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1/05/11

GERAÇÂO ESQUECIDA - II

África das manhãs morenas,
Dos risos nas areias molhadas,
Das noites suadas e serenas,
Fora dos tiros das emboscadas.

Beijei a tua boca em Porto Amélia,
Acariciei os teus seios em Quelimane,
Fiz amor contigo em Lourenço Marques
E chorei por quem ficava,
Do outro lado do mar,
A contar os dias da chegada.

África tão longe
E tão longa,
Corpos ao léu
Em camas de céu,
Amor às claras,
Fremente de vida,
Carne despida
De falsos pudores.

África das anharas,
Dos caminhos da coragem,
Das horas a sonhar
O regresso da viagem;
Negra risonha ao amanhecer,
Mulata dolente ao anoitecer,
Branca namorada de um Maio a nascer.
Terra de fogo, de sangue e de gritos,
Inúteis mortos e feridos,
O sol a ver
Um homem a morrer:

Adeus até ao meu regresso,
Sou este que me despeço.
Fui corpo e, agora, sou alma.
Uma bala me levou.
Finalmente tenho a calma
Que a guerra me roubou.

Recados de condenados,
Bocas espumas de sangue,
Corpos destroçados
Que viveram um instante.
Nacala, Nampula, Molocué, Quelimane,
Namacurra, Mocuba, Chire, Pebane,
Porto Amélia, Mocímboa, Beira,
Mueda, lá em cima, e Macomia perto.
Madrugadas sem eira nem beira,
Olhos de sono, mas sempre desperto.

Que é feito das cruzes enegrecidas,
Símbolos de uma geração sacrificada?
Estão todas desfeitas, esquecidas
A bem da Nação libertada?

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

12/30/10

A SENHORA DAS DORES

Caminho sem relógio, procurando as sombras, turvado pela mornaça e um cheiro de flora que me lembra o caril. As vivendas, com avisos de empresas de segurança e grades nas janelas, têm as persianas semi-cerradas por onde escapa o ressonar das sestas. Os carros, de marcas alemãs e suecas de não sei quantos turbos, também dormem embrulhados em lonas escurecidas de pó, pintalgadas por cagadelas de pássaros e folhas ressequidas. Vê-se que é uma zona chique onde o dinheiro não tem ideologia, de tanto nem se conta, ou, então, de pouco se disfarça em muito. Ao lado, na Estrada da Mata que leva a Vila Real de Santo António, o parque de campismo diz-me que talvez haja quem viva com mais gosto, sem medo de assaltos, a cheirar o restolho, os pinheiros bravos e as sardinhas assadas. Percorro a longa avenida Vasco da Gama, de esplanadas vazias, onde destila um ou outro loiro ariano a atestar o depósito com enormes canecas de cerveja que só de olhar metem impressão. No vasto areal continuam os fanáticos do bronze grudados às areias a derreterem os cremes e a celulite. O chão escalda como piche, desvio-me para a zona pedonal, evito o largo das carroças à espera do fim do dia para os passeios turísticos, entoando chocalhos e empestando o ar com as necessidades cavalares. Um grupo de peruanos (ou bolivianos?) montam, já, a aparelhagem para o espectáculo nocturno de música andina; algumas bocas lambuzam-se de gelados num ritual de lábios e de línguas que envergonha os atrevidos quanto mais os pudicos. Mostruários de jornais e revistas do jet-set, raquetes e bolas, camisetas berrantes e óculos de sol, fios dentais e calções de banho, isqueiros e pilhas, cremes e preservativos, colchões de plástico e remos do mesmo, cadeirinhas e guarda-sóis, toalhas e almofadas, chinelos para meter entre o polegar e o indicador e sandálias para as unhas pintadas, bóias e flutuadores infantis - tudo o que cabe num armazém de chinas. Os restaurantes, pegados uns aos outros, atravancados de preçários, esplanadas de cadeiras e reclamos de visas e american express, não dão uma folga para as pessoas passarem.

