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11/15/10

O QUARTO ALUGADO


Entre a aparência exterior – aparência porque existe mais o que não se vê do que o que se vê – e a revisitação da memória, havia um mundo de ilusões mortas. Sabia que o regresso físico aos espaços e aos tempos antigos já não seria possível. Era um homem cheio de incertezas e, talvez, por isso, tímido. Vivia o contencioso da vida - essa consumição incoerente em que se julga já não perspectivar retornos -, uma desencantada impossibilidade de emendar os passos. Ficava-lhe o sorriso da anuência; perdida a hora da anulabilidade, restava-lhe permanecer no testemunho. Aprendera na leitura e nos exemplos esparsos que a suportação – o estado em que nos calamos na esterilidade dos conflitos de saldo - vai, cada vez mais, sustentando-nos, como se só depois da morte se alcançasse a rectidão e em vida a parcialidade. Em muitos dos seus dias sentia uma vertigem imensurável. Não era a trascâmara dum pessimismo representado, escondendo, desde a génese, uma metamorfose, antes a procura de uma resposta - solução que substituísse os tiques da sobrevivência. Onde esse ponto na terra em que a paz seja branca? Um sítio sem olhares de desforço e sem a aniquilação dos sentimentos? Um pequeno lugar em que nos sentemos e o fim seja sempre fim, quietude total, o silêncio seja o silêncio de si próprio, a vida e a morte uma mesma coisa na compreensão de um absoluto em que não há nada a definir? Um sítio sem ser e sem ter porque simplesmente não existe, apenas uma imanência que se (a)larga às solicitações? Desejava não afunilar os dias, a sumarização dos modos e dos pensamentos que, se não contrariada, despega os laços quotidianos. Lembrava-se dos sonhos da infância - esses vigores inocentes de contornos amarelecidos - como se viáveis na idade adulta. Não se esquecia, contudo, que as vidas nunca são cheias. Se, como alguém disse, «uma

vida plena é um sonho de adolescente realizado na idade madura», não ignorava que as impossibilidades também se definem porque são elas, afinal, que melhor sossegam as necessidades... O ansiado desusa-se quando saltam os anos, pois entre uma vontade e a sua concretização tem de haver uma coincidência temporal fora da qual nada se fundamenta, e a consciência move-se e modifica-se nos trilhos da matéria e da alma humanas. Como a lembrança.

Conheceu-o no Porto, num colégio de filhos da burguesia citadina que se estendia das Antas até à Foz, de missas solenes, aulas rigorosas e padres mal encarados que julgavam, assim, disciplinar o sangue novo. Atraíram-nos as sombras dos olhares e a timidez dos gestos. Descobriram-se com os mesmos gostos e as mesmas rebeldias. Não aceitavam o País sombrio como uma prisão, nem os seus mandantes como carcereiros. O sol parecia-lhes emprestado e eles queriam-no quite. Sabiam que a guerra os esperava e não estavam dispostos a faze-la pela teimosia de velhos ditadores com pêlos no coração. Juntaram carteiras e repartiram a repugnância. Nos tempos mortos, sem aulas, desciam Santa Catarina, até ao Tribunal de Polícia, para verem o juiz aplicar as leis que condenavam miseráveis que roubavam para enganar a fome. Sonhavam ser advogados duma justiça gratuita ou revolucionários duma sociedade igualitária. Detestavam tanto os dedos repletos de anéis  quanto os rostos desnutridos das crianças das ilhas, juravam acabar com as vaidades dos faustosos e com os velhos carregados de papelão. O combate era o mesmo: contra a ostentação e a pobreza que ambas desfaziam o equilíbrio. Naquele meio, enquanto os colegas discutiam Jaguares e Lotus, festas particulares e engates na Avenida Brasil, casas no Moledo e palácios em Gondarém, fumavam Marlboro comprado no contrabando de Leixões, vestiam as roupas das boutiques e propalavam as prosperidades paternas que iam de consultórios afamados de Sá da Bandeira a fábricas prestigiadas de Riba D’Ave, eles encolhiam a ruralidade como se transportassem uma rareza provocatória. Não se sentiam rejeitados, mas, anotados numa diferença de casta. Eram os parolos que falavam axim, tinham a visão da verdura primaveril ou da palidez outonal e não o cinzento disfarçado pelo comodato da aparência; comiam batatas e sabiam como se plantavam, tratavam e colhiam, não as esmagavam em puré de menor esforço.

Vivia num quarto alugado, numa esquina das ruas de Santa Catarina e Firmeza, onde almoçava e jantava na companhia dum casal descompensado: ela, alta, rosto cheio de ruge, busto disforme em relação às ancas sumidas como duas canas; ele, curvado, velho prematuro, faces de delta, lábios secos a chuparem sempre um português suave sem filtro, olhos suplicantes pelo fim do mês. Chamava-se Alzira, a matrona, e, até, o nome - sempre lhe pareceu isso - condizia com a sua vanglória. Ele, Francisco - que, como sabemos, é título de santo arrependido de doideiras antigas -, gemia-lhe (ou ruminava-lhe?), num despropósito manso, juras de amor sempre que ela abria a porta, pelo tarde, quase noite, e entrava, apressada, com cara de desplante, para servir uma omolete de fiambre com arroz aquecido, sobrado do almoço. João detestava-a toda: o corpo em funil, o rosto de mercearia, o desprezo com que tratava o marido. Tinha um ar marcial, impróprio de homem quanto mais de mulher, e via-se que fazia da casa um uso forçado. Só a pena que sentia pelo homem, queimando a reforma dos STCP em cigarros, o impedia de se mudar. Acrescia que o quarto tinha uma vista larga, estendida até à Batalha, de onde apreciava, nos declinares dos dias, aquela agitação de feira com os eléctricos a tilintarem para o Marquês. Também era rápida a derrotina até à Baixa, para, depois de, no Sport, matar a fome com um prego e um fino, se espraiar, Diário de Lisboa debaixo do braço, no jornal luminoso onde passavam as notícias que o ditador do Vimieiro autorizava.

