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10/02/09

As Moças - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

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:: Allman Ndyoko pode ser lido em "Contos e Poesias do Índico"::

Nunes devorou com gosto o peitoral e a asa do frango e batatas fritas, à moda KFC, e com o pão integral limpou no prato uma pobre nódoa de molho de tomate e maionese e saiu do Take away rotando e transpirando. Limpou a boca com as costas da mão direita e precipitou-se a apanhar o “chapa” que lhe levaria lá para as bandas do Xiquelene, bairro periférico de Maputo. Ao acomodar-se, ao lado de uma janela, como era hábito, abriu-a até a metade para arejar.

Era fim da tarde. Tarde muito quente, de calor húmido e incómodo. Lá fora do “chapa” o barulho dos motores misturados ao murmúrio dos populares que faziam da paragem de Benfica o seu ponto de trânsito com destino aos diversos bairros suburbanos, como são os casos de: Matendene, Zimpeto, Malhazine, Magoanine, Hulene e outros, era ensurdecedor. Entretanto, o motorista fez duas acelerações absurdas para chamar atenção dos passageiros e arrancou bruscamente para que um outro “chapa” não o vedasse a passagem e parou na única e estreita saída condicionando o trânsito e provocando um mar de protestos que se manifestou por meio de de buzinadelas de outros automobilistas como se quisessem chamar à quem de direito a restaurar a ordem e paz através de repreensão daquele acto deliberado que é característica, já de barba branca, de muitos chapeiros da praça.

- Xiquelene, Xiquelene sentado! – Gritou o cobrador totalmente indiferente aos actos de protesto dos demais automobilistas que ansiavam retirar-se daquele ponto infernal de trânsito.

Despreocupados também, os passageiros iam subindo ao carro sem pressa e pouco-a-pouco os acentos lotaram e finalmente a saída ficou transitável e o cheiro da fumaça resultante da queima do diesel nos motores dos “chapas” e os protestos ensurdecedores desvaneceram. Já em anadamento, o cobrador, um jovem de uns vinte e poucos anos de idade e com aparência de um drogado, fechou a porta do Toyota Hiace arastando-a e provocando um chiado de arrepiar os dentes.

O carro deslizou veloz no asfalto e na rotunda da Missão Roque descreveu à direita obrigando os passageiros a inclinar-se para o lado direito e no fim, tomou a direcção de Magoanine.

- Estamos a pedir reduzires a velocidade, senhor motorista. - Gritou uma rapariga dos seus desaseis anos de idade sentada no último banco traseiro do “chapa” na companhia de três amigas que falavam em voz excessivamente audível. Riu animada pelo seu grito e acrescentou. - Nós outros, senhor motorista, temos ainda filhos menores por criar... veja se não incurta a nossa vida.

As raparigas riram todas satisfeitas com a advertência feita ao motorista e continuaram falando em voz excessivamente audível. Já próximo à paragem de Malhazine, uma das raparigas vociferou:

- “Quebrador”!

O jovem cobrador torceu o pescoço e inquiriu com a cabeça.

- Diz-me quantos passageiros estão neste “chapa” e quanto vão pagar.

- O que tu queres fazer com essa informação? - Quís saber o cobrador esboçando uma expressão facial de poucos amigos.

- Quero pagar-lhes o “chapa”, porque vejo que muitos deles têm cara de pobreza.

As quatro raparigas desataram a rir animadas, sabe-se lá com que raio de droga.

- Não é muito dinheiro, passageira. – Respondeu depois o cobrador brincalhão. – São apenas cem meticais... só.

- Tá bem. – Respondeu uma delas com uma voz rouca.

Uma das raparigas que parecia a mais nova, ligou um dos toques do seu Nokia 1200 e pôs-se a cantarolar algo despido de nexo. E, como combinação se tratasse, os restantes passageiros, todos mais velhos que as raparigas sem educação, voltaram-se para elas e de forma desordenada, pediram:

- Deixem-nos viajar em paz, por favor!

- Não estamos neste carro a viajar de favor. - Acrescentou um deles que ostentava uma calva tímida e uns cabelos grisalhos.

-Senhor motorista! - Gritou umas das raparigas que parecia ter uns quinze anos. – Pára o “chapa” para descer quem não aguenta viajar connosco.

Desataram novamente a rir e a assobiar cantarolando uma música do Zico.

- Esta geração, esta geração! – Lamentou o homem de calva tímida abanando a cabeça. – Muito novas e com muita vida pela frente, mas estão entregues às bebidas alcóolicas.

-É uma geração perdida. - Concluiu Nunes intimidando as meninas com um esboço facial feio.

O truque de um esboço facial feio pareceu ter dado certo, pois, temporariamente o barulho das meninas cessou. Mas, momentos depois, voltou a eclodir o barulho já com intensidade aborrecedora.

- Porra pá, Zaida, fizemos mal termos fugido aquele “kôta”. – Disse uma das raparigas denotando cansaço e ar de quem passou o dia se enchendo a cara. – Até este momento, se tivessemos ficado a “matrecar” o gajo, estariamos a beber “maningue” ampolas de cerveja.

- Viram aquela carne assada que esquecemos de levar? – Inquiriu uma das moças com lábios molhados e aparentando ter ficado com água na boca.

- A Tininha é que é culpada, porque logo que aquele senhor começou a querer as partes íntimas e a pegar-lhe torta e direita veio com a estória de fugirmos dalí.