Deixo o Monte Gordo cosmopolita, dos prédios altos como pinocos, ilhas verticais de camas-sofás, e meto-me pelas ruelas estreitas da povoação antiga, pertença da genitura piscatória, com casinhas renteadas aos passeios. É a zona dos cafés-tipo-tasca ao custo do Norte, dos pratinhos de tremoços e amendoins a acompanhar imperiais, do frango de churrasco, do bezugo nas brasas, dos idosos desfiando o tempo em cadeiras de lona às riscas, das crianças gincanando por entre os carros estacionados, das mulheres de crepes vitalícias.

Entro na pequenina Igreja semelhante a um adereço de presépio, de suave frescura, simples como tudo o que, em nome de Deus, devia ser. Custa-me a adaptar os olhos à penumbra. Vejo uma Senhora de Fátima num nicho à direita do Altar. Todas as Senhoras de Fátima são assim: rosto plácido, olhar terno, boca sem ofensas, mãos delicadas segurando um terço com as contas dos pecados do mundo. À esquerda, um Senhor dos Passos, transportando uma cruz, tem um rosto de sofrimento mas os olhos sem rancor. Um arranjo floral, mistura de gladíolos vermelhos e gerberas amarelas, está aos pés de uma Imagem ornamentada com um cónico manto roxo até aos pés. Aproximo-me para melhor A ver e paro, surpreso, com a presença de uma velhinha, cabelos todos branquinhos, vestido negro, um ciciar de Padre Nossos tão leve que nem a notara, sentada a um canto junto à porta da sacristia. Fiquei especado, sem me mexer, transportado aos vultos da minha infância. Esboçou um sorriso e disse-me: «É a Senhora das Dores... É linda não é?...» Sorri-lhe, também, agradecido, e respondi com os olhos afogueados: «É linda como a Senhora que me fez lembrar a minha Avó!...» A velhinha, então, num farfalho de saias, levantou-se, abriu-me os braços, beijou-me, e acrescentou: «Deus Nosso Senhor o acompanhe!»

Quando abri a porta, à saída, por entre o ranger das dobradiças, ouvi (ou foi um eco da memória?):  «Deus Nosso Senhor te acompanhe, Meu Filho!» Era a voz da minha Avó que vinha das profundezas da terra, ou das alturas do céu, e se manifestava à rutilância do sol.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

11/30/10

A MÃE DE TODOS

Alice deixou um dia a aldeia entre as montanhas durienses para servir na casa de um Senhor Doutor do Porto, levando consigo a ilusão de um sonho. Ainda foi à terra, duas ou três vezes, mostrar a roupa da cidade e os brincos que a patroa lhe oferecera. Hoje, porém, talvez já nem saiba como se toma o comboio. Enterrada a Mãe, que o Pai nem conhecera, vendida a leirita de uns almudes, fez um risco no calendário da sua recordação. Gastava as tardes domingueiras no jardim diante da casa onde fazia a comida e as camas, aspirava a alcatifa e sacudia as carpetes, limpava as pratas e entretinha adolescentes rabugentos, até achar o companheiro da sua sina. Afeiçoou-se por um mecânico e foi viver para uma casita mal alevantada dos subúrbios.

Começou cedo a criação; enquanto as marés sobem e descem, viu-se com uma ranchada de filhos. Dava umas horas como mulher-a-dias com a sogra na guarda da canalha. Passava muito tempo no hospital, nas consultas de pediatria, e dava-se, por isso, com enfermeiras e médicos com o à vontade consentido de tantas idas e vindas numa preocupação aflitiva por quem levava ao colo e pelos que deixava sob o olhar da segunda Mãe. Já nem precisava de papel ou de espera, todos lhe toleravam a prioridade, que a uma Mãe procriadora não é só o respeito a mandar, mas, também, uma admiração condoída. Vinha do fim da cidade onde a auto-estrada se estende numa fita preta que se perde, ao longe, com os carros disparados a afundarem-se nas lombas.

O rosto de Alice mostrava canseira, envelhecido antes da razão; as pregas nos olhos e nos cantos da boca traduziam embaraços e noites mal dormidas. Quase que não tinha peitos, chupados pelas bocas da inocência sem culpa de terem nascido a eito. Contudo, por cima desse espelho de privações, um sorriso bonito, muito bonito, tornava-a simpática e afável; era um daqueles sorrisos de quem logo se gosta por não enfatizar as desgraças. Acarinhava os filhos sem pieguices ou obsessões. Sempre «lavadinhos e arranjadinhos», não se escusava de, em pleno átrio, desnudar um seio mirrado para o meter na boca de um mais apressado pela hora do sustento.

Joaquim sujava-se na oficina e em biscates de fim-de-semana para sustentar a prole. Não era gastador nem seroava nos Cafés. Viciado, só no tabaco e no futebol, mas, até nestes, se moderava: fumava Definitivos e o seu clube militava numa distrital sem nome nos jornais de segunda feira. Ia sempre como um fuso para casa, sem o fastio dos casamentos arrastados. Quando a mulher se demorava, esperava sempre que a porta se abrisse. Os vizinhos da ilha não lhe ouviam um ralho ou uma descompostura e, como «casal que não se insulta não se ama», julgavam que apenas se toleravam.

Um dia, porém, as horas passavam e a Alice não chegava. Sabia-a numa consulta com «o mais novinho, de seis mesinhos». Combinou com a Mãe a continuação da vigília e meteu-se a caminho. Encontrou a Mulher na paragem do autocarro, diante do hospital, com dois bebés, um em cada braço.

- Então o autocarro não vem, é?... Estás à espera do 99 como o Samora?!... – troçou.

- Quantos já passaram!... – retorquiu a Alice.

- Espera – espantou-se -, de quem é esse bebé?!

- Foi uma senhora que me encontrou à saída e pediu-me para lhe ficar com ele.

Disse que era só tempo de ir ali, não sei onde, fazer umas compras, já lá vão mais de duas horas e não aparece. Estou preocupada...

- Oh! Mulher... Ela não volta mais! Não vês que o abandonou?!... Deixa lá!... Quem cria nove também cria dez! Vamos embora!

E lá foram, cada um com o seu filho, no autocarro apinhado, a caminho da casita mal erguida nos confins da cidade para continuarem a servir o futuro do mundo.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

11/22/10

PRECE

Volta Jesus Cristo!

Volta a este mundo de sacripantas,
De escárnio e mal dizer.
Volta a esta terra de vaidade,
De desamor e egoísmo,
Fria e vazia como um poço abandonado,
Repleta de Sanhedrins da corrupção
E de Zerahs gananciosos.

Volta Jesus Cristo!

Volta à medula das nossas misérias
Para curares as chagas da inveja,
Perdoar com a serenidade de quem ama,
Limpar todas as Jerusaléns do nosso tempo.
Volta depressa às nossas consciências,
Aquecer a indiferença que nos rói,
Gritar uma esperança para amanhã
- Para sempre -
Não morrermos sozinhos e tristes.

Volta Jesus Cristo!

Vem dar força aos Nicodemus sinceros,
Encorajar os Josés de Arimateia verdadeiros,
Julgar todos os Tibérios modernos
Desprezar todos os Pilatos covardes,
Apontar os Barrabás perdidos.

Volta Meu Senhor e Meu Profeta!

Vamos falar aos que morrem de ambição,
Pregar a doutrina que nos salvará,
Escorraçar os que comem na opulência,
Agasalhar as crianças que tremem de frio,
Sem carinho, abandonadas como destroços.

Volta Jesus Cristo!

Para devolveres às pessoas o riso da vida,
Amar os que nada têm,
Ensinar de novo o que todos esqueceram.
Volta para me enxugares os rios da tristeza,
Nas angústias dos fins de tarde
E me abraçares nas horas de desassossego.

Volta Mestre!

Vamos berrar contra a alegria falsa,
Contra o sorriso falso,
Contra a amizade falsa,
Contra os irmãos falsos,
Contra os políticos falsos,
Contra toda a falsidade.
Quero ir contigo entoar a nossa Fé,
Derrubar os déspotas com a nossa Cruz,
Correr do Poder os que mandam sem saber.

Volta Jesus Cristo!

Eu quero abraçar-Te!

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

11/18/10

O QUARTO ALUGADO - IV

Enquanto a Mãe mudava a água da floreira para lhe colocar novos gladíolos e margaridas, encostou-se às grades que desenhavam o jazigo de granito velho por muitos anos à chuva, ao vento, ao sol, à lua e à morte. Era sempre assim: trazia à lembrança a fotografia do Pai, que tinha na mesinha de cabeceira, e imaginava-o deitado com as mãos cruzadas no peito, indefeso e injustiçado. Mas nunca chorava. Nem uma lágrima. Olhava à volta, e todo aquele silêncio de cruzes e lápides era uma fatalidade repartida. Não tinha referências do Pai, nem um minuto de vida lhe conhecera, era um filho póstumo. Benzeu-se, deixou a Mãe recolher-se, e divagou por entres as campas na procura de caras conhecidas. Estavam lá algumas que lhe despertavam a memória, gestos e frases que lhes ouvira nos seus tempos de menino acabado de nascer. Aquele lugar era o reverso (ou o anverso?) da alegria, um aviso de efemeridade, a segunda certeza de que se existiu, um silêncio-resposta do Além, de qualquer ponto longínquo.

- Vamos – pediu-lhe a Mãe numa voz sumida.

Regressaram a casa mudos, como se tivessem recebido o chamamento de uma Razão Implacável. Debaixo das janelas, o Álvaro, já meio entornado, apregoava um quilo de batatas no leilão de fundos para a festa da Senhora do Monte. O Artur, sem alegria na voz, telefonou a comunicar a chegada. A noite daquele domingo de Páscoa desceu como um lençol a amortalhar o mundo.

Dois ou três dias antes do fim das férias perdia o apetite, levantava-se tarde numa desforra antecipada dos dias em que teria de madrugar, vagueava pelos socalcos que cercavam a casa, não lhe apetecia falar e tornava-se nervoso. Até a Mãe, de rosto tenso, regressava a uma sisudez de viúva. Incomodava-o a solidão em que ela ficaria com a velha criada e as suas vestes negras a varrerem o sujo dos dias, as contas das folhas semanais dos trabalhadores, o peso duma herança e os sacrifícios para a manter, as idas à Capela e ao cemitério. A Aninhas - que já estava lá em casa quando ele nasceu, lhe limpara o rabo e lavara muitas fraldas –, acabada a limpeza da louça, tirava o lenço amarrotado do bolso do avental, assoava-se ou fungava, limpava os olhos, dava um «Ai...», e, antes de se ir deitar, dizia: «Menina, não vá esquecer o baú do Menino...» Eram os mantimentos para os primeiros dias em que a barriga lhe pedia um suplemento: bolinhos de bacalhau, presunto, salpicão, queijo, uma malga de marmelada, broa, chouriço, frango e carne assada embrulhados em papel prateado, um peso quase igual à mala da roupa, e que ele guardava como um Serra da Estrela, preocupado em não perder a chave do aloquete. Fazia a viagem no dia do início das aulas, que este era tempo perdido com apresentações, alguns professores, até, nem aparecendo. Nunca a Mãe se aborrecia com isso, porque, bem lá no fundo, tomara ela que ele ficasse.

Se o almoço daquele derradeiro domingo de férias teve a benção de um sol primaveril que agasalhava a sala com um conforto que mais lhe tolhia a vontade de partir, o jantar foi o velório de uma alegria morta. A Aninhas – sentava-se sempre à sua direita - acariciava-lhe a mão e perguntava-lhe se queria mais alguma coisa para levar. A Mãe não levantava os olhos do prato e comia como se engolisse um remédio. Era tal o entupimento que quase se arrependia de já não ir no comboio, mesmo de pé, espremido entre a intimidante algazarra da magalada e o cheiro a mijo da retrete que não tinha sossego com o corrupio das bexigas. Os toques dos talheres salientavam o silêncio; os cães ladravam aos passos trocados das bebedeiras, correndo ao fundo do quintal para os reencontrar; o tempo, cadenciado pelo tiquetaque do relógio da sala, parecia que passava mais depressa.

- Quando é que serão os teus exames? – perguntou a Mãe, desperta da letargia.

- Lá para meados de Junho – respondeu, aliviado por lhe quebrar os pensamentos.

- Vai correr tudo bem. Eu vou rezar a Nossa Senhora de Fátima – compôs a Aninhas com a sua velha doçura.

- Só tenho medo é do Alemão – aproveitou.

- Pensas fazer algumas orais? – fitando-o inquiridora.

- Tomara eu não precisar... – murmurou.

- Lá estarei, mas não vou ter coragem de assistir.

- Mas tenho eu... – atreveu-se Aninhas.

- Mulher... Tenha juízo... Quem ficava aqui? Fechava-se a casa, era? ... Cada uma...

- Aproveitava e ia ver a minha irmã que já não vejo há anos... - insistiu a velha criada.

- Nas férias grandes vamos lá os dois...- atenuou João, diante dos olhos aguados da Aninhas que lhe agarrou mais a mão.

- Levante a mesa! – ordenou, friamente, D. Carlota.

João conhecia aquele modo: quando dominada por uma preocupação falava com uma secura tal que até ofendia as pessoas. Era, afinal, o jeito de se defender da desconsolação que a ameaçava; o resultado de muitos anos a engolir emoções. Sentindo-se à beira de quebrar, ganhava uma dureza que nem se sabia se era uma genuinidade de carácter, um fingimento de auto-defesa ou o treino de muitas lutas interiores. A sua rispidez era uma confissão, não assumida, de fragilidade; só não sabia que a Mãe, à noite, na escuridão do quarto, depois de os olhos cansarem na leitura, chorava as lágrimas que escondia de dia. A sua mesinha de cabeceira estava repleta de livros – sobretudo biografias – e lia muitos ao mesmo tempo. «Se não lesse, já estava doida! Mas livros que não sejam tristes. Para tristeza já chega a vida!», dizia-lhe a cada passo.

Quando saíram da mesa, enquanto a Mãe lavava os dentes e a Aninhas a loiça, João veio ao terraço fumar um cigarro, sempre a olhar para não ser visto. Ainda não se atrevera a pedir-lhe autorização para fumar e desconfiava se algum dia o faria. Ela cheirava-lhe o fumo, mas fingia que não sabia; e nesse jogo de esconde se ficavam. Sentou-se na sala, em frente do televisor, nem se rindo com o Homem Invisível a dar murros a torto e a direito.

- Vê se estudas, meu filho, ouviste?

- Não se preocupe, minha Mãe.

Levantou-se, deu-lhe um beijo - sentiu-lhe os lábios trementes -, e subiu as escadas que davam para o seu quarto.

- Não te esqueças de fechar a televisão quanto te fores deitar - disse-lhe do cimo. – Dorme bem. João, pouco depois, desligou a televisão, foi à cozinha despedir-se da Aninhas, que já pendurava o avental, e meteu-se no quarto. Adormeceu com os cães a ladrar aos fantasmas da noite.

Mal transpôs os portões, perguntou pelo Artur. Também faltara no primeiro dia. Sentou-se na sua carteira e estranhou que a dele tivesse ficado vazia. Aguardou-o toda a manhã. Esteve quase, no intervalo do almoço, a meter-se a caminho da casa dele, mas, talvez, não lhe sobrasse tempo para a primeira aula da tarde. Não podia arriscar mais faltas, ainda por cima no terceiro período. Pensou em telefonar, mas enojava-o ter que pedir a chave do telefone ao Francisco, muito menos à Alzira. Era uma das coisas que o arreliava, uma desconfiança desprezível que suportava com pena deles. Quando a campainha do último tempo tocou, apressou-se no regresso ao quarto, acabou de arrumar umas roupas que deixara em cima da cama, fez que jantou, foi ao baú atirar-se à carne assada, antes que ficasse seca, e saiu. Subiu Santa Catarina e tomou um café aldrabado numa confeitaria de esquina. Chegado ao Marquês, virou para Latino Coelho com tempo de ouvir a algazarra das raparigas do Colégio da Paz. O andar do Artur ficava no fundo da rua, por cima de uma garagem. Admirou-se por ser a D. Dulce a abrir-lhe a porta.

- Entra, João! Entra! Sejas bem aparecido! – saudou-o, enquanto lhe dava um abraço que nunca mais acabava.

- O que se passa, D. Dulce? – perguntou, as pernas a tremelicar, quando lhe viu os olhos alagados. – É alguma coisa com o Artur?

- É - acenando, desalentadamente, que sim, limpando os óculos ao lenço. – Senta-te, senta-te.

- Mas, D. Dulce, por favor...

- Pronto, eu digo-te: o Artur foi para Paris! Já sabias?...

- EU?!

- Queres um café ou um chá? Eu vou beber um chá.

- Não quero nada. Está bem, um café, então, por favor.

Aturdido, João relembrou o fastio de Artur naqueles dias de férias, o seu desencanto aldeão, a despedida exagerada e triste, o seu telefonema de chegada em tom de adeus. Não despercebera esses pormenores, nunca, porém, os ligara a essa antiga fantasia.

- Queres com muito ou pouco açúcar? – perguntou-lhe, da cozinha, D. Dulce.

- Uma colher, por favor – respondeu. – Mas - prosseguiu João, enquanto ela punha o tabuleiro na mesinha de centro -, foi assim sem mais nem menos? Não deu razões nenhumas?

- Sabes que ele tinha, há muito tempo, aquela ideia encaixada. - Pousou a chávena na mesinha e, entrelaçando as mãos sobre o peito, recostou-se no sofá. – Que me dizes?...

- Nunca pensei que fosse a sério.

- Ele não te falava nos problemas cá de casa? Enfiou que eu o abandonara só porque conversava com aquele senhor que tu chegaste a ver...

- ...

- Julgava que eu ia casar ou tinha alguma coisa com ele. Quando ele veio de férias de tua casa, houve aqui uma discussão enorme. Ele trouxe-lhe uma lembrança de Cascais, um pisa papéis, mas, mal o recebeu, deitou-o ao chão e berrou que nunca quereria nada dele. Malcriado para aqui, malcriado para ali, olha, se não me meto no meio, batiam-se à minha frente. Quando eu estava no quarto de banho, ouço um restolho medonho e verifiquei que ele tinha batido no Artur. Não lhe perdoei, nem perdoo, abri-lhe a porta e, aqui, não entra mais.

- ...

- Ao outro dia, quando cheguei da mercearia, vejo que ele tinha uma mala à porta. - «Vou para França, não fico mais aqui!» - Assim, sem mais nem menos. Podes imaginar o que lhe pedi, o que me enervei, o que chorei. - «Já te disse, Mãe, podes ficar com ele, eu fico comigo!» - disse-me em lágrimas.

- Mas...

- Ele pensou que fosse tudo fingido. Convenceu-se que tinha feito aquilo só para lhe agradar, fazer de conta.

- Não lhe falou que, antes que o chamassem para a tropa, ele estaria longe?

- Mas eu cansei-me a repetir-lhe que, se fosse preciso, tenho conhecimentos que o livrariam de ir. Até falei em ti, que, também, te poderia dar uma ajuda.

- Obrigado D. Dulce, oxalá não precise.

- Conheço um General que não recusa um pedido meu. Não, João, ele já tinha aquela fisgada. Fez-se, durante alguns minutos, um silêncio embaraçoso. João olhava a televisão, sem som, transmitindo imagens de soldados na selva, um helicóptero a pousar, levantando poeira, e, depois, a erguer-se com uma maca colada à fuselagem.

- Posso ir ao quarto de banho? – pediu.

- Está à tua vontade – assentou D. Dulce, sem despegar os olhos do écran.

João parou, por instantes, diante do quarto de Artur. Tinha o arrumo das coisas não usadas: a colcha de flores vermelhas parecia a mortalha de um gavetão de cemitério e os livros, na estante, gritos encolhidos à espera de uma oportunidade para se soltarem. Veio-lhe, de repente, uma sensação de abandono, um sentimento de excluído, um frio (ou um calor?) de cobardia. Fechado na casa de banho, enquanto lavava as mãos, reparou que, na prateleira, por baixo do espelho, nada ficara dele, nem, sequer, a pedra pomos com que costumava cicatrizar o sangue das espinhas do pescoço, depois de fazer a barba. Ele fora-se sem lhe dizer nada, sem uma tentativa de incitamento para o seguir, uma partilha de segredo, “grande sacana, não confiou em mim!”.

- D. Dulce, não sabe se o Artur foi sozinho ou com alguém? Quando é que ele foi, afinal? – sentando-se, novamente, no sofá.

- Cheguei a ouvir um telefonema para um tipo qualquer. Acho que relacionado com essa coisa da Aliance Francaise. Disse que me escreveria mal chegasse. Sinceramente, não sei o que aquele rapaz vai fazer...

- E quando foi? – insistiu João.

- Na sexta-feira passada.

- A Senhora pode não acreditar, mas ele não me disse nada, nem uma palavra, acredite.

- Claro que acredito. Diz-me uma coisa – virando-se para ele e fitando-o seriamente -, tu concordas com o que ele fez? Mas sê-me franco!

Ficou sem saber o que responder, encolheu os ombros no estilo «que hei-de eu dizer?!...», recostou-se e olhou para o tecto. Era a única pergunta que não esperava.

- Deixa-me fumar um cigarro? – atreveu-se já a remexer no maço de Porto.

- Aquele meu filho...- chegando-lhe o cinzeiro amarelado de nicotina. - Não me respondeste...

- Não, D. Dulce, agora não ia.

- ...

- Primeiro acabava o Liceu. Como é que ele vai fazer o sétimo ano? Ainda há os adiamentos que se podem pedir na Faculdade, não é?

- Eu disse-lhe o mesmo: «Vais deixar o Liceu por três meses, nem chega! É uma estupidez!» Sabes o que me respondeu? «A libertação não tem horas!» Aquele meu filho... Quando souberem que ele foi lá para fora como vai ser? Até tenho vergonha de lhe ir anular a inscrição! Que me vão dizer eles?! E o que lhes digo eu?!

Mesmo com a janela meia aberta, estava abafado. Ou era ele que abafava. Teve vontade de se ir embora, confundir-se na neblina nocturna, misturar-se com as pessoas e o barulho dos carros, caminhar sem ter ninguém com quem falar ou, simplesmente, deitar-se.

- D. Dulce, quando o Artur lhe escrever, diga-me, se fizer o favor. Ele tinha aí o telefone da casa onde estou, de qualquer modo vou-lho deixar.

- Como me passou!... Quero o telefone da tua Mãe para lhe agradecer o ter aturado o Artur...

- Não faça isso, por amor de Deus... Até foi bom, não a aborreci tanto...

- Peço-te... Escuso de andar por aí atrás dos papeis dele ou telefonar para as Informações. Além do mais, quero convidá-la para, se alguma vez vier ao Porto, ficar aqui. É da maneira que falamos. Por favor, João...

Deu-lhe, também, o telefone da aldeia, levantou-se, vestiu o casaco, voltou a sentir a ausência do Amigo, beijou D. Dulce que o puxou para si num novo abraço de emoção, prometeu – carregando no botão do elevador - vir mais vezes visitá-la e desceu. Estava quase a chegar ao rés-do-chão, ouviu-a, no cimo, a gritar pelo seu nome. Deixou parar aquele e voltou a subir.

- Desculpa – estendendo-lhe um envelope -, o Artur deixou-me esta carta para ti. Com a conversa já me esquecia de ta dar. Dá cá mais um beijo e não me digas nada do que ele te diz aí, está bem?

- Sim D. Dulce – enfiando o envelope no bolso, com o peito a latejar. Afinal o grande sacana não se esquecera dele...

O choque com a humidade da noite arrepiou-o Estava cansado, parecia que levara um enxerto de porrada, tinha fome. Pensou ir pela Constituição, virar em S. Brás, voltar por João Pedro Ribeiro e descer Santa Catarina. Contudo, contornou a praça, passou pelo Asilo do Terço, sorriu aos chistes das prostitutas que, encostadas às portas das pensões ou sob a luz dos candeeiros, de saias apertadas e traseiros salientes, o convidavam para se estrearem, entrou no Coutinho e pediu meia torrada e meia de leite. Da mesa, encostada à montra, podia ver os carros a pararem, os condutores descerem os vidros, combinarem o preço, abrirem as portas e arrancarem. Outros, vinham, pé ante pé, chapéus sobre os olhos, em jeito de Edie Constantine, e entravam nas hospