).

Tufo – Dança de mulheres kimuane acompanhada de batuques executados pelos homens.

Salama – Significa como estás? Normalmente usa-se quando se quer saber o estado de saúde doutro. Esta expressão provem do kiswahil e é usada em todas linguas de Cabo Delgado.

Alihandolilahè – Significa graças à Deus. A palavra deriva do Árabe.

Mussiro ou simplesmente n’siro – Pó derivado da fricção de um pedaço de uma árvore muito abundante no norte de Moçambique e usa-se para acrescer a beleza nas mulheres.

Mulala ou n’lala – Escova natural que usado pinta os lábios de um tom alaranjado.

Hópa ou Ihópa – Peixe.

Madrassa – Escola islámica onde aprende-se o alcorão.


- O Autor:
Francisco Absalão;
Nome artístico -Allman Ndyoko;
Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
Residência actual - Maputo.

Produto da nova vaga de escritores moçambicanos dos anos 90, cursou História da Literatura Portuguesa, promovido pelo Instituto Camões em parceria com a Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane. Tem textos literários publicados em antologias, como: Histórias do Mar (2005) e Esperança e Certeza II (2008). Venceu os seguintes concursos de contos: Historias do Mar (2005), Contos e Bandas Desenhadas - promovido pelo Instituto Camôes em Maputo/Moçambique (2006). Podem-se encontrar textos literários de sua autoria publicados em várias revistas e jornais electrónicos no Brasil, com destaque para a editora online Blocos e Recanto das Letras.


Este conto e anteriores publicados neste blogue são colaboração direta de Francisco Absalão para o ForEver PEMBA. Contos anteriores de Francisco Absalão publicados no ForEver PEMBA:

  • "Muaziza" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 17 de Maio de 2009 - Aqui!
  • "Os Leões do Diabo" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 18 de Abril de 2009 - Aqui!
  • "O Navio Ensombrado" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 13 de Fevereiro de 2009 - Aqui!
  • "O Incêndio" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 23 de Janeiro de 2009 - Aqui!
  • "O Suicídio" - Um conto de de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 02 de Junho de 2008 - Aqui!
  • "A Origem - Ou como surgiu o povo Makonde", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 29 de Março de 2008 - Aqui !
  • "O Turbilhão Lendário", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 24 de Outubro de 2007 - Aqui !
  • "O Nó Sagrado", um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) - publicado no ForEver PEMBA em 19 de Março de 2008 - Aqui !

5/18/09

MUAZIZA - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Clique na imagem para ampliar - Imagem do ForEver PEMBA criada a partir da composição de gravuras recolhidas na net)

Era meia noite e época de jejum dos maometanos. A noite estava muito escura e no céu, coberto de nuvens negras, os relâmpagos festejavam ao som do trovão coriscando-o e enchendo o ambiente de uma incrível e espectacular luminosidade.

Bacar, jovem mestiço, alto, respeitoso e muito dado à religião, seguia na mota no meio da chuva grossa que teimava cair oblíquamente sobre a cidade. Enquanto seguia a estrada asfaltada, serpenteante e quase infindável, e que divide o grande e o histórico bairro Paquitequete e Ingonane, e, conduz a zona de Kumilamba, a Honda ia expelindo do escape uma fumaça esbranquiçada que pouco-à-pouco diluia-se na escuridão da noite. No entanto, a estrada achava-se deserta de gente e do foco da luz da motorizada, via-se uma infinidade de pingo de chuva que velozmente atravessavam os raios do farol cabando por desfazer depois no asfalto, já há muito tempo cossado, donde erguia o cheiro intenso de poeira molhada que impiedosamente invadia as narinas dos transeuntes. Contudo, num movimento contínuo e barulhento a motorizada ia andando desafiando a chuva teimosa do verão, quando de súbito, um vulto fez sinal de boleia debaixo de um embondeiro à beira da estrada. O jovem abrandou a velocidade e parou assim que se aproximou. Lançou a vista para o vulto no meio da chuva e descobriu tratar-se de uma rapariga dos seus vinte anos de idade.

- Peço boleia, por favor. – Disse a rapariga na maior naturalidade.

- Para onde? – Questionou Bacar em voz alta obrigado pelo roncar ensurdecedora da mota.

- Vou a Kumissete.

- Eu vou a Kuparata, mas não faz mal. – Sossegou-a Bacar e prosseguiu. – O que um jovem como eu não pode fazer para um “foguete” de mulher como tu?

A rapariga sorriu, ergueu a capulana que trazia amarada ao corpo e apoiando-se ao ombro do Bacar, subiu para a motorizada. Ela tinha o corpo totalmente molhado. Tremia de frio e dir-se-ia tratar-se de um pássaro molhado. Ela vestia uma blusa de manga comprida, lenço à cabeça, duas capulanas multicolor e chinelos de banho. Tinha ainda um par brincos de ouro nas orelhas e um brinco no nariz. Os dois braços ostentavam meia dezena de pulseiras metálicas que soavam “tlintlim” sempre que fizesse algum movimento nos braços.

- Toma o meu casaco e veste antes que apanhes gripe. – Disse Bacar tirando um casaco preto de leda que trazia trajado.

- Não. Obrigada. – Atalhou a rapariga amavelmente. – Seria demais...

- Por quê?

- Basta a boleia que me deste.

- Não concordo. – Protestou docemente Bacar como se aquela rapariga conhecesse-a há muito tempo. – Se amanhã caires doente eu me sentirei culpado, por isso, se quiseres realmente a minha boleia, por favor, aceite a minha oferta.

- Tudo bem. - Respondeu a rapariga suspirando e depois de uma breve hesitação. – Eu aceito já que insistes...

Recebeu o casaco, passou-o nas costas e vestiu-se. Bacar virou-se para observa-la. Ela tinha um trato delicado, gesto carinhoso, olhar contagiante e apaixonante. Entratanto, a rapariga abotoou o casaco em silêncio e exibindo sua dentadura branca cor de marfim, passou os braços na cintura do seu interlocutor abraçando-o calorosamente e, no fim, vagarosamente pousou a cabeça nas costas. Bacar sentiu o contacto de seio túrgidos; Um ligeiro arrepio correu-lhe o corpo abaixo, partindo da ponta dos cabelos até aos pés. Igonorou o sinal e com uma atitude ingénua, quis saber:

- Podemos ir?

- À vontade. – Respondeu a rapariga com uma voz enrouquecida.

A mota avançou e pouco-à-pouco a chuva abrandou. O trovão já ouvia-se longe e o coriscar do relâmpago via-se entre as nuvens escuras no horizonte longínquo.

- Desculpa pelo atrevimento. – Disse Bacar em “kimuane” meio embaraçado pela beleza excepcional da rapariga. – Como te chama?

- Muaziza.

- Belo nome...

- Obrigada.

- Moras em Kumissete há muito tempo?

- Acho que sim, pois, é há sensivelmente dez anos.

- Já é muito tempo.

- Pode ser.

- Gostei muito de ti. – Confessou Bacar “despido” de qualquer jeito romântico, atordoante e “cambaleante” à que muitos “patetas” nos habituaram.

A rapariga riu comovida pelas palavras do seu interlocutor; Fechou os olhos e abraçou forte o motociclista. Bacar sorriu feliz pelo sinal e continuou a acelerar a motorizada seguindo o asfalto. Passaram a zona do velho Ruela, atravessaram Kuparata, deixaram Kumilamba e na ponte da estrada da zona do Seabra e que parte do Mercado Municipal e termina em Kumissete, a rapariga questionou:

- Tu gostas de qualquer mulher que vês e apanhas na rua?

- Não. – Riu. – Só que tu não és qualquer...

- O que te garante isso?

- Não sei... mas dentro de mim algo me diz que não és qualquer mulher.

- Em que sentido, mais ou menos?

- Falo em termos de beleza.

- Ahããã...

- Que tinhas pensado?

- Nada!

- E quanto ao que te falei?

- Acho melhor deixarmos para amanhã.

- Posso ficar sossegado que a resposta será positiva?

- Penso que sim. E mais, de momento estou só e sinto que preciso de alguém especial... e se calhar és tu.

Os dois riram-se perdidamente e no fim, Bacar disse:

- Fico muito feliz em ouvir isso.

A rapariga não respondeu e Bacar continuou a conduzir a mota. Depois, em frente à um pequeno mercado, mesmo à entrada das primeiras casas de Kumissete, a mota parou e o jovem quis saber:

- Para que lado te levo?

- Óh, por aqui. – Apontou para um beco escuro que conduzia ao coração do bairro. Em seguida, acrescentou. – Estava tão distraida e que me esqueci de tudo.

A mota fumegou, a cremalheira reclamou e numa aceleração suave, arrancou enternando-se no bairro. Já no bairro as ruas estava desertas, o silêncio era incómodo e a chuva tinha parado, ficando apenas o gotejar lento e paulatino dos telhados de “macuti”. De vez enquando, ouvia-se do alto dos coqueiros um fraco grasnido de corvos espantados pelo vento.

- Podes parar alí! – Disse repentinamente Muaziza apontando para uma casa caiada.

A mota parou em frente da casa indicada. A rapariga desceu e Bacar desligou o motor questionando:

- É aqui onde moras?

- Sim.

- Com quem?

- Meus pais e dois irmãos mais novos.

Fez-se silêncio. Mas depois, Bacar quis saber:

- E quanto ao dia de amanhã, o que deverei fazer para te chamar?

- Não é amanhã é hoje.

- Sim, tinha me esquecido que é madrugada. – Sorriu levando as mãos à testa.

- Chegas aqui aceleras a mota três vezes e toca a buzina também as mesmas vezes.

- Tu vais sair?

- Sem problema.

- Teus pais não são... como direi, “chatos”?

- Não.

- Então, vejo-te amanhã as sete da noite.

- Tudo bem. – Muaziza sorriu tentando olhar o jovem nos olhos no meio da escuridão.

Bacar pôs a funcionar a mota. Muaziza deu dois passos atrás e de braços cruzados no peito esperou que o jovem avançasse. Acelerou a mota duas vezes, virou o volante e ao engatar a primeira mudança para avançar, o motor desligou-se.

- Estava me esquecendo de entregar-te o casaco. – Disse Muaziza fezendo movimentos para despir o casaco.

- Não precisa. – Apressou-se Bacar a dizer. – Podes ficar com ele agora e quando eu vier mais logo levo-o de volta.

- Não vai te fazer falta?

- Não, minha flor!

- Se tens certeza, então eu fico com o casaco e assim aproveito sentir o seu calor e cheiro durante o tempo que resta para amanhecer.

- Posso pedir-te alguma coisa? – Quis saber Bacar visivelmente excitado.

- À vontade, meu bem.

- Peço um beijo para certificar-me que não estou a sonhar.

- Não, não, não. – Disse a rapariga passando levemente o dedo indicador pelos lábios do Bacar. – Só depois quando me falares das tuas reais intenções...

- Não tem de quê! – Bacar encolheu os ombros e disse. - Concordo plenamente contigo, penso que mais logo é o momento ideal.

Pôs a mota a funcionar novamente, fez duas acelerações suaves e, despedindo-se da rapariga com um aceno de mão, arrancou mergulhando-se no escuro.

No entanto, ao amanhecer, Bacar foi a pesca na zona de Mussanja na companhia de amigos. Enquanto pescava, o jovem manteve-se meditativo durante muito tempo e cada vez que mergulhava nas profundezas dos seus pensamentos, lembrava-se da Muaziza: seus olhos esbugalhados, lábios vermelhos de “mulala”, sua face redonda e cheia, suas ancas e pernas fartas, seu jeito carinhoso, olhar contagiante e apaixonante. E assim foi até ao entardecer daquele dia.

Ao anoitecer, Bacar parou a mota à hora combinada em frente da casa caiada. Acelerou e buzinou as três vezes combinadas e depois, manteu-se a espera da saida da rapariga. Desligou o motor, apagou o farol e os farolins. Aguardou ansiosamente durante muito tempo e ninguém saiu. Os nervos subira-lhe à cabeça e lembrou-se do casaco. Buscou a coragem para entrar na casa e perguntar, mas logo hesitou. Desceu da mota e pôs-se a observar um casal de jovens que passava a sua frente. Esperou alguns minutos para ver se alguém saia da casa, mas nada! Reparou nas duas janelas da casa e viu a luz do cadeeiro e algumas sombras de pessoas desenhadas nas cortinas. Pensou rapidamente e institivamente deu dois passos à caminho da porta do quintal da casa. Nesse momento, uma rapariga, dos seus treze anos de idade, apareceu na porta e parou. Bacar aproximou-a e quase gaguejando, quis saber:

- É aqui onde vive Muaziza?

A rapariga assustou-se. Deu dois passos levando os braços ao peito e tropeçando no chão, saiu correndo para o quintal chorando aos berros. Admirado, Bacar voltou junto a motorizada. Tentou ligar o motor, mas logo a rapariga reapareceu acompanhada de um senhor que o interpelou.

- Sim. – Disse o senhor ofegante. – Em que lhe posso ser útil.

- Desejava falar com Muaziza. – Respondeu Bacar tremendo de medo.

- Estás a gozar connosco?

- Não, senhor.

O senhor suspirou, abanou a cabeça e questionou:

- Quem é o senhor?

- Um amigo da Muaziza.

Houve silêncio e dos quintais das casas vizinhas começaram a sair curiosos ávidos de inteirar-se das reais razões dos berros da rapariga. Depois de alguns instantes de silêncio tumular, o senhor prosseguiu cerimoniosamente:

- Ela morreu faz um ano e enterramos no cemitério familiar em Maringanha.

- É impossível! – Disse Bacar levando as mãos à cabeça. – Eu estive com ela ontem e lhe trouxe aqui.

- É impossível! – Repetiu o homem muito sereno. – Eu enterrei-a com estas minhas mãos. Ela adoeceu muito e morreu sete dias depois.

- Não acredito!

- Essa é que é a verdade, meu caro jovem.

Bacar girou pelos calcanhares e indagou-se:

- E o meu casaco?

- Que casaco? – Interrogou o homem que não devia ter mais do que sessenta anos de idade.

- Deixei-lhe o meu casaco porque me pareceu que estava com frio.

- Bom, talvez seja outra pessoa.

- Não pode ser outra pessoa. – Contradisse o jovem visivelmente transtornado. – Ela não tinha razões para me enganar...

- Diga-me, por favor, como era essa tal Muaziza que tanto falas. – Disse o homem pacientemente.

Rápidamente, Bacar pôs-se a descrever a rapariga e os vestes que trazia.

- É muito grave o que acabas de dizer. – Concluiu o homem. – A descrição é perfeita e os veste são os que a nossa Muaziza vestia no dia do enterro.

Houve novamente um silêncio. Depois, ouviu-se, nas varandas das casas vizinhas, o sussurar de vozes de curiosos admirando, sobretudo, o que Bacar acabara de narrar.

- Meu jovem! – Disse o homem olhando o interlocutor que se achava cabisbaixo e com ar meditativo. – Para deciparmos às dúvidas, o melhor é amanhã dirigirmo-nos à campa da nossa Muaziza...

- Concordo, plenamente.

Bacar arrancou a mota e mergulhou-se na escuridão da noite ausente de si. E já no dia seguinte, logo de manhã, os dois foram a campa da Muaziza e, curiosamente, Bacar, viu o seu casaco pousado no sepulcro e, sem mais, nem menos, caiu desmaiado.
- Allman Ndyoko (Francisco Absalão), 14/05/2009.

O Autor:

  • Francisco Absalão;
  • Nome artístico -Allman Ndyoko;
  • Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
  • Residência actual - Maputo.

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Leia também:

  • "Os Leões do Diabo" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 18 de Abril de 2009 - Aqui!
  • "O Navio Ensombrado" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 13 de Fevereiro de 2009 - Aqui!
  • "O Incêndio" - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 23 de Janeiro de 2009 - Aqui!
  • "O Suicídio" - Um conto de de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) publicado no ForEver PEMBA em 02 de Junho de 2008 - Aqui!
  • "A Origem - Ou como surgiu o povo Makonde", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 29 de Março de 2008 - Aqui !
  • "O Turbilhão Lendário", texto de Francisco Absalão publicado no ForEver PEMBA em 24 de Outubro de 2007 - Aqui !
  • "O Nó Sagrado", um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão) - publicado no ForEver PEMBA em 19 de Março de 2008 - Aqui !

4/18/09

OS LEÕES DO DIABO - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão).

(Clique na imagem para ampliar - Imagem original do ForEver PEMBA)

Era madrugada. Uma chuva miúda caía obliqua e desinteressada sobre a vasta e densa floresta de Ninga. O vento soprava levemente enquanto os pássaros encolhidos nos ninhos, construídos nos galhos de árvores frondosas e seculares, chilreavam anunciando o alvorecer. As sombras da noite desapareciam lenta e pausadamente como se despedissem do ambiente, rumo ao outro lado do mundo.

Algum tempo depois, os aldeões de Ninga acordaram, pausadamente e um de cada vez, como é lógico, todos ressacados pelo terror de um casal de leões que decidira, há sensivelmente um mês, atormentar a pacata aldeia em protesto a actos pouco toleráveis para os felinos, uma vez que, vezes sem conta estes viam seus rastos seguidos pelos aldeões sempre que abatessem uma presa, e, como consequência era-lhes roubada a carne comprometendo assim a sua subsistência. Sem alternativa, os felinos viam-se atentados a atacar os seres humanos, principalmente, as mulheres que passavam a maior parte do dia no campo cultivando com os filhos às costas. Já viciados pela carne humana, os felinos viam o retrocesso dificultado, uma vez que, consideravam o Homem uma presa fácil. Daí que, dia-após-dia, vários casos mortais causados por ataques de leões eram reportados na aldeia semeando o terror entre os aldeões.

No entanto, naquela manhã de chuva miúda Cosme acordou sobressaltado. O coração batia-lhe forte e a respiração tornava-se cada vez mais arquejante. Sentou-se a beira da cama ainda perplexo e incrédulo correu os olhos à volta do aposento, como se procurasse algo misterioso que vira há escassos momentos, e no fim, passou a palma da mão esquerda na face limpando o suor que lhe escorria pela face abaixo. Suspirou profundamente como se com o suspiro quisesse manifestar o alívio de se ver salvo de um perigo real; Acordou a mulher que dormia profundamente abraçada ao bebé e quando sentou-se no meio da cama abraçou-a expansivamente. Admirada, a mulher limitou-se a olha-lo como se este estivesse em exposição. Cosme olhou a mulher nos olhos no meio da penumbra e no final, com a voz enrouquecida, disse:

- Tive um mau sonho. - Calou-se. Pareceu ordenar as ideias e depois prosseguiu. - Vi um homem correndo na floresta apavorado. Passou por mim dizendo algo imperceptível e mais adiante, próximo a uma clareira foi subitamente atacado por dois leopardos e caiu no chão inerte. De seguida, arrastaram-no para o coração da floresta olhando-me nos olhos como se quisesse me dizer algo. Dali, um estranho redemoinho fez-se presente no meio da clareira levantando para o céu tudo quanto havia solto no chão e do nada ouviu-se o pranto de um bebé e acordei assustado.

Cosme calou-se. Baixou os olhos, manteu-se pensativo e visivelmente dominado pelo sonho.

- Penso que é normal. - Sossegou a esposa. - Deve ser o reflexo da situação que vivemos na aldeia nos dias que correm.

- Não. - Atalhou meneando a cabeça. - Isto não vem atoa... deve ser algum aviso dos antepassados.

- Como?

- Algo estranho vai acontecer nos próximos dias com alguém da nossa família.

- Deus me livre! - Disse a mulher amarrando a capulana à parte superior dos seios. - Bate a boca... Isso é besteira e nada disso vai acontecer, salvo se fôr obra de feiticeiro.

- Está bem! - Cosme ergueu-se da cama. Vestiu-se rapidamente e fez movimento para caminhar em direcção ao quintal. - Façamos de conta que é definitivamente uma bobagem; Mas cá por mim, o caso é sério...

A mulher abanou a cabeça, abandonou a cama e começou a preparar-se para a nova jornada do dia na machamba.

Já no quintal, Cosme alimentou os porcos, patos e as galinhas. Afiou a catana, juntou os instrumentos da machamba e sentou-se num tronco acendendo o tabaco com um pedaço de lenha acesa, que ao longo da noite resistira à intempérie no meio da cinza da fogueira, feita na varanda da palhota.

Pouco depois, Cosme vociferou:

- Óh, mulher vamos embora. Está ficando tarde...

- Já vou, pai de Nené. - Respondeu a mulher na palhota e continuou. - Estou a separar o milho para a sementeira...

- Seja rápida. O tempo não espera à ninguém.

Dito isto, Cosme continuou a fumar o tabaco enrolado no papel caquí. De quando em vez, aspirava voluptuosamente o fumo envadindo temporariamente o espaço em que se achava acomodado e, noutras vezes, tirava a fumaça pelas narinas e, imprimindo uma dose de pressão, a fumaça esbranquiçada formava duas linhas grossas que se diluiam lentamente no espaço.

No entanto, tossiu duas vezes e, finalmente, a mulher apareceu na porta com o bebé às costas e uma enorme peneira sobre a cabeça. Atravessou a porta fechando-a nas costas; Já no meio do quintal tomou a enxada e caminhou colocando-a no ombro. Em silêncio, Cosme ergueu-se, apagou o tabaco na areia e emitando o gesto da mulher, levou uma catana na mão e armou-se de arco e flecha.

No limiar da aldeia, o casal parou para saudar uma família amiga que se dirigia à machamba que ficava no lado sul da aldeia.

- Óh, Cosme! Como vai a família? - Quis saber um idoso de barbas desleixadas que vinha também na companhia da família.

- De saúde estamos bem. Os porcos, as galinhas, os patos e outros animais lá de casa estão de saúde graças aquele - Apontou no céu num ponto impreciso e acrescentou - que nos fez e criou...

- Isso alegra-nos ouvir. - Disse uma mulher que parecia esposa do velhote de barbas desleixadas.

- A porca pariu quatro crias e a família alargou. - Informou Cosme visivelmente emocionado.

- A notícia é confortante... - Retorquiu o velhote pousando uma trouxa no chão.

- Acompanhou a notícia de ontem à tarde? - Inquiriu a mulher que vinha com o velhote.

- Não. - Atalhou Cosme aguçado pela curiosidade. - O que sucedeu desta vez nesta nossa linda aldeia?

- Ontem às seis da noite, nas casas próximas ao terreiro, uma mulher de meia idade foi atacada por um casal de leões ao afastar-se da palhota para fazer necessidade menor. O marido, que se encontrava sentado na varanda da palhota, apenas ouviu um grito de aflição e quando acudiu era tarde! O homem apenas apanhou um pedaço de lenço que a mulher trazia na cabeça e todo estava ensanguentado!

- E os vizinhos? Que fizeram nesse momento?

- Quando os vizinhos acudiram puseram-se imediatamente ao encalço do rasto no meio da escuridão já pesada e no bosque próximo ao velho cemitério, no meio do capim, acharam a cabeça e o braço da mulher e logo presumiram que os leões haviam arrastado o resto do corpo. De manhã só apanharam algumas peças insignificantes do corpo.

- Isso é triste e incrível se tivermos em conta que a zona há um tempo atrás era aparentemente despida de situações similares e de um momento para o outro, como vindo do nada, aparece-nos situações de leões...

- Este cenário não é normal, caro Cosme! - Concluiu o ancião consternado. - Creio que estes leões são movidos por um feiticeiro que tem problema com um familiar ou alguém qualquer. Esse feiticeiro transforma-se em leão juntamente com outra pessoa de sexo feminino, que pode até ser esposa, afim de atacar seus inimigos.

- Até que isso pode ser verdade! - Observou Cosme. - Pois, os leões de Deus não atacam pessoas.

- Mas que fazer?! - Inquiriu o ancião erguendo sua trouxa e fazendo movimento para caminhar.

- Os aldeões devem reunir-se para estudar esta situação... - Respondeu Cosme.

- Adeus, Cosme.

- Adeus, meu velho.

O ancião iniciou a caminhada juntamente com a família que lhe aguardava pacientemente a beira do caminho, entre capim verde e seco.

- Tenha um bom dia de trabalho e veja se regressas cedo a casa!

- Não se preocupe, meu velho. Eu estou já preparado para o que vier. Eu é que surpreenderei os leões antes deles pensarem em fazer o que fôr comigo ou com a minha família.

- Deus te ouça. - Gritou o velhote de costas viradas para o seu interlocutor.

As famílias separaram-se e o casal mergulhou-se na floresta com destino a machamba que distava há cinco centenas de metros da povoação. Enquanto caminhava no meio da floresta densa seguindo um caminho serpenteante que se perdia pela mata adentro e que se cruzava com outras tantas que conduziam à diversos destinos dentro da floresta, Cosme e sua companheira iam ouvindo o chilreio dos pássaros, o trautear incessante das cigarras, o barulho de macacos empoleirados nos galhos das árvores e as vozes entrecortadas dos aldeões que se entregavam ao labor nos campos distantes e verdejantes.

Volvidos alguns momentos, chegaram a machamba. A mulher pousou no centro do campo a peneira que trazia à cabeça. Enclinou o corpo para afrente, desamarrou o bebé no colo e voltou a amarra-lo com tenacidade. De seguida, começou a trabalhar a terra cantarolando feliz com a vida. Em silêncio, Cosme afastou-se da machamba enternando-se na floresta afim de arranjar algumas estaca para concertar o curral de porcos na sua casa.

Passado algum momento, Cosme ouviu um forte grito de aflição e saiu da floresta correndo a sete pés para acudir. Ao chegar na machamba deparou-se somente com a capulana ensanguentada e o bebé a chorar no chão, todo coberto de lama. Tomou o bebé e com a catana no punho precipitou-se a seguir os rastos com vingança na alma.

- Floraaaaa! - Cosme soltou um grito rouco de raiva e continuou. - Floraaaa! Cadê você!...

Vinte metros da machamba e próximo a um arbusto, parou repentinamente: um casal de leões disputava o pescoço da Flora abocanhando-a vezes sem conta e sem vida. Ao aperceber a presença do homem, o macho parou e rosnando fez frente ao estranho exibindo seus dentes afiados e olhos amarelos.

- Daqui não saio sem a minha Flora. - Disse Cosme em voz alta e segurando firmemente a catana com a mão direita. - Sei que vocês não são leões de Deus e por isso, daqui não saio sem o que é meu...

O leão continuou a rosnar procurando amedrontar o homem e reduzindo paulatinamente a distância que lhes separava. Com um movimento lento e atento, Cosme recuou alguns passos procurando controlar os ânimos do felino. De repente, a fêmea desapareceu pelo mato arrastando o corpo morto da mulher, e, vendo esta atitude, o macho seguiu-a desaparecendo ambos pela mata densa. Inconformado, Cosme seguiu-os novamente, como um búfalo ferido, varrendo com a catana tudo quanto era obstâculo à sua frente e próximo a um riacho viu os felinos galgando uma pequena elevação sem a presa. Apercebendo-se disso, Cosme procurou avistar o corpo e de súbito viu-o preso nos espinhos de duas árvores tombadas à beira do rio e do lado onde se achava. Correu desesperado até junto ao corpo, onde desamarrou uma das capulanas que ainda restava e, ensanguentada, serviu-se para amarrar nas costas o bebé que não parava de chorar. Atento a tudo, ergueu o corpo tombado; Calmamente, rodou pelos calcanhares e procurou voltar a aldeia com o cadáver nos braços.

Caminhou durante muito tempo olhando para atrás e às vezes parando desconfiando ser seguido. Já próximo ao limiar da aldeia parou para descansar. Nesse momento, deitou a vista em redor e há uma centena de metros viu o casal de leões atravessando o caminho em diagonal, dirigindo-se lentamente ao lado sul da povoação muito atento ao homem e a presa. Desconfiado, Cosme retomou a marcha e nas primeiras casas da povoação foi recebido por homens e mulheres no meio de gritos de espanto e pavor.
- Allman Ndyoko (Francisco Absalão), Abril 2009 - Extrato do livro Contos de Infância Distante.

O Autor:

  • Francisco Absalão;
  • Nome artístico -Allman Ndyoko;
  • Nasceu em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
  • Residência actual - Maputo;

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