A companhia do Artur – assim se chamava o colega e amigo - não era só o alheamento da rotina, mas, acima de tudo, a comunhão da utopia. Iam à Unicepe ou à Leitura folhear os livros que não podiam comprar, às sessões do Cine Clube, no Batalha, aos domingos de manhã, e reuniam-se na casa dele, em Latino Coelho, entusiasmando-se na leitura de Rosa Luxemburgo, a última edição da Seara Nova ou os Ensaios de António Sérgio. Ele vivia ali com a Mãe, vendo, algumas vezes, por lá, um sujeito alto, com ar de desocupado. Tinha maneiras de aproveitador, enquanto ela cara de berço limpo e afabilidade condizente. O Pai fora um confortado lavrador, na vizinhança de Alijó, até o coração parar na subida de um socalco. A Mãe, professora primária, cansada do luto e de aturar os filhos dos outros, ainda no viço da idade, comprou um andar no Porto depois de vender as vinhas, a casa e os lagares a um irmão que sempre as invejou. O tempo ia passando na contemplação do filho e no remoer de uma viuvez precoce. Senhora de modos colegiais e conhecimentos na escala dominante, não lhe foi difícil beneficiar de um lugar na Escola do Magistério, no cimo da Rampa da Escola Normal, a imperar nos serviços administrativos. A idade, curando feridas, habitua a vida, o que a levou a não se furtar aos ludíbrios da sedução como quem tolera um passatempo sem mais nada para fazer. O Senhor José – assim se chamava o intruso - era essa permissão não realizada, ficando sempre de mãos livres para rectificar um engano. D. Dulce – a Mãe de Artur - avançara na época e colhera da sua experiência no mundo a reserva afectiva e uma serpentária postura social. Os seus olhos tinham uma coloração esbatida de quem espera pouco dos outros. Dizia-lhe algumas vezes: «Sabes, João, estou cansada de dizer ao Artur para viver sem desesperos. Nunca sabemos quanto duramos nem como acabamos. Sois novos, eu também já fui, mas essa é a minha vantagem: poder falar do já conhecido.» Artur, que aliava a sensibilidade nascida à revolta adquirida, não suportava aquela deslealdade materna. Lembrava-se, ainda menino de bibe, do funeral do Pai, das lágrimas, dos soluços e das janelas da casa fechadas durante dias. Alguma coisa não batia certo no seu entendimento: tinha sido tudo fingido ou agora é que era verdade? Dedicava à Mãe aquele respeito que não admite discussões. Não lhe fugindo no desvelo, parecia-lhe, por vezes, que ela usava isso como recompensa chantagista para lhe travar os impulsos. As particularidades das vidas, todas as intimidades, conhecem-se pela confiança que a amizade conquista, como se, sem aquelas, esta não fosse mais do que um frivolidade. Longe de existências muito convividas, de faustos e simulados exageros que são, afinal, rápidos naufrágios em que poucos se prestam ao socorro, João e Artur nada ocultavam, tinham enterrado o egoísmo e alcançado o cimo da relação. Mais do que irmãos, em que tantas vezes se disfarçam invejas de posse ou ciúmes de ascendência, eram almas germinadas por semelhanças de carácter, sem despojos para contender. Todos os dias burilavam a confidência. Sabiam os nomes e as maneiras, os venífluos e as hematoses, as máculas e as santimónias de ambas as sagas familiares, discutiam-nas como se lhes fossem pertença e mútuos os ditames. Artur mastigava a inabilidade de não impedir a presença «daquele gajo»; ter que comer com ele, mesmo esporadicamente; sentir-lhe o cheiro e a peganhosice assassinava-lhe os dias. Libertava-se, ganhando uma euforia de reconquista materna, quando ele batia a porta e dizia «até amanhã!» com um modo de chupim repelente. Não trocavam, ele e a Mãe, uma palavra sobre José. Comportavam-se como se aquilo fosse uma ferida que acabaria por desaparecer. Era uma relação septicémica que um dia tinha que ser, forçosamente, sangrada. Ambos esperavam qual deles seria o primeiro a iniciá-la.

- Quando fores a ver, ponho-me a andar. Deixo a minha Mãe à vontade. Vou lavar pratos para Paris e fico pronto para todos os exames de Francês - disse-lhe, Artur, no feriado de uma aula, no Café Saban.

- Não deves abandonar o que te pertence - retorquiu João, para quem a França era uma miragem literária.

- A minha Mãe já não me pertence desde que o tipo entrou na minha casa. Não devia ter feito aquilo - acentuou, olhando-o bem de frente.

- Não te esqueças do que já te contei: a minha Mãe também ficou viúva aos vinte anos, nasci sem conhecer o meu Pai. Ás vezes, penso muito nisso, como reagiria se ela se voltasse a casar, mas, também, acho que não tenho o direito de a impedir.

- Mas a minha nem se casou... Não se atira ao lixo a memória dos que nos deram o ser – fazendo um gesto largo com os braços.

- Vamos dar uma volta, não falemos mais nesta merda.

- Mas falemos, Artur, os orfãos devem expulsar os seus lutos. Entre a vida que nos deram e a morte que os enterrou há uma recordação incurável.

- Tu não conheceste o teu Pai, é mais fácil a tua posição, nunca o viste.

- Parece-te. Tenho a saudade da sua imagem. Pelas fotografias vê-se que era um homem com olhos tristes como se já adivinhasse a sorte. Há pessoas assim, que nascem para o inevitável.

Lá fora, sob uma chuva miudinha feita choro de uma velhice, os carros subiam e desciam Sá da Bandeira. O Porto, no Inverno, é uma arca frigorífica desconsertada. As pessoas - carregadoras de heróicas paciências - arrastam-se na obrigação de prover o sustento, olhar de zelo e caminhar de funeral. Dentro do Saban, o cheiro a torradas e a café, o fumo dos cigarros, a voz avinhada - «Graiiixa!» - do abrilhanta sapatos, o olhar pasmado de velhos sorumbáticos, as larachas dos que não tinham aulas e, na cave, os ecos das carambolas do bilhar.

- Vais – te habituar à situação – retomou João, dando-lhe uma palmada no braço. - Ele trata-te bem?

- Mostra-se agradável. É um manhoso. No outro dia, à mesa, quando estávamos a jantar, disse que eu precisava de um relógio novo, que este não valia nada. Meteu-me nojo, aquilo soube-me a azeite rançoso, e respondi que o dele é que era uma cebola. A minha Mãe fez aquele sorriso do costume e tocou-me na perna. É o sinal para me calar. Ela pressente o conflito e desespera-se em adiá-lo, entendes? Como não quero feri-la, calo-me.

- Está na hora do Latim – lembrou João.

- E se não fôssemos? – insinuou Artur.

- Vamos, vamos, o Careca dá umas aulas porreiras. Além do mais, temos que treinar as declinações e pedir-lhe ajuda para a tradução daquele poema do Virgílio. Anima-te Artur! – rematou um João sorridente, bufando nas mãos e esfregando-as.

Eram, no entanto, as aulas de Literatura do Braga que mais os estimulava. Riam-se quando descrevia as tragédias ou as catilinárias Camilianas, e sonhavam ser poetas quando discutiam Cesário Verde. O Braga dava aulas no Particular porque se recusara a assinar o papel de renúncia às suas ideias, condição indispensável para
todos os que concorressem ao Ensino Público. Não escondia o seu rancor e, à tarde, depois do almoço, as faces avermelhadas, atirava inflamado: «Lembrem-se que aqueles figurantes do Alexandre Herculano têm um prazer sádico de esticar os que lhe aparecem sem serem do Liceu! Têm que estudar o dobro! Ouviram bem?! Não se riam que, depois, choram!» Fazia uns apontamentos, em fascículos, que todos compravam e lhes serviam para arredondar o ordenado. Modestamente vestido, sempre com o mesmo casaco puído nos cotovelos, o Braga era o ídolo.

Terminadas as aulas, com a noite a nascer, desciam Santa Catarina, mirando as raparigas, iam ao Rialto tomar um café, recapitulavam as lições, sentados nas poltronas, enquanto espreitavam as coxas das miúdas e a hora do jantar não chegava. Contornavam, depois, a Brasileira («Olha o António Pedro!»), subiam a 31 de Janeiro, passavam na Vadeca e ouviam uns discos (aparentando que iam comprar) do Clif Richard e dos Beatles. Nos Correios da Batalha pedia uma chamada para a Mãe, algumas vezes desistindo tal a espera, miravam as empregadas da Janota, espreitavam a montra da Latina, e repetiam Santa Catarina, agora subindo-a, para se
separarem no cruzamento da Rua Firmeza onde o Artur saltava para o eléctrico do Marquês. João voltava para o quarto, revendo a matéria dada até o mastodonte da Alzira o chamar para os restos do almoço. Em algumas tardes de sábado, bafejadas por amenidades (as de domingo repeliam-nas pela balbúrdia formigueira), iam até à Foz. Desciam à Praça e olhavam os títulos da Figueirinhas enquanto o eléctrico que, ao longo da Marginal, desenhava o mais belo trajecto do Porto, não vinha. Apeavam-se em frente da Doce Mar, atravessavam para o outro lado e espreguiçavam-se pela Avenida Brasil. A maresia despertava-os para as lembranças das férias. Subiam ao terraço do Homem do Leme, ladeavam o aquário Vasco da Gama, insinuavam-se pelos trilhos ajardinados, paralelos à avenida Montevideu, mirando os palacetes da burguesia bem sucedida, passavam o Castelo do Queijo, até se quedarem no parapeito em pedaços da praia Internacional. Repetiam o passeio ao contrário e, numa das esplanadas da beira-mar, pediam uma torrada e duas meias de leite. Deixavam-se estar a gozar a soalheira, de olhos fitos na modorra envolvente. Não havia dúvidas: a Foz era a diferença do Porto, a alta roda das mansões e apartamentos insonorizados como num condomínio asséptico. Os adultos confabulavam traições domésticas ou adornavam venturas profissionais, enquanto os filhos fumigavam em bailes de garagens. Os de fora demandavam o Orfeão nas imediações do Passeio Alegre ou a Aurora da Liberdade para os lados de Matosinhos, onde apalpavam criadas de servir ou peixeiras de ancas roliças. Muitos dos moradores distinguiam-se da casta restante, tinham os tiques elitistas da posição, vestiam, falsamente négligés, as melhores marcas das lojas de estilo e passeavam os caniches como objectos de luxo ou eram arrastados pelos podengos de guarda.

João e Artur gostavam de estar ali, pernas esticadas, a contemplar aquele bocejo pastoso, com a brisa, resvés à areia, a distende-los. A hora tinha sido adiantada, anoitecia mais tarde, o sol acariciava, já se viam alguns vendedores de picolés, língua da sogra e batatinha à inglesa. Apetecia aquele ambiente diferente, com raparigas de mini-saias atrevidas, os acompanhantes desejosos de conquistas para anunciar nas segundas-feiras de aulas. João apreciava o jogo da sedução, aquela troca de olhares como um flébil motim interior que distrai corações inconstantes. Elas sentiam-se cobiçadas, relevavam a sensualidade, tricotavam risinhos nervosos e, de través, observavam os efeitos.

- João, posso ir passar a Páscoa contigo? – perguntou Artur, assim sem mais nem menos, acordando-o da modorra.

Não lhe respondeu, num desvelo contemplativo da mesa em frente. Estava agarrado a uns olhos azuis, se não eram azuis assim os ambicionava... No meio da algazarra do grupo, ela parecia absorta, sem acompanhar as risadas, de olhar arrependido por estar ali; o seu rosto era um nórdico postal ilustrado; até o cabelo, deslizando pelos ombros, tinha a cor do caramelo.

- Joããão! – berrou Artur, fixando-o de lado. – Porra!, não podes ver uns joelhos!!!... – chacoteou.

Mas ele escutara a pergunta, ou melhor, pareceu entende-la no fundo do entorpecimento como um despropósito sem ligação com o momento.

- Que disseste?...

- Perguntei se não te importavas que eu fosse passar as férias da Páscoa contigo, lá em cima – fitando, distraído, um barco que, ao largo, aguardava vez em Leixões.

João fixou-o surpreso, não pela ideia, mas pelo significado: “Este tipo deve-se sentir mesmo mal! “.

- Mas qual é o problema? Só tenho é que avisar a minha Mãe. – E calou-se como se achasse tal pedido naturalíssimo.

Quando começou a esfriar, subiram as escadas para o passeio largo da avenida e esperaram o eléctrico. João resolveu recuperar a conversa.

- Queres, então, ir nas férias comigo, é?...

- A minha Mãe deu-me a entender que gostaria de passar uns dias em Lisboa. Temos lá uns primos, eu mal os conheço, moram para os lados da Parede, Oeiras ou coisa parecida, e o gajo vai com ela. Pediu-me para ir com eles, mas não me estás a imaginar nessa viagem, pois não?

- Não sei porquê. Atenção: não estou a insinuar que não quero que vás comigo, vê se entendes, mas a tua Mãe com certeza que gostaria que fosses.

- João... – balbuciou Artur, mirando-o de soslaio, envolto num sorriso de troça.

Meteram-se no eléctrico e, como não havia um único lugar vago, encostaram-se à vedação da plataforma.

- Não há meio de ultrapassares a situação, não é verdade meu cara de caraças? – folgou João. – Não consegues aceitar, pois não?

- Não. Às vezes, bem tento, esforço-me por me iludir, arranjo motivos para dar o caso como adquirido, mas é demasiado. Não te aborreço com estas merdas, pois não?

- Claro que não...

Pouco mais falaram durante o trajecto. Comeram um prego em prato no Estrela, subiram 31 de Janeiro e foram ver o Cowboy Insolente ao Águia Douro.

Estava um sol maravilhoso naquele começo de tarde dum sábado de Abril, quando tomaram o comboio de Barca de Alva. São Bento era uma câmara de eco das pressas feitas de correrias e despedidas. Os migradores do interior, que saíam de casa nas madrugadas de segunda-feira, voltavam para aliviarem os corpos de uma semana
a acartarem argamassa, arrumavam os embrulhos e os garrafões como posses suadas, fotografando os mais próximos, esquadrinhando-lhes as feições; os caixeiros dos concelhos confinantes que, na cidade grande, sonhavam com quinhões de comerciantes sem descendência, gastavam a brevidade do trajecto a lerem o Comércio; as vendedeiras de Contumil, roucas por uma manhã, às portas do Bolhão, a apregoarem as hortaliças e os frangos pica-na-areia, barafustavam por um espaço para as cestas com verdura e penas coladas.
Continua...

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

2/08/11

OS FRONTEIRÓMETROS - 1

Quando, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, lhe entregaram um impresso para indicar três Quartéis onde gostaria de ser colocado, depois de terminado o Curso de Oficiais Milicianos, o soldado cadete João coçou a cabeça e pediu para entregar aquele no dia seguinte. De noite, na caserna, depois da instrução nocturna, enquanto o sono não se apresentava, magicou no caso. Tinham de ser terras onde houvesse Destacamentos de Infantaria. Porto foi logo a sua prioridade. De lá tinha sido arrancado, o curso de Economia no início, e gostaria de regressar à velha cidade granítica, mesmo que por escasso tempo, pois, sabia-o, mais tarde ou mais cedo, abalaria, num barco qualquer, para uma frente da guerra colonial. Era uma circunstância sentimental, uma maneira de regressar aos velhos lugares, embora com uma farda. A segunda hipótese levou-o a Vila Real, onde, em tempos, no 13, o seu Pai cumprira a obrigatória servidão militar. Seria interessante pelo simbolismo e, como ficava a escassos quilómetros de casa, podia, até, ir e vir todos dias, excepto aqueles em que a Ordem de Serviço o colocasse na escala. Mais difícil foi acertar com a terceira opção. Excluída Lamego, não coadunável pela sua especificidade, além de não estar fadado para Ranger ou travessias de rappel, sobrou-lhe Chaves. Nesta cidade raiana, na década de sessenta, quadra em que esta narração decorre, localizava-se o Batalhão de Caçadores Especiais 10, com o epíteto de fronteiros de Chaves, sempre excelentes e valorosos, unidade com fama de dura e rigor militarista, tanto na corporação castrense como nas margens da sociedade civil que, de algum modo, lá tiveram ou tinham familiares. João, também, não o ignorava, mas devia completar o quadro das três preferências, sempre confiante que, se não lhe satisfizessem a primeira, a segunda, ao menos, não lha recusariam. Com essa esperança fez as malas e partiu para casa, mal lhe deram a bicha de Aspirante, a aguardar futura ordem de marcha. Pouquíssimos dias depois, com um indisfarçável sorriso e sem espanto – que, das coisas militares, ele já de nada se admirava - , o carteiro entregou-lhe uma carta onde vinha a convocatória do Exército para se apresentar em Chaves.

Numa reluzente manhã domingueira de Julho do ano de sessenta e seis, ao fundo de uma frondosa Avenida, em meia-lua espaçosa, viu o seu novo destino, admirando-se por, logo à primeira vista, dele ter gostado. Saiu do automóvel emprestado pelo Pai, correspondendo, ufano, à apresentação de armas do sentinela, e solicitou esclarecimentos ao Sargento da Guarda. Se pelo brilho do dia, pelo descanso da incógnita acabada, ou a frescura do edifício, foi satisfeito que estacionou o carro no parque, fez as apresentações ao Oficial de Dia, arranjou quarto, pousou a mala e percorreu, sozinho, as divisões da sua nova casa. O Quartel, reverberando ao sol, fazia-lhe esquecer a soturnidade conventual da Escola Mafrense, que, em depósito de meio ano, sempre lhe lembrara penitências de castrados fradescos, cumprindo, envoltos na escuridão, martirológios irracionais. Agora tinha, apesar da sua condição de milícia forçado, o calor e a brancura de um espaço que o aprazava. Mal ele sabia, infante ingénuo e generoso, que dentro daqueles muros, com um punhado de iguais, cozeria, no seu mais feliz período militar, o alimento puro e belo da amizade perdurável.

Em posição altaneira à cidade, como se velasse pelas suas gentes, costas defendidas pela Serra Amarela que se estendia, numa esquerda longínqua, para se grudar à cordilheira Castelhana, o Batalhão tinha uma ampla Porta de Armas, acedendo-se ao Comando e respectiva Messe de Oficiais através de uma escadaria bordejada por canteiros de verdura ou por dois curvilíneos arruamentos empedrados subindo ligeiramente. Atrás daquele, uma enorme Parada, impecavelmente limpa, com as casernas laterais, e, no cimo de uma pequena elevação cimentada, o Refeitório das Praças com a Messe de Sargentos ao lado. Depois do almoço, João desfardou-se e resolveu dar uma volta pela velha urbe onde Trajano deixara história. A apresentação ao Comandante da Unidade, dos Aspirantes esperados, seria feita na manhã seguinte, assim como a atribuição das tarefas futuras. Desceu a pé a Avenida que subira de manhã; passou no largo, onde, todos os anos, se amontoavam os feirantes da festa dos Santos; desaguou no jardim do Tabolado, em frente ao Liceu, e entrou no Aurora. Sentou-se, pediu um café, mirou e remirou o ambiente. Numa mesa do canto, escutado por uma tertúlia de catecúmenos, viu Nadir Afonso, que conhecia dos suplementos literários, de barbas grisalhas, provavelmente em vilegiatura flaviense. Reparando, descuidadamente, num jornal abandonado em cima do balcão, levantou-se, pegou-o, perguntou «Posso?», ressentou-se e, afastando a chávena, abriu-o sobre a pequena mesa redonda: era o Notícias do Tâmega. Sobre ele se debruçou, fingindo compenetrada inculca, mas reparando sempre em quem saía ou entrava. Deixou-se estar um bom bocado, pernas cruzadas, queimando cigarros. Eram bonitas as raparigas de Chaves... Depois, desceu a Rua de Santo António, virou à direita para as Termas, visitou a zona dos balneários cheia de aquistas que se amornavam nos bancos a fazer horas para a ração da água, retrocedeu para a Ponte Romana, sob a qual um Tâmega estival corria serenamente para a lonjura do mar, e reiniciou o trajecto ao contrário junto do posto da PVT. Os domingos não são bons dias para se perceber uma cidade, ausentes as rotinas, as surpresas e o nervosismo do quotidiano utilitário, mas pareceu-lhe – confirmado pelos meses seguintes - que Chaves era uma cidadezinha aconchegada, de conhecidas vizinhanças, limitada pelas faldas dos serros circundantes, onde, contudo, fervilhava um próspero comércio e um tolerado intercâmbio fronteiriço, um sopro suave e morno de fraternidade embrulhado num orgulho regionalista.

Quando regressou ao Quartel, deu, num abraço de risos e brados, com o Bandeira, seu antigo companheiro do Brotero, agora reencontrado em outra sorte. Pela noitinha, quanto viam a RTVE na sala da Messe, juntaram-se-lhes, vindos do Porto, entre outros, o Altino e o Ângelo que, feitas as apresentações, vá-se lá saber por que resultado afectivo, logo combinaram ficar no mesmo quarto de quatro camas e que tinha o número doze. João sentia necessidade de partilha, como se procurasse almas gémeas em que confiar. Boa parte da noite passou-se no desenrolar das experiências mútuas, numa pressa de conhecimento que selasse um pacto.
Continua...

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

9/18/10

A PROCISSÃO

(Clique na imagem para ampliar)

Gumiares é uma aldeola de pouco mais de um cento de casas, acabadas e ricas, umas, construídas à medida das posses e remediadas, outras. Tem um caminho a meio, separando vinhedos escassos de pomares abundantes. Entra-se por ele, esmagando o serrim de uma carpintaria alimentada pelos pinheiros do monte de Santa Bárbara com a sua capelinha, em vigilância protectora, a encimá-lo.

Naquele final de uma manhã de Agosto, sob um calor abafado de trovão a molengar os corpos, a banda de música actuava no adro, os emigrantes encostavam-se aos carros com as letras dos países do seu suor e as chaminés fumegavam no fazer dos almoços melhorados.

Silvestre, mordiscando a expectativa, dirigiu-se, com o irmão, à casa do primo Gabito que os recebeu no cimo das escadas.

- Sejam bem aparecidos! – esfuziou, enquanto descia com as cautelas dos seus setenta e cinco anos de reumatismo avivado em cada Inverno frio e húmido como eram os de Gumiares. - Então só vieram vocês? Mas eu contava com todos, valha-me Deus! – acrescentou pesaroso.

Cumprimentaram-se sem fingimentos. A Rosália – devia ter metade da idade do Gabito – surgiu fresca, a enxugar as mãos no avental, em jeito de matrona precoce.

Gabito, ao fim de meia dúzia de anos de viuvez, fizera as partilhas com os filhos e amancebara-se, num gesto de escândalo rural, com a sua antiga criada. Rosália possuía uns olhos verdes de fogosidade contida num rosto com traços de ligação controversa; o modo de ser de uma gazela desconfiada numa selva de leões, mas intervalos de desinibição previdente em riso de fêmea não realizada.

- Vamos esperar pela procissão e depois almoçamos – disse Gabito, boca escancarada de satisfação. - Agora está tudo na missa, mas acaba num instante – rematou seco.

Subiram para a sala de jantar. Numa mesa enorme, rodeada por cadeiras aveludadas de espaldar alto, os pratos, bem alinhados, luziam com os talheres; numa mais pequena espalhavam-se doces variados. À direita, ladeada por sofás de couro castanho debruados a madeira do mesmo tom, resplandecia uma cristaleira com serviços caros; em frente, sobre uma espécie de armário, regougava uma televisão. Para a rua davam duas janelas e uma varanda de sardinheiras. Debruçado nesta, Silvestre explorou as vistas: o monte de Santa Bárbara, revestido pelo verde dos pinheiros, roçava as nuvens; logo abaixo, na ondulação da descida, talvez um acre de terra com um punhado de cepas dispersas, de cultivo poupado, aguardando a vindima numa espera desalentada; dos vergeis de macieiras, alinhados a esquadro, evolava-se um perfume farto e adocicado; para a sua esquerda, num recanto de sabugueiros desquitado do conjunto, um melro cantou.

- Então o primo não foi à missa? – perguntou Silvestre.

- Não nos damos lá muito bem, eu e o Padre - respondeu, com um tom de aborrecimento na voz. – Fez uma pausa. - Sabe como é, coisas da terra, desta gente que não tem nada que fazer – completou com algum sarcasmo.

- E que tem isso a ver? Uma coisa é a devoção, outra...

- Tem razão, mas, sabe, não gosto de o encarar...

Gabito fora atrevido. Em Gumiares nunca se vira uma coisa assim. Um homem com sete décadas nas pernas, mais para lá do que para cá, netos crescido, juntar-se a uma Rosália qualquer, com menos – ou um pouco mais, que interessava? – de metade da sua idade!? O povo falara. No seu entendimento, aquilo era, por um lado, maluqueira de velho e, por outro, ganância de rapariga nova a sonhar com contos de reis, lagar e tulhas cheias. «O maluco do velho», como o chamavam na aldeia, contudo, segurara-se. Os dois filhos mais velhos, arrumados cada um em sua casa, pomares e cepas independentes, encolheram os ombros. A divisão de bens, todavia, não calara o Silva. Mais instruído, com frequência liceal e gosto pela leitura, quiçá mais amorável e delicado, não o satisfazia tanto o materialismo das coisas como a honra de uma maneira. Ia mais longe e mais fundo, ao sentimento da vida que se faz de respeito e gratidão. Após discussões azedas, por bastas ocasiões a ameaçar uso de mãos ou o que estivesse mais a jeito, apelidava os irmãos de traidores, incapazes de respeitar o nome e a memória maternas. Ciente de que a alma da Mãe se reincarnara no seu rebate, mandou, numa tarde de Maio, e com a liberdade que a sua condição de solteiro permitia, uma rajada de desprezo a todos eles e abalou para o Brasil onde um tio paulista lhe prometera guarida. Levava a recordação dela e, no bolso, as notas da venda da sua parte a um ricaço de Chãos. O irmão mais velho, bem o pressionara para lha vender, mas berrara-lhe que antes queria deixar tudo a monte a ceder um palmo a «hipócritas como tu!».

O Silva subira na consideração de Gumiares, as gentes falavam dele com carinho, e o Padre Messias usava o seu exemplo na cristandade das suas prédicas.

Para Gabito, e restante família, o caso não os espantou. Desde os tempos dos estudos, em Lamego, que o Silva era dado a contrastes e arrebatamentos. Não suportava o que ele chamava imoralidades; o mais pequeno pormenor ético ou desconsideração consanguínea, deixava-o no limiar da exaltação. Repentino e apático, alegre e macambúzio, apaixonado e indiferente, irritado diante de um gasto e calmo perante uma poupança, podia-se afirmar, sem muito exagero, que foi com alívio que os irmãos o viram partir no carro de praça do Flecha. Só Gabito enxugou as lágrimas. Deu-lhe ganas de correr atrás dele, pôr-se diante do carro, gritar-lhe que abandonava tudo, até a Rosália se fizesse muita questão nisso, para que ele ficasse. Percebeu, num repente, que nada vale mais do que a presença de um filho, mesmo de um filho incómodo, mesmo um daqueles filhos a quem os Pais querem mais quanto mais mal lhes fazem. O Silva era o mais novo dos três, nascido já fora dos cálculos procriadores, o protegido da sua falecida, o menino que ela amparava porque – como dizia – «quanto mais sensível mais fraco». Nessa noite, nem o corpo quente da amante lhe fez esquecer a poeira que o Mercedes de aluguer levantou.

Gabito notou à sua volta o crescer de uma barreira de frieza que só o seu dinheiro conseguia rasgar. Tal magoava-o em dobro, porque àquela juntava a impostura com que o tratavam, mas a que se foi habituando. Até o Padre Messias deixara, sequer, de o olhar, a sua casa riscada no mapa dos desvelos paroquiais. A tudo resistia com maior ou menor custo, num faz-de-conta de normalidade. Só o silêncio do seu Silva lhe cortava o coração. Retirava-se, então, para o recém-adquirido pomar do Cosme, e ali chorava como um Pai, convulsivamente, abafando os soluços no barulho do motor de rega. Pusera-o a estudar num bom Colégio quando disse que queria tirar o Liceu, pensou que iria ser o Doutor da família em contraste com o João e o Fortunato que andavam de cá para lá no negócio da maçã. Se não continuou foi porque não quis. Enquanto a sua Mulher foi viva cumpriu sempre com os seus deveres, criara os filhos num exemplo de trabalho, fizera casa, prosperara com a inveja a pisar-lhe os calcanhares, nunca faltara com o necessário e, por vezes, resvalava nos dispêndios só para acirrar as emulações da aldeia. Juntara-se à Rosália porque não queria morrer sozinho num Lar com os filhos a visitá-lo para verem se ainda estava vivo e a lembrança da Mulher a aumentar-lhe o abandono. Mais do que uma amante de momentos raros ou um estímulo para disfarçar a preocupação prostática, era uma muleta a que se agarrava para cumprir hábitos de comida feita, roupa lavada, companhia de insónias, uma cabeça que não se esqueceria de lhe dar os comprimidos que o Médico receitasse, uma tratadeira para a incógnita de um fim de vida.

Um dia, malucando em tudo isto, o carteiro entregou-lhe uma carta de riscas amarelas. O coração quase lhe parou. Com a vista enevoada leu as primeiras letras do Silva. Que desculpasse, mas, ele, apesar da desconsideração que fizera à Mãe, não se esquecia do Pai; que estava bem, já dono de uma padaria nos arredores de S. Paulo, com algumas saudades, é certo, mas sem pensar em regressar.

- O Silva tem dado notícias, primo? – perguntou Silvestre.

- Lá está... Continua bem na vida, convidou-me para o ir visitar, só eu, claro... – reticenciou.

Um foguete estoirou, interrompendo a fala. Outros se seguiram num ribombo que escandalizou a pasmaceira. O caminho, de súbito, perdeu o sossego. Mulheres ligeiras, com camisas brancas e saias azuis, passando sob a varanda do Gabito, cumprimentavam como quem não quer faltar ao respeito pelos estranhos; outras, cochichando baixinho, coziam-se às sombras das macieiras e aceleravam o passo como beatas queirozianas de um qualquer Padre Amaro.

O sol estava no auge. A missa acabara e o foguetório estremecia a terra. A passarada fugia em revoadas e os cães ladravam. Não tardaria a procissão.

Foi no regresso de uma madrugada de Junho. De Porto Amélia a Chãos, parara em Nacala, Beira, Lourenço Marques, Durban, Cape Town, Moçamedes, Lobito, Luanda, São Tomé e Funchal. Em Lisboa, Silvestre chegava ao fim de uma longa viagem. Lá longe, uma saudade sofrida espraiava-se pelas picadas e pelas tembas; uma lembrança de estoiros e gritos, raiva e sangue, corpos vigorosos e farrapos-lençóis; o Pires, Furriel alentejano, com risos interrompidos numa curva da Serra Mapé e uma braço do Barbosa numa mina de Muidumbe; os ecos das noites cacimbadas ou das tardes causticantes, de acampamento em acampamento. O regresso a Chãos, povoado decrépito mas rico - porque fora ali que ele vagira untado com o sangue da Mãe -, devolveu-lhe a dignidade cortada por um ditador raivoso que o mandara num barco transporte de carne para canhão; reencontrava os abraços da família e dos amigos, gente que suava nos campos, alguns já passados por África, outros à espera de vez, ignorando se o velho Calígula era eterno ou morreria como todos os mortais. Também os foguetes acordaram a aldeia naquela madrugada sem horas. Silvestre regressava vivo e moreno do sol moçambicano, mais velho e mais perspicaz que a ausência criara defesas, um rosto seco mas uma alma sempre – mas sempre – solidária. Partira um dia de Chaves com uma angústia do tamanho da Serra Amarela a tapar-lhe a garganta. Silvestre estava de volta e o estrondo dos foguetes lembrou-lhe a aleluia da sua ressurreição.

- Primo, daqui a pouco temos a procissão – atirou Gabito, sem saber que o estava acordando do limbo da memória.

Silvestre sorriu atencioso e não disse nada.

O cortejo, após uns nervosos preparativos no adro, espraiou-se, colorido, no caminho: à cabeça, o estandarte da irmandade de Gumiares seguro por um homem sem idade que é sempre assim a dos velhos, muito velhos, quando, ainda por cima, uma opa negra os envolve; depois, entre aquele e o Sagrado Coração de Jesus, dois anjinhos espantados, de vestes caras e inocências brancas, com as Mães perto para lhes remediarem qualquer descaída das asas; um Cristo curvado, de barbas e coroa de espinhos, arrastava uma tosca cruz de madeira; seguia-o Nossa Senhora das Dores, distraída a mirar os ocupantes da varanda do Gabito, que, apesar de tudo, tolerante na sua crença baptismal, sorria; um S. João espartano, de costelas salientes, cordeiro enrolado ao pescoço, compenetrava-se do seu papel; Nossa Senhora de Fátima, alta e bonita, num rosto trigueiro, ligeiramente comprido, caminhava serena e alheia do que à sua volta se passava; a uma curta distância seguia Santa Bárbara, de menino ao colo, em andor azul e vermelho repleto de marcos e francos; o Padre Messias, envolto na alva de linho, segurava a Custódia sob o pálio que os mordomos, escorrendo suor, levavam, inquietos, a mexerem-se para disfarçarem o incómodo; a Banda, logo atrás, pautava a cadência com o homem do bombo transfigurado num possesso enrubescido; por fim, homens, de chapéus nas mãos, e mulheres, de lenços brancos rendados nas cabeças, cantavam o Avé-Maria, enquanto os que se postavam nas bermas ajoelhavam à passagem do sobrecéu.

Quando a procissão acabou de passar, Gabito, como liberto de uma obrigação, fez um sorriso a unir as orelhas, virou-se para a Rosália e disse-lhe: «Pode vir o anho!»
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".

  • Também pode ler M. Nogueira Borges no Blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

6/29/12

Um adeus sentido a MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES

Nota - O dia correcto de nascimento de M. Nogueira Borges é o de 05 de Outubro de 1943. A data na foto (12 de Outubro) é apenas a que consta na conservatória. Contava sempre que tal se devia ao facto de no ano de 1943 ser por vezes normal o registo ter a data do mesmo e não a real - Ricardo Nogueira em 2JUL2012)


De MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES:
Acreditem-me ou não, o que escrevi SINTO-O. Sabes, a vida é feita por NÓS, "OS SIMPLES", OS QUE ANDAM AQUI COM UMA LUZ NO CORAÇÃO.  SÓ TEMOS QUE FAZER UMA "COISA": AGRADECER A QUEM NOS DEU ESSA FELICIDADE!
Escrito por Manuel Coutinho Nogueira Borges em 7 de Fevereiro de 2012.

A notícia chegou assim:

Armando Figueiredo ->Jaime Gabao
há 4 horas
Amigos,
Anuncio-vos com muito pesar que Manuel Coutinho Nogueira Borges faleceu ontem por enfarte do miocárdio. O que parecia ser uma pequena indisposição foi infelizmente um ataque fatal. O seu corpo repousa hoje, deposto em câmara ardente, na Capela de Sto Ovídio (Bairro dos Cedros) e segue daí amanhã pelas 15 horas para a Igreja de Mafamude, onde será celebrada a missa de corpo presente. Divulgue por favor.
From: José Alfredo Almeida
Sent: Thursday, June 28, 2012 6:24 AM
To: Jaimel
Subject: Morreu... Nogueira Borges

Ola Jaime,
Bom dia..
Soube agora mesmo e nem sei como começar... mas é uma má e triste noticia para si e para mim...
Ontem morreu o Nogueira Borges...
Não sei que dizer, estou abalado com a perda do amigo, do homem bom que Deus nos colocou no caminho.
Nao sei que lhe dizer... a tristeza cai nestes montes e rio que ele também amou.
Abraço,
JASA
Jaime Gabao 28JUN2012 15H05 - Não me esqueço do último abraço que lhe dei há poucas semanas, no Porto, quando me despedi dele à porta do SAMS, onde ia marcar um exame ao coração. Parece que adivinhava. Agarrou-se a mim com lágrimas nos olhos como se fosse a última vez... Que SAUDADE já tenho de ti, "velho" companheiro de tantos anos, MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES.
Manuel Coutinho Nogueira Borges, escritor e poeta do Douro em Portugal nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial miliciano e enveredou pela profissão de bancário. Colaborou em diversos jornais, nomeadamente: Diário (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.
ÚLTIMA VONTADE
Quando eu morrer,
Que seja em Agosto
Com toda a gente de férias.
Quero morrer sem desgosto,
Sem dor e sem aborrecer,
Envolto na brancura de um lençol,
Só um padre, a família e os amigos,
Sem mais ninguém saber.
Quero morrer sem choros, sem gritos
E sem anúncio no jornal.
Morrer não é o fim,
E quem me diz a mim
Que a minha vida, afinal,
Não se renovará num caminho
De amor e carinho,
De risos verdadeiros,
Todos os dias renovados
Como se fossem os primeiros?
Quando eu morrer,
Lavem-me com a lágrima do adeus
Que quem morre sempre deita,
Não com pena de morrer,
Mas triste pelos que ficam,
Mais tristes e abandonados,
Sem saberem o que os espera:
Se a disputa de uma herança
Ou o fim de uma esperança.
Quando eu morrer,
Metam-me num jazigo
Com uma ampla janela
Para ver, através dela,
O sol de cada domingo.
Ponham-me flores e uma vela,
Uma cruz e um poema
Que aqui deixo escrito:
Nasceu sem saber porquê,
Viveu sem que o entendessem.
Morreu sabendo para quê:
Para que na ausência o lembrassem.
Basta para dizer tudo,
O que foi o meu mundo
Em criança e em adulto.
Atravessei mares e continentes,
Chorei nas noites de abandono,
Amei raças diferentes
E não sei se matei por engano.
Quando eu morrer,
Não quero ir para a terra;
Em vez de morrer uma vez,
Morreria, então, duas vezes.
Concordem que não o merecerei
E, se o fizerem, garanto-vos,
Nunca o esquecerei.
Afinal, quem vive com os remorsos
De uma última vontade não cumprida,
Naquele instante de amargura e despedida
Em que o sangue se esvai,
No grito intolerável que a vida dá,
Até se esbater cansado num ai
Que até parece que, depois dele, nada mais há?
Quando eu morrer,
As andorinhas farão ninhos
No beiral da casa onde nasci,
Cantando de mansinho
Para que não me interrompam o fim.
Apanhem uma que seja dócil e bela,
Prendam-na às minhas mãos
E deixem-me ir assim com ela,
Caixão aberto e o sol a brilhar,
As pessoas espantadas a olhar
Para um funeral nunca visto.
Batam palmas devagarinho,
Não se importem de parecer mal,
Não falem durante o caminho,
E vejam se vou a voar.
Quando eu morrer,
Se calhar, não terei tempo de dizer
O que sempre calei em vida:
Que amei tanto os outros
E alguns não me mereceram,
Que chorei por loucos
E por quem não devia,
Que encolhi silêncios
Pelos que nunca me lembraram
E alguns até se afastaram.
Quando eu morrer
Vai ser penoso ir-me embora,
Deitado, estrada fora,
Sem me mexer,
Sem poder beijar os frutos da minha felicidade,
Virtudes e defeitos do meu ser,
Os seus rostos mais lindos do que o sol a nascer
E sorrir-lhes, então, até à eternidade.

- De M. Nogueira Borges extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustrativa acima é formada/editada por diversas fotos recolhidas da internet livre. Clique nas imagens para ampliar.
Clique  nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "ForEver PEMBA" em Junho de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Este artigo pertence ao blogue ForEver PEMBA. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

10/07/11

A VOLTA

Vai, homem, por essas estradas fora, envolvido pela noite que tombou rápida como um instinto, triste como um presságio, no meio de emigrantes de duas gerações, certo de que não é o barulho que faz companhia, mas a cumplicidade dos sentimentos. Vai como quem cumpre um destino, sabendo-se que a vida é como a terra: não tem condições para se transformar num céu. Vai e não feches os olhos, deixa que as lágrimas, num tributo à paixão que deixaste para trás, te inundem o rosto e desaguem, dispersas e quentes, na angústia do teu peito, mar onde se espalham todas as penas, pois só não chora quem gosta apenas de si. Vai, contando, na escuridão que o negrume do asfalto amplia, os faróis das faixas contrárias e a luxúria luminosa das cidades distantes, certezas de que o Mundo se mexe, é grande ou pequeno consoante a compreensão de cada um.

O autocarro veio de Nice, passou por Marselha, e apanhou-me em Montpellier. Na televisão, ao fundo, por cima da cabeça do condutor, passa um filme em que o Stalone se farta de matar e de dar murros que entoam como marteladas em tonel vazio sem portinhola. O despropósito é como a credulidade: aceita-se e entende-se, mas é doloroso quando não se o pode emendar.

Abrem-se os farnéis em Côté de France, um descanso de auto estrada onde estacionam as camionetas lusas. Na frente de um hotel sem luxarias, tipo fórmula 1, estacionam jipes com os tejadilhos repletos de artefactos para a neve. Um chapéu que vai para S. João da Madeira oferece-me – e retribuo – um pedaço de baguette com chouriço. Uma gata - tem olhos de gata -, vinda não sei de onde, mia-me, estremeço, é branca como a que tenho em casa e mascote de quem deixei longe; dou-lhe um migalho de pão que recusa, mas, já aceita um de carne - não gosto destas esquisitices em animais de quatro patas quanto mais de duas -, roça-se nas minhas calças e não me larga, obrigando-me a dividir com ela, até ao fim, as minhas sandes e as minhas saudades. Depois de um café - fraco e desprezível - por sete francos, é uma pressa para as camionetas já com os motores quentes. Um jovem africano, de comovente solicitude, que vem das obras de Marselha, cabelo pintado de loiro e agrafos nas orelhas, não larga os phones e ouve tão alto o rap do seu gosto que um vizinho de assento lhe pede para baixar o som.

Em Toulouse, com um rio-canal de barcaças vazias e outras com roupa a secar, em frente à Gare Matabiau, há despedidas de abraços, beijos e prantos entre novos que ficam e velhos que partem. Uma velhinha (é mesmo velhinha), toda de preto, lenço na cabeça e saco do Carrefour na mão, olha para os assentos, a escolher lugar, e senta-se à minha beira. Encolho-me para que se ajuste no meio de um restolho de saias. Estica-se por cima de mim para dizer um último adeus, fala como se a pudessem ouvir para lá dos vidros fechados: «Não gastes dinheiro em telefone! Quando chegar, ligo-te, ouviste, minha filhinha?!» “Oh! Meu Deus!, tantas vagas e sentou-se logo a meu lado para me avivar a ferida!“. Com o autocarro a desfazer a curva, ainda a velhinha esticava o braço, roçando-me o nariz. “Por que não me deixaste só a olhar para a escuridão a contar as terras e as luzes e as estrelas e os marcos e o tempo que esta carreira demora a ultrapassar um tir e de quantas em quantas horas se revezam os condutores e – caramba! – poder esticar as pernas à minha vontade e colocar a almofada que trouxe de casa à maneira do desassossego das minhas costas? Raio!, não chores, Santa da minha Pátria, não te ponhas aí a limpar os olhos ao lenço, que o meu já está alagado; por favor, não gemas, não engulas os gritos como se fossem poldras dos teus (dos nossos) rios de amargura, nem dês esses suspiros que me acordam os arquejos de uma velhinha como tu, mas do meu sangue, antes da morte a livrar das chagas da vida e do corpo. Por favor, cala-te que me estoiras o sangue!”.

Para lá das estremas citadinas, em recônditos de segredos, erguem-se, no meio de uma veemência luminosa, os tubos-cotos das fábricas das passarolas supersónicas e dos espadas do asfalto.

- Lá está ela, a fábrica onde trabalha o meu genro... – afoita-se a velhinha num lamento, deixando-me embaraçado sem saber se lhe devo replicar ou não.

- Há muitas... - digo-lhe, anódino.

- É uma delas... – utilizando a deixa. - Já lá passei duas ou três vezes, uma confusão, nunca se sabe onde estamos, mas é para aqueles lados... Ele já tem vinte e dois anos de França – tentando introduzir o histórico familiar... - , está sempre a dizer que vem embora, mas nunca mais se decide, e a minha filha cá está com ele, a servir patroas, madames como lhes chamam, que não sabem estrelar um ovo quanto mais estufar uma carne. Depois, os meus netos, sabe o senhor, também já estão habituados aqui, são franceses... É uma vida...

Viro-me para a janela: as últimas fieiras de luzes dos arredores desaparecem. Um desalentado vazio acompanha o movimento do autocarro. “Já sei, vou ter aqui uma velha tagarela que me vai desfraldar a sua vida toda... E se eu, numa próxima paragem, mudasse de lugar, assim como quem não quer a coisa? Pode ser que ela o faça...”. Ajeita-se, esforçando os braços nas pegas do assento, distendendo-se.

- Não estou a incomodar o senhor, pois não? – pergunta, enquanto dá mais uma assoadela.

- Por amor de Deus, minha senhora, esteja à vontade...

- O senhor consegue dormir em viagem?...

- Passo pelas brasas... É conforme...

- É novo... Eu, se não houvesse paragens, só acordava em Vilar Formoso... O senhor também trabalha em França?...

-Não, minha senhora... Olhe, acabou o filme, já se pode dormir... – cortei cerce, talvez friamente.

Encosta-se melhor com o ar de quem diz «este não quer conversa...», levanta o saco e defende-o, em cima do regaço, com as mãos.

- Ó homem! Nem aqui tiras o chapéu?! – ouve-se a mulher do meu permutante da baguette. - Ele descobre-se, alisando os pêlos que lhe restam, e pôe-o nos joelhos. Ela, despachada, arrebata-lho, levanta se, abre um cacifo junto ao tejadilho e arremessa-o para lá. - Quando voltarmos a parar, vais buscá-lo, se quiseres!

Ele fecha os olhos a fingir-se tomado pelo sono.

A camioneta avança com as luzes de presença acesas que se reflectem na noite num acompanhamento fotocopiado. Tarbes ficara perdida na discussão do chapéu. À minha direita, numa serenidade de folga peregrina, Lourdes é uma devoção por cumprir. Em Pau, com os seus vinhedos de Lescar indefinidos nas trevas e os segredos nucleares da França bem guardados, entraram mais dois rostos de olhos vermelhos. Contorna-se Pax, de Igrejas com vistosas iluminuras, e pára-se em St. Jean de Luz feito ponto de encontro dos viajantes da madrugada. É um estacionamento de muitas encruzilhadas, misturas dos termos da emigração: Paris, Bruxelas, Zurique, Estugarda. Entoam risos de reencontros, fecham-se rostos de sonos trocados, dormem inocências em colos derreados, bebem-se cafés amargos e despejam-se bexigas doridas de tanto encolher.

A velhinha trinca pão com fiambre; resolvo não me mudar, não tenho coragem, peço-lhe licença para me sentar junto à janela.

- Então como se chama a senhora? – desenho um sorriso de fraternidade, emendando a secura anterior.

- Gracinda, sou Gracinda há oitenta e sete anos...

- Bonito e bem conservado nome...

- Ah!, bonito ou feio é um nome... Agora bem conservado...E o senhor?

- Sim?...

- Qual é a sua graça?!...

- Ah!, sim, sim... João!

- Era o nome do meu falecido... Que Deus o tenha em bom lugar. Já lá vão seis anos – o seu peito sobe e desce num suspiro.

- É a vida...

- Vida triste, meu senhor, vida triste. Custa muito viver só, a filha, que Deus me deu, longe...

- Então, podia ficar em França com ela...

- Não gosto daquelas terras, as gentes são meias esquisitas, prefiro a minha casinha, a minha é um modo de dizer, da minha filha e do meu genro, que foram eles que a fizeram com a graça de Deus e do suor deles... E, depois, sabe, eles têm os modos deles, querem estar à sua vontade, sabe como é... A gente cria os filhos e, enquanto precisam, estão connosco, depois, quando precisamos nós, abalam eles...

- Já faltou mais para chegarmos D. Gracinda...

- Ai Dona...Trate-me por Gracinda, senhor. Dona é para gente fina...

- Então a senhora Gracinda é mesmo fina... Quanto mais velho se é mais fino se fica.

- Mais burros ficamos, quer o senhor dizer... Só servimos para entulho....

- Nunca diga isso, minha senhora... Nunca diga isso... Conforme está o Mundo, se não fossem os velhos, já ele tinha acabado...

- Ora... Ora... O futuro é dos novos, senhor...

- Não há futuro sem um grande passado...

A D. Gracinda olhou-me como se me estudasse numa idosa sapiência, tocou-me ligeiramente no braço, num à vontade de comunhão, e disse:

- Já não vamos viver para botar a mão a isto... – apertando o tabaqueiro. – Acho que me está a chegar o sono, sabe o senhor?... – e calou-se.

O autocarro, em Hendaye-Irun, já em território espanhol, encosta junto da delegação da Guardia Civil e abre as portas. Um agente entra e confere as documentações, passageiro a passageiro. Terminada a vistoria, aproxima-se do africano de cabelo loiro, manda-o sair e leva-o para o interior do Posto. Outro paramilitar vasculha as bagagens, escancaradas pelas portas levantadas até aos vidros, chama um cão que as fareja ansioso, dá-lhe um pedaço de qualquer coisa que parece um biscoito (deve ser marca Pavlov...), até se postar, de traseiro no chão, ao lado do amo. O jovem dos piercings vem buscar a sua maleta, diz que fica preso por falta de documentação legal e despede-se. «Espera aí, pá! Precisas de dinheiro?», pergunta-lhe o chofer; diz que não com um sorriso agradecido e triste. O autocarro apronta-se para a desinfecção repleto de desabafos: «E logo estes espanhóis que não perdoam nada!», «Porra! O gajo, se calhar, nem carta de sejour tinha!», «Também vendem bilhetes sem perguntarem por papel nenhum, só querem é despachar carne!», «Já vai andar de bolandas, outra vez recambiado! Ele vinha de Nice não era? Ah!, Marselha, coitado do moço...» À esquerda das colunatas em imitação romana, uma equipa de fatos espaciais sulfata os pneus que passam num tapete esponjoso anti-febre aftosa. Arranca de vez, limpo do risco da peste, mas sujo pelo pecado da severidade policial.

- Não era a hora dele – sentenciou a senhora Gracinda que, no passar do incidente, só dizia: coitadinho do rapaz...

Atravessa-se o chamado País Basco - geografia nacionalista a que algum Sul Francês não escapa, de toponímia arrevesada, descarnada do castelhano, mesmo quando este emparceira no nome – a altas horas, num desconsolo de curvas eriçadas em declives que a noite ilude.

A velhinha já não vai comigo. O sono descomprimiu-lhe o corpo e afastou-a para longe. O seu ressonar sacode as abas do lenço que lhe envolve a cabeça. Num repentino, mexe-se a procurar posição, descai ligeiramente para a minha esquerda, sinto-lhe os ossos decenários, o cheiro a aldeia, a campo, a serra, a giestas, a suor. “Deixa-te ir, Mulher, descansa o teu corpo no meu como eu gostaria que amanhã mo fizessem, comungo do teu sacrifício, do teu amor pelos que geraste, da pena por um vazio, por uma falta que nenhum dinheiro paga, que nenhuma conversa faz esquecer, nenhum sorriso disfarça. Deixa-te ir...” .

Desfilam as luzes deste Euskadi de ódio e de morte, Vitória, Navarra, S. Sebastian (Donastia), Bilbau, indicativos de conflito nos cruzamentos das estradas, dores de cabeça madrilenas. O dormir da senhora Gracinda contagia-me, abandono-me à indolência, ponho a almofada junto à janela, despego-me do corpo envelhecido, tiro os óculos, meto-os no bolso da camisa. Ela, sem noção da circunstância, endireita-se e espreme-me. Amoldo a cabeça ao travesseiro improvisado e deixo-me ir por uma planície sem fim.

Acordo com os contornos da terra ainda indefinidos numa tela naife. Apetece-me desenferrujar as pernas no corredor do autocarro que, ronceiro, como um barco de leme automático, avança num contraído desespero de chegar. A velhinha - mais velhinha do que os anos porque a estes somava dores que os aumentava - continuava a ventar o lenço. Lentamente, vão-se declarando as formas: já se distinguem os fios eléctricos, as casas humedecidas e emudecidas na manhã de domingo, as sinalizações quilométricas, as medas de trigo, os regos das semeaduras, as saliências dos morros, os rostos dos camionistas ultrapassados que parecem transportar carradas de paciência, as pequenas barragens com a água das chuvas defendida por plásticos. O sol, no risco do horizonte, força as nuvens que não o deixam romper a bolha de água. O dia, assim, apresenta-se embezerrado, sem chama, numa traição a quem o deseja largo e elucidativo.

Pára-se em Nava del Rei para um pequeno almoço quente. A minha companheira, à paragem da camioneta, deu um salto, contemplou-me surpresa, desenlaçou o lenço, voltou a compô-lo, sorri-lhe e aproveitei para esticar-me um pouco.

- Isso é que foi dormir...

- Não o incomodei pois não?

- Nada...nada... Também dormi até agora...Vamos tomar qualquer coisa...

- Quero é mexer as pernas... Parece que tenho cimento...

Os WC e os balcões enchem-se; um jovem barbudo, de boina basca, merca um porta-chaves com o ícone de Che Guevara; a senhora Gracinda tira, do saco do Carrefour, um migalho de pão, convido-a para um pan com mantequilla, mas é o aceitas; levam-se leques e caramelos para oferecer e gasta-se o resto do tempo - enquanto os motoristas não vêm da sala da comissão - a andar para cá e para lá, desentorpecendo as pernas. O chão parece coberto de sincelo, agasalhado por um manto de vapor; cheira a terra e a erva molhadas como se o dia se levantasse de um sono prolongado.

A reentrada no transporte faz-se em algazarra, bexigas aliviadas e barrigas satisfeitas, alguns deixam-se ir de pé com as mãos nas cruzes.

- Maria, antes do meio-dia estamos na Guarda! - atira, alegre, um homem.

- Esqueceste-te de dizer se Deus quizer!- objecta a consorte, enquanto ele engole em seco e faz-que-sim com a cabeça.

O sol não abre e nem o nome de Portugal, escrito junto dos campos de Salamanca onde o gado se espalha, realiza esse desejo.

Em Vilar Formoso, a velhinha, aflita por saber qual era o novo autocarro que a levaria até Celorico, estende-me os braços na despedida. Só então reparo que nas suas faces de rugas de muito passado cintilam uns olhos de muito futuro: têm o brilho da lua cheia numa noite de Esperança...

Tomo a ligação para o Porto e repito, agora ao contrário, a paisagem beirã do IP5. O novo condutor mete uma cassete a cheirar o bacalhau. Para distrair o meu encruamento espalho os olhos pelos montes que se me afiguram ainda mais penalizados que o natural.

O sol não vem.

Não faz mal, ele está do outro lado das montanhas, em terras de França, sinto-o nos meus ombros, nos meus olhos, e recolho-o só para mim, aqui dentro, onde se guarda a saudade de um amor incomparável.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustrativa acima é recolhida da internet livre. Clique na imagem para ampliar. Edição de J. L. Gabão.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.