-Não se preocupem minhas amigas. – Sossegou Tininha, pelo visto, a mais fala barato de todas. – O “kôta” pensava que ia pegar-me e molhar-me de prazer de borla, mas eu, Tininha, lhe mostrei que sou mais esperta que ele.

-Hemmmm? – Inquiriram as amigas visivelmente felizes,

-“Bati-lhe” quinhentos “paus”, minhas “sister’s” e temos “taco” para chupar tantas cervejas que quisermos.

- Por falar nisso, agora tou a lembrar-me que na minha bolsa – Zaida ergueu uma bolsa preta e agitou-a. – ainda temos meia garrafa de whisky.

O “chapa” parou na paragem da primeira rua. Nunes desceu e o carro arrancou enquanto as raparigas continuavam em alvoroço provocando com palavrões qualquer automobilista que, naquele momento, ousasse ultrapassar o “chapa” que transportava as raparigas mal-educadas. Parou na margem direita do asfalto e esperou que uma fila enorme de carros interrompesse a marcha, e quando assim aconteceu, atravessou o asfalto com prudência e mergulhou-se no meio das primeiras casas de Hulene “B” pensando na situação de vulnerabilidade ao alcóol e a infecção por doenças sexualmente transmissíveis em que aquelas adolescentes se expunham, achando que tudo o que faziam era o melhor pra as suas jovens vidas, ignorando visivelmente todos perigos que aquele estilo de vida podia transportar.
- Allman Ndyoko, 21/09/2009.

- Vocabulário:
Kota - Pessoa mais velha, que pode ser pai, mãe, tia, etc.
Chapa - Autocarro de transporte semi-colectivo de passageiros.
KFC - Loja de origem estadunidense com filiais na África do Sul, especializada em venda de frangos confeccionados.
Matrecar - Enganar, aldrabar...
Maningue - É um termo moçambicano que quer dizer muito.
Bater - Levar algo sem o consentimento do proprietário, roubar...
Sister’s - Irmãs ou amigas, isto no contexto moçambicano.
Take away - Local onde se confeccionam comidas rápidas.
Quebrador - É a forma pejorativa de denominar o cobrador dos transportes semi-colectivos.
Paus – É um calão usado com frequência pelos jovens moçambicanos para quantificar o dinheiro (metical) ao invés de chamá-lo pelo nome.
Taco – Dinheiro. É também um calão usado pela juventude moçambicana.

- O Autor Francisco Absalão:
Nome artístico -Allman Ndyoko;
Nasceu - Em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
Residência actual - Maputo.
- Produto da nova vaga de escritores moçambicanos dos anos 90, cursou História da Literatura Portuguesa, promovido pelo Instituto Camões em parceria com a Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane. Tem textos literários publicados em antologias, como: Histórias do Mar (2005) e Esperança e Certeza II (2008). Venceu os seguintes concursos de contos: Historias do Mar (2005), Contos e Bandas Desenhadas - promovido pelo Instituto Camôes em Maputo/Moçambique (2006). Podem encontrar textos literários de sua autoria em seu blogue particular "Contos e Poesias do Índico" e publicados em várias revistas e jornais electrónicos no Brasil, com destaque para a editora online Blocos e Recanto das Letras.

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10/13/09

O SUSTO - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

(Clique na imagem para ampliar - Imagem original daqui)

:: Allman Ndyoco pode ser lido em "Contos e Poesias do Índico" ::

Tinha saído da casa do Pascoal, um amigo de se tirar chapeu, fazia uns vinte minutos, se a memória não me induz ao erro, e caminhava na picada que atravessa por trás do Seminário Irmãos Maristas da Matola e se prolonga em direcção a Salina. Era uma manhã de sol e céu azul, dia próprio para um passeio a dois ou solitário.

Atravessei uma ruela que descia as quintas de grandes bastardos e continuei a marchar despreocupado e recolhido em pensamentos profundos. Ia pensando nas minhas coisas, quando de súbito vi uma Mazda 323, fechado, cor de vinho e apinhado de jovens vindo a minha frente rolando lentamente os pneus no chão da picada. Duas belas raparigas iam caminhando a minha frente, a uma distância de dois metros, e a rua achava-se deserta de gente como era de costume.

O silêncio era quase absoluto a ponto de se ouvir nitidamente o chilreio dos pássaros que vinha das espinhosas que serviam de muro na maioria das quintas daquela rua.

O carro passou lentamente ao meu lado esquerdo e cinco homens de cabeças rapadas e rostos assustadores dirigiram-me um olhar desconfiado. Todavia, continuei a caminhar. Quando fiz uns sete passos o carro parou e desceram dois homens fortes com caras de maus.

- Bróóó! – Disse um dos homens que descera do carro da porta direita.

Olhei atrás e vi os homens dirigindo-se ao meu encontro. Já no meio da distância que nos separava, o tipo que descera da porta esquerda disse, como se falasse consigo mesmo:

- Pára aí.

Parei. As raparigas que seguiam a minha frente prosseguiram a marcha sem darem em conta o que sucedia e, nesse instante, o meu coração pulou de medo. O corpo gelou imediatamente; Os olhos empalideceram e os ouvidos ficaram quase surdos. De repente, pensei sem saber porquê:

- “O criminoso não tem cara e hoje a criminalidade anda à solta por aí”.

Enquanto os homens se aproximavam deitei o olhar nas duas extremidades da rua, mas, como de costume, ela estava deserta de gente criando, assim, facilidade para a acção de qualquer malfeitor. Balbuciei umas palavras que não me recordo se era uma reza ou não e no fim, para me tranquilizar, pensei:

- “Devem ser uns forasteiros perdidos querendo saber qualquer coisa”.

Este pensamento ajudou-me de tal forma que, em tão poucos instantes, o meu coração deixou de pular e manti-me sereno e despreocupado.

- Somos polícias. – Disse um deles assim que parou ao meu lado direito. E tirando, do bolso traseiro das jeans que trajava, uma carteira para exibir, o tipo voltou a sossegar-me olhando-me como se estivesse em exposição: - Não tenhas medo, apenas queremos confirmar uma coisa.

A carteira do homem saiu do bolso com muita relutância, o dono abriu-a diante dos meus olhos e estranhamente vi um charro de maconha majestosamente deitado por cima de um cartão azul da Comissão Nacional de Eleições que o homem precipitou-se a me apresentar de raspão. Tive vontade de rir, mas contive-me. O homem guardou a carteira no bolso esboçando um rosto sério, ajeitou os óculos escuros que trazia pendurados no nariz, olhou os sulcos dos meus sapatos no chão e no fim, com uma voz rouca, quis saber:

- Posso ver a sola do seu sapato?
- À vontade! – Levantei o pé direito para trás e depois o dirigi na sua direcção.
- Não é. – Murmurou o homem abanando a cabeça negativamente.

O outro homem que se achava ao meu lado esquerdo apalpou-me a cintura e para lhe facilitar o trabalho ergui a camisete que envergava.

- Podes ir. – Anuiu o meu interlocutor enquanto o companheiro, que parecia o mais velho, olhava-me com desconfiança.

Calei-me. Dei meia volta e prossegui a caminhada com o destino ao chaveiro das Bombas de Combustíveis Madruga. Nas minhas costas o carro arrancou e continuou a andar lentamente como no inicio. Quando dobrei a esquina do muro da Direcção Provincial da Educação e Cultura e subi em direcção a paragem de João Mateus, questionei-me:

- “O que deve ser isto? Com quem me confundiram e porquê?”.

Como é lógico, não obtive respostas para os meus questionamentos. Contudo, achava muito estranha a atitude daqueles homens e não acreditava que me desembaraçara deles. Este sentimento era natural a avaliar o susto e o perigo que corria caso aqueles homens fossem assassinos no sentido real da palavra.

Entretanto, andei uns cem metros, passei umas duas senhoras que vendiam cigarros e doces e mais adiante voltei a cair em profundas meditações.

A vida na rua corria normalmente acompanhada de um fluxo rápido de automóveis. As pessoas cruzavam os passeios num vai e vem interminável enchendo de murmúrios o ambiente.

Passei um grupo de jovens que conversava numa sombra do passeio que usava e de repente, o Mazda 323 dos homens que haviam me interpelado inicialmente parou na berma da estrada, precisamente, ao meu lado. Os mesmos homens desceram do carro e vieram a minha frente. Parei desconfiando a atitude dos tipos e de seguida, um deles disse:

- És suspeito. Tens que aguardar até que venha alguém confirmar.

Estas palavras soaram-me como um tiro e ao fim do cabo, calei-me. Abanei a cabeça em silêncio e suspirei profundamente.

- Não quisemos te deter lá para não pensares que somos assassinos ou uma coisa parecida. – Acrescentou o homem de óculos escuros.

- Fique sossegado. – Retorquiu o outro homem. – É uma questão de tirar as coisas a limpo.
- Compreendo. – Limitei-me a balbuciar.
- É que aquela rua que usaste sucedem muitos assaltos devido às condições que ela em si oferece e nós estamos, precisamente, a trabalhar para acabarmos com essa onda de criminalidade.

O motorista do Mazda ligou para alguém do telemóvel, falou uns breves instantes e quando desligou o aparelho, chamou o homem de óculos escuros. Confidenciou-lhe alguma coisa e no final, subiu para o carro, onde se acomodou a espera do confirmador que pelo visto não se encontrava muito longe daquele local. Passado algum momento, um Nissan Champion branco, dirigido por uma mulher mulata parou atrás do Mazda dos agentes. Uma rapariga que vinha ao lado da mulher, também mulata, olhou-me com manifesto interesse e o mesmo gesto foi imitado pela condutora. Nesse momento notei que estava metido num sarilho imperceptivelmente e que só escaparia por um milagre divino. O diabo em pessoa estava ao meu encalço e tudo dependeria da palavra e fé da senhora do Nissan Champion. Balbuciei rapidamente uma reza mal recitada e no fim, entreguei o meu destino a deus.

A mulher desceu do carro, chamou o agente que se encontrava ao meu lado e confidenciou-lhe algo. O homem dirigiu-se ao Mazda, onde conferenciou com os ocupantes do carro e mais tarde me chamou. Ao encontrar-se junto dele estendeu-me a mão, dei-lhe a minha e apertamo-nos efusivamente.

- Desculpa pela situação que lhe fizemos passar. A senhora confirmou-nos que não és a pessoa que precisamos.
- Não tem de quê. – Respondi-lhe desembaraçando-me da mão do homem.
- Adeus.
- Adeus.

Virei-lhe as costas e afastei-me dali andando lentamente e admirando, sobretudo, a sinceridade da senhora mulata que pelo visto os malfeitores haviam lhe assaltado há dias atrás quando metia o carro no quintal, na rua onde os agentes haviam me interpelado inicialmente.
- Por Allman Ndyoko, 07/04/2006.

- O Autor Francisco Absalão:
Nome artístico -Allman Ndyoko;
Nasceu - Em 11 de Abril de 1977 na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado em Moçambique;
Residência actual - Maputo.
- Produto da nova vaga de escritores moçambicanos dos anos 90, cursou História da Literatura Portuguesa, promovido pelo Instituto Camões em parceria com a Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane. Tem textos literários publicados em antologias, como: Histórias do Mar (2005) e Esperança e Certeza II (2008). Venceu os seguintes concursos de contos: Historias do Mar (2005), Contos e Bandas Desenhadas - promovido pelo Instituto Camôes em Maputo/Moçambique (2006). Podem encontrar textos literários de sua autoria em seu blogue particular "
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10/24/07

O TURBILHÃO LENDÁRIO - Uma prosa acontecida em Pemba !

(Aqui, imagem de autoria do artista gráfico italiano Piero "Ingonane" que residiu em Pemba de 1989 a 1999)
Nada de melhor nos terá acontecido, naquele ano, do que as nossas férias na baia de Pemba, no norte do país.
Eu e o mano Beto haviamos passado de classe e o kôta prometera, logo nos primeiros dias do ano, umas férias na casa do avô Omar, em Paquitequete .
Assim que ficamos de férias na escola partimos de Maputo para Pemba, de autocarro, na companhia da tia Awa que viera nos buscar à capital.
A viagem fora cansativa mas, ao mesmo tempo, divertida, desde o terminal do TSL, na Avenida das FPLM , até ao controle de Pemba, no bairro de Mahate.
Dali partimos de táxi com destino a casa do avô Omar, no bairro de Paquite, como os pembenses lhe chamam, onde ficariamos quinze dias a gozarmos as férias por entre o marulhar das ondas do Índico.
Enquanto nos dirigíamos para a cidade, que distava uns quilómetros, o taxista ia-nos amostrando a paisagem dominada, principalmente, por embondeiros e algumas árvores menos frondosas e arbustos vulgares.
Do Alto-Gingone, um bairro periférico do aeroporto local, vimos a “esteira” azul do mar deitada manjestosamente ao longo da baia, parecendo um enorme anzol feito de água.
Mas, para o lado direito da estrada que nos conduzia, emergia uma nova cidade próxima da faixa de areia branca que ladeia quase toda a cidade: era a famosa praia do Wimbe, um enorme potencial turístico da região norte do país.
No entanto, pouco tempo depois desembocámos na cidade e passámos pela artéria principal do bairro de cimento.
Enquanto o carro deslizava na estrada asfaltada, vimos de longe os bairros de Cariacó, Natite e Ingonane e, mais tarde, rumamos pela marginal até ao bairro costeiro de Paquitequete, na zona de Kumilamba, onde o táxi parou em frente da casa de um dos vizinhos do avô; descemos, caminhando depois por uma rua estreita que nos levou direitos ao destino.
Ao chegarmos, fomos recebidos com alegria e, dos familiares e vizinhos, recebemos apertos efusivos de mão, à moda dos makimuanes.
Sentado na esteira de palha, na companhia do mano Beto e de outros garotos curiosos que se aproximaram ao chegarmos, pus-me a contemplar a casa que era feita de pau-a-pique, rebocada com matope e coberta de macuti .
O quintal era de bambú suportado por diversas estacas sólidas provenientes de Ulonto, lá na outra margem da cidade.
Depois de todo o cerimonial que um visitante merece, não aguentei mais: ergui-me da esteira e fui para a frente da casa, onde fiquei olhando para o mar azul e ouvindo o som das ondas misturado com o som dos búzios.
Durante muito tempo fiquei ali imóvel e boquiaberto, vendo ao longe pequenas embarcações à vela, pescadores puxando redes carregadas de peixe, barcos a motor transportando passageiros para o Ibo, Mocimboa da Praia, Quirimbas e outros pontos da Província.
Depois de um tempo, deitei o olhar para a margem onde me encontrava e fiquei apreciando a beleza das ondas e assistindo ao espectáculo dos carangueijos que, espantados pelo marulhar das ondas, fugiam em debandada ao encontro dos seus esconderijos que raramente falhavam.
Entretanto, a minha tranquilidade naquele sítio não tardou a chegar ao fim.
Um garoto aproximou-se interrompendo a minha concentração na observação da natureza e, com uma ponta de timidez, informou-me:
- Precisam de ti.
- De mim? – Interroguei-o sem desviar o olhar do mar.
- Sim.
- Aonde?
- Lá no quintal.
- E quem precisa de mim? – Quis eu saber, olhando os seus olhos.
- Avô Omar. – Replicou ele, desviando o olhar.
- Voltou?
- Sim. – Sorriu. – Faz um tempo.
Saí dali e fui até ao quintal. “escoltado” pelo miúdo, que não parava de me lançar olhares furtivos, e, ao chegar, saudei o avô e fiquei conversando com ele desde o rpincípio da tarde até ao anoitecer.
Passados alguns dias e após termos pedido autorização ao avô, eu e mano Beto, e outros garotos do bairro, fomos à praia brincar.
Era sábado; a praia estava repleta de banhista e os pescadores ainda não tinham voltado do mar.
Ficámos na margem apanhando búzios, construíndo castelos de areia, perseguindo caranguejos, brincando com garrafas-azuis e ajudando os pescadores a puxar as redes e a tirar da água os pequenos barcos à vela.
Foi neste dia que ouvi dos nossos novos amigos a lenda do turbilhão Nunumuana, que fica a algumas milhas da Baía de Pemba.
Fiquei curioso e ao mesmo tempo cheio de medo.
Naquele dia não saí de noite para ver o mar sob o luar e muito menos para contar quantos segundos passam entre o acender alternado dos faróis das rochas de Ingonane e Ulonto.
Um certo dia, estando eu na companhia do avô Omar a pescar na zona portuária da baía, interroguei-o acerca da veracidade da misteriosa lenda que corria de boca em boca entre os garotos pembenses.
Ele garantiu-me a veracidade da história e prometeu contar-me tudo, noutro dia, porque a história era longa e complicada.
Os dias foram passando, um atrás do outro, e todas as noites ouvíamos histórias diversas contadas pelo avô, mas, curiosamente, o kôta não se lembrava de contar a história do turbilhão.
Nisto, numa certa noite de luar, décimo terceiro dia da nossa estada em Pemba, a curiosidade obrigou-me a pressioná-lo a contar a história prometida, pelo que o velho me respondeu:
- Tudo bem. Eu vou contar, já que insistes tanto.
Acendeu um tabaco, fumou em silêncio com o olhar perdido num ponto indefinido, como se estivesse a pensar em algo guardado nas profundezas da sua memória, sorriu perceptívelmente fazendo animar a sua face sulcada de profundas rugas e, por fim, começou a narrar a história.
- Reza a lenda que foi há muitos anos, muitos anos mesmo – Repetiu com firmeza, a ponto de acordar o mano Beto que já apanhara uma soneca. – que um barco transportando uma terrível curandeira e seus ajudantes naufragou, numa zona a algumas milhas da nossa costa, e o naufrágio matou todos os ocupantes.
- Ninguém se salvou? – Quis eu saber, curioso.
- Ninguém! – Disse, meneando a cabeça e pegando, ao lado do tronco onde estava sentado, numa “ exportação ” de nipa , que de seguida levou aos lábios, e bebeu um golo pelo gargalo.
Depois de pousar a garrafa no chão, avivou a fogueira que ardia no centro da roda humana, feita de miúdos do bairro ávidos de ouvir histórias antigas transmitidas oralmente de geração em geração, e em seguida continuou:
- Daí, os náufragos transformaram-se em fantasmas ferozes, a ponto de consiguirem, com a ajuda de um turbilhão acompanhado de ventos tempestuosos, imobilizar um navio enorme. A partir daquele dia, todos os peixes da baía passaram a ser deles e, quem pescasse à noite, era frequente deparar-se com fantasmas recolhendo redes e libertando peixes das redes e dos anzóis. Foi nessa época que o peixe, o alimento principal dos nativos, começou a escassear e os pescadores passaram a morrer em massa, vítimas de misteriosos ventos fortes.
Estremeci, escutei o som do mar e olhei em redor do quintal iluminado pela lua que derramava a sua luz sobre todos os bairros da cidade.
Depois, apurei os ouvidos e fiquei ouvindo a história que o avô contava, gesticulando e falando num tom de voz carregado de uma miscelânia de emoção e terror.
- Então, os nativos da baía reuniram-se para resolver o problema e, para tal, chamaram o curandeiro Amisse que, com a ajuda dos ancestrais, conseguiu falar com a curandeira náufraga. Durante o diálogo ela proibiu a pesca nocturna, o uso da rede de malha fina, e o derramamento de líquidos estranhos nas águas e, além disto, ordenou que todos os barcos que passassem pela zona do turbilhão atirassem para o mar alimentos diversos, de preferência carne fresca, como forma de pagar tributo pelos peixes apanhados na baía. Estes alimentos serviam para alimentar os peixes nas profundezas do mar, para melhor se reproduzirem e crescerem saudáveis.
O kôta tossiu três vezes interrompendo a locução; bebeu um trago da sua “primeirinha”, e prosseguiu:
- Quem não obedecesse ao que Nunumuana dissera, uma gigantesca massa de água que se revolve rapidamente cobri-lo-ia imediatamente e, se se tratasse de um barco naufragaria, e os seus ocupantes transformar-se-iam em fantasmas imortais e, depois, ocupar-se-iam de vigiar o mar e impôr a ordem quando se julgasse conveniente.
O velho fez uma pausa.
Puxou do tabaco enrolado num pedaço de papel de caqui, e aspirou voluptosamente o fumo que invadiu temporariamente o espaço da roda feito pelos miúdos que o escutavam com paciência e manifesto interesse.
Depois, enterrou na areia a ponta acesa do cigarro e logo voltou ao fio da história:
- Na verdade, após a cerimónia com o curandeiro, toda a gente passou a respeitar e a cumprir rigorosamente o que Nunumuana dissera e, em consequência disso, os peixes multiplicaram-se na baía, as mortes dos pescadores diminuíram drasticamente, e os nativos e outros habitantes passaram a viver felizes.
O Kôta calou-se e fez-se um silêncio absoluto durante o qual pude ouvi-lo a ressonar como um contrabaixo desafinado.
Olhei para os garotos à minha volta, vi que ainda se achavam atentos como mochos e, por fim, tossi propositadamente.
O velho assustou-se, acendeu novamente o tabaco que havia enterrado na areia e libertou uma grande fumaça que o fez tossir vezes sem conta.
Após um tempo bebeu de uma só vez a sua “ primeirinha ”, entoou em Kimuane uma canção sobre a lenda e, por fim, ergueu-se e começou a dançar enquanto o acompanhavamos em côro, batendo palmas.
Dois dias depois, eu e o mano Beto tomámos o autocarro de volta para Maputo, onde chegámos ao terceiro dia.
Passada uma semana, um impulso não me deixava e, consequentemente, impeliu-me a escrever estas linhas como forma de imortalizar a lenda e dar a conhecer a toda gente como os pembenses passaram a valorizar e a preservar o mar e os seus recursos.
O Turbilhão Lendário por Francisco Absalão - In Blocos OnLine
  • Biografia de Francisco Absalão segundo o "Blocos On Line" - O nome artístico é: Allman Ndyoko. Nasceu em 11 de Abril de 1977 em Pemba, província de Cabo Delgado -Moçambique. Residência actual: Maputo.

10/24/09

A Intrusa - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)


:: Allman Ndyoco pode ser lido em "Contos e Poesias do Índico" ::


É noite. O céu escuro e baixo hospeda nuvens brancas que refletem o seu clarão aos bairros menos iluminados. De longe, ouve-se dois bêbedos cantarolando numa barraca em tom alto e num outro ponto do bairro um pastor prega o evangelho, em changana, aos crentes e a sua voz melódica atravessava o bairro na boleia do vento que sopra fraco.

Um avião estrangeiro aterra na pista que fica defronte da casa do Leo. O barulho do aparelho se prolonga até junto do limiar da pista e os reactores cumprem um silêncio tumular. Junto a relva, em frente à casa, grilos cantam pausadamente preenchendo o silêncio com musicalidade natural e hábitual.

Sentado na varanda da cozinha, Leo aprecia a noite e deixa a imaginação percorrer o caminho do passado: lembra-se de momentos alegres da vida, sorrí perceptivelmente, depois puxa o ar da noite para os pulmões e no fim, liberto-o demoradamente como se os pulmões fossem duas câmaras-de-ar pequenas em pleno vazamento.

A brisa nocturna acompanha-lhe amigavelmente e pouco-a- pouco, Leo perspectiva o amanhã ordenando as ideias no meio do silêncio e do escuro da noite. De repente, uma mulher, dos seus vinte e nove anos de idade, irrompe o quintal correndo apavorada.

- Hei, onde pensa que vai? – Gritou Leo aborrecido pela invasão inesperada ao domicílio e interrupção involuntária dos seus pensamentos.

A mulher, gorda, baixinha e trajada de uma calça e camiseta branca aproximou-lhe ofegante. Estava exausta de tanto correr. Medrosa dos seus perseguidores procurou, como se de um cão se tratasse, esconder-se ao lado do Leo olhando assustada por todos cantos da direcção por onde havia surgido. Leo olhou-a debaixo ao topo e vice-versa, e, depois quis saber:

- De quê foges, mulher?
- De polícia, tio. – Respondeu visivelmente dominada pelo medo. – Eu vinha do salão de cabeleireiro e junto ao muro do Durão avistei três policias a patrulhar o bairro.

Fez uma pausa para descansar. A mulher estava realmente exausta! A respiração ofegante dificultava a fala. Nisto, após um compasso de espera, prosseguiu:

- Fugi dos polícias com o medo de exigir-me bilhete de identidade que nem tenho.
- Achas que isso é motivo suficiente para empreender uma fuga de natureza a que agora acabas de me mostrar?
- Héeee. – Encolheu os ombros esboçando um sorriso forçado, depois, lançou o olhar a rua e acrescentou: – Fiquei com medo. É que, os homens quando me viram a fugir, perguntaram-me do que fugia, mas como tenho esse hábito de fugir autoridade, logo as pernas obedeceram ao impulso de fuga.
- Eles não te vão exigir absolutamente nada! – Sossegou-a. – Estão simplesmente a fazer seu trabalho de rotina, como forma de prevenir qualquer acção criminosa.

A mulher sob o domínio de medo ainda mantinha-se escondida nas costas do Leo, que não parava de se divertir com aquele espectáculo gratuito. Ela estava demasiadamente apavorada e o seu interlocutor achou anormal esse seu estado de espírito. Nisto, saiu para confirmar o facto. Espreitou a rua nas duas extremidades e não achou polícia algum. Deu meia volta e juntou-se novamente a mulher que agora se mantinha apeada na sombra escura da casa.

- Já devem ter ido. – Disse-lhe exibindo um leve sorriso nos lábios. – Agora penso que já podes retirar-se do meu quintal.
- Foram mesmo? – Saiu do escuro segurando chinelos nas mão para qualquer eventualidade empreender mais uma fuga espectacular. – Mas podem estar escondidos algures a minha espera.
- Não pode ser. – Atalhou. – Eles não precisam de ti e por isso se foram. E mais, hoje em dia já não é prática da polícia, em alguns pontos do país, exigir na rua e de qualquer maneira a identificação do cidadão, salvo em casos de extrema desconfiança…

Leo pareceu ter sido insuficientemente convincente com a sua argumentação, pois, em seguida, a mulher assustou-se em demasia ao avistar dois crentes de uma seita religiosa trajados de batinas brancas e azuis. A mulher riu-se perdidamente do sucedido e no final, disse:

- Não sei o que tenho ao certo com a farda policial ou militar. – Deixou cair no chão os chinelos propositadamente e calçou-os retomando no ponto onde havia interrompido. – Sempre que vejo alguém uniformizado com aquelas fardas entro em pânico. O meu desejo nesse momento é sumir do sítio.
- É estranha a sua atitude. - Observou Leo parado em frente da mulher. – Já foste presa alguma vez?
- Que isso, tio. – Fez vinco na testa e continuou. – Vira a boca p´ra lá. Shiii, deus me livre.
- Então, donde vem o seu medo por alguém fardado a polícia ou a militar?
- Não sei dizer.
- Quantos anos tens?
- Advinha.
- Vinte e dois…
- Não. – Sorriu. – Trinta e três.
- Então, viveste os tempos difíceis do país?
- E como! – Abraçou sua bolsa e iniciou a caminhada até ao limiar do quintal.

Em pouco tempo Leo percebeu o trauma da mulher e para confirmar, inquiriu:

- Nesse tempo passado terás sido submetida a uma situação embaraçosa em que no meio disso te exigiram identificação?

Atravessaram a porta do quintal que se encontrava entreaberta e já na rua iluminada, respondeu-lhe:

- Foram várias situações. Lembro-me que há muito tempo, quando voltávamos da escola a noite sempre eu e minhas colegas éramos interpeladas pela polícia, pelos militares e milicianos e exigiam-nos identificação. Quem não tivesse passava uns bons bocados.
- Como?
- Dormir na cela, limpar casas de banho das esquadras, subornar para ser liberto ou então, se for mulher, entregar as partes íntimas ao chefe ou então assistir impotente a sua própria agressão física…

Leo acompanhou a mulher até ao ponto onde dissera ter visto agentes policiais. Pararam alguns instantes e não viram nenhum polícia por ali. Retomaram a marcha conversando e andando lentamente como se se conhecessem há anos. Agora a mulher achava-se tranquila e conversava sem preocupar-se em olhar nos lados.

- Quer me parecer que você não consegue esquecer esse maldito tempo.
- Não consigo esquecer. Marcou-me prufundamente e fico aterrorizado quando vejo alguém vestido a polícia ou a militar.
- Estás traumatizada. – Balbuciou Leo extremamente comovido.

No entanto, mais adiante Leo despediu-se da mulher, encorajou-a a esquecer o passado e prometeram-se avistar mais vezes quando a oportunidade permitisse.
- Por Allman Ndyoko - 09/10/2009

3/02/10

LURDES - Um conto de Allman Ndyoko (Francisco Absalão)

:: Allman Ndyoco pode ser lido em "Contos e Poesias do Índico" ::

Era mais um dia de trabalho. Tinha que fazer o percurso habitual: Hulene, Benfica e Cidade da Matola e usar o meio habitual – o chapa. Contudo, já havia feito o primeiro percurso e agora acomodado no acento traseiro do segundo chapa, um Toyota Hiace, branco, com uma faixa preta e escritas brancas onde no pará-brisas se lia: C.Matola / Benfica, rumava à cidade da Matola, quando na paragem da Zona Verde uma figura feminina, desmazelada, desprezível e anónima subiu para o carro e sentou-se num dos acentos centrais. A mulher tinha aparência de uns quarenta anos de idade. Trançara mirabas na cabeça que desesperadamente clamavam concerto. Trajava uma blusa larga com mangas cavas, uma capulana descorada e chinelos de banho. Trazia um bebé no colo envolto numa capulana fedorenta e um plástico preto contendo couve e alface.

Nisto, enquanto percorriamos a avenida 04 de Outubro o carro imobilizou-se na paragem do bairro T-3, onde subiram quatro jovens professores e três deles acomodaram-se no banco ocupado pela mulher desmazelada e um no acento próximo à porta. Do grupo dos docentes, três eram do sexo masculino e um feminino. A do sexo feminino era a que sentara no banco separado dos demais.

A madrugada ia ao fim. O sol no nascente espreitava altivo emitindo raios quentes de verão e deixando antever que o resto do dia seria de calor húmido e incómodo e que massa de ar quente fustigaria majestosa e impiedosamente sobre as cidades de Maputo e Matola.

- Olá, Lurdes! – Disse a docente surpresa, assim que se virou para dialogar com os colegas.
- Olá, Marta! - Replicou Lurdes, a mulher desmazelada e de bebé no colo.
- Há quanto tempo?! – Marta sorriu de alegria. Estava encantada com o encontro inesperado. – O que é feito de ti?
- Nada, Marta, senão ficar em casa.

O carro estava silenciso e apenas as duas vozes se faziam ouvir.

- Conhecem a ela? – Marta questionou os colegas.
- A cara dela não me é estranha. – Respondeu um deles.
- Para mim, – Disse um dos docentes que trazia uma bata branca ao ombro direito. – parece que conheço da Matola.
- Sim. – Marta acudiu. – Foi minha vizinha frontal e mais tarde casou-se com Todinho.
- Áh, já tou a ver… - Disse um dos docentes que trajava uma bata branca. – Mas parece-me ter “crescido” muito.
- É o que também noto nela. – Confessou Marta sem reservas. – O que está a passar-se?
- Sofrimento! – Lurdes sorriu disfarçadamente.

Lurdes expressava fluentemente a lingua do Camões e esta fluência contrastava-se com a sua aparência. O seu sotaque e domínio da lingua do colonizador era, agora, um indicativo para todos que ela havia frequentado a escola e vivera durante muito tempo num ambiente citadino. Sua expressão facial e vocal, agora, despertava mais curiosidade. Por detrás daquela mulher desmazelada, refugiada nas capulanas e conformada com o destino que a vida lhe reservara, escondia-se uma bela jovem, maltratada pelo egoismo e ciúme doentio de um homem que um dia lhe levara ao altar e que ela considerava esposo e pai de seus três filhos menores.

- O que está a acontecer? – Marta estava curiosa.
- Depois do casamento, a minha vida virou um pesadelo. Todinho proibiu-me de ir a escola, relacionar-me com meus parentes, amigos e vizinhos. Como senão bastasse, passei a viver enjaulada na minha própria casa.
- Enjaulada? – Marta parecia revoltada e a conversa começava a interessar à todos passageiros.
- Sim. Todinho tranca a porta do quintal com cadeado todos dias e leva as chaves ao serviço. Arrancou-me o telemóvel para não me comunicar com ninguém, bloqueou há já três anos os canas de televisão e proibiu as minhas amigas de frequentar a minha casa.
- É impossível! – Disse o docente que envergava a bata branca. – Conheci Todinho antes do casamento. Brincavamos juntos na Matola e era um gajo “fixe” com todos, pá!
- Virou um monstro. – Desabafou Lurdes. Depois de alguns instantes, prosseguiu. – Bate-me todos dias e quando mando recados para os meus tios eles simplesmente dizem para eu aguentar, pois, o lar exige sacrifícios.
- Sacrifícios qual que é?! – Inquiriu ironicamente um dos docentes.
- E quem faz compras para a casa? – Quis saber Marta.
- É ele.
- E as crianças não estudam? – Inquiriu uma das passageiras sentada no banco traseiro do carro.
- São ainda menores. – Lurdes quase que chorava.
- Então, vejo que esse homem faz-te de máquina de gerar filhos… - Precipitou-se a passageira a concluir,
- É o que acho também. – Disse Marta.
- Esse homem precisa de ser denunciado junto às autoridades para nunca mais maltratar mulheres indefesas. – Observou o motorista em apoio à Lurdes.

Houve silêncio. Depois de alguns segundos, o professor que trajava a bata branca quis saber:

- Como saiste de casa hoje?
- Ele autorizou-me, excepcionalmente hoje, a sair afim de comprar verduras para o almoço. Assim está em casa a minha espera, mesmo sabendo que está a atrasar no trabalho. Como demorei um pouco agora porque as vendedeiras de verduras demoraram-se a chegar, sou capaz de ser agredida verbal e fisicamente sob o pretexto não ter acatado a ordem de regressar a casa à hora.
- Não me diga que ele determinou-te o tempo para chegar a casa?! – Perguntou Marta.
- Determinou.

Nas palavras da Lurdes lia-se para qualquer um certo traumatismo psicológico que precisava urgentemente de um atendimento especializado. Parecia deprimida, conformada com a situação em que se encontrava e, aparentemente, sem forças para lutar. Parecia viver numa ilha, onde os vizinhos, amigos e parentes serviam de cenário e nada mais.

No entanto, chegamos a zona da prisão de máxima segurança da Machava e na paragem da barraca verde, Lurdes desceu despedindo-se de todos acanhadamente. Quando o carro arrancou, os passageiros olharam-a até desaparecer numa rua vizinha.

- É inacreditável que a situação daquela rapariga esteja a acontecer aqui na cidade. – Disse alguém entre os passageiros.
- Onde está a família? – Inquiriu o cobrador.
- Os pais morreram faz muito tempo e ela era filha única. Os tios, apesar de lhe terem criado, nunca ligaram para ela. – Respondeu Marta visivelmente afectada pela situação da Lurdes.
- Há que fazer alguma coisa. – Disse o professor de bata suspenso ao ombro. – Daquilo que li no semblante da rapariga, ela até é capaz de cometer algum suicídio. E se tal acontecimento ocorrer, todos que ouvimos o depoimento dela sentirémo-nos culpados de nada termos feito para ajudar aquela pobre alma.
- Isso é verdade. – Foram respondendo em cadência os demais passageiros.

Dali em diante, a conversa dominante no mini-bus era a relacionada com o que acabava-se de ouvir. Cada um contava uma história similar evidenciando o modo de conclusão. E de toda conversa surgida, foi possível notar o quão as mulheres sofrem em silêncio tumular na nossa sociedade e quão algumas pessoas ainda ignoram o tal sofrimento.

Entretanto, cheguei ao meu destino. Desci do chapa, paguei ao cobrador e caminhei para o serviço pensando na Lurdes. A sua história de vida comovera-me até as entranhas e não conseguia desembaraçar-me dela sem nada fazer. Nisto, decidi rabiscar esta linhas para fazer chegar a toda gente o grito e o marasmo da Lurdes, aquela mulher desprezível, maltratada e recolhida em si como um caracol.
- Allman Ndyoko, Moçambique, 28/02/2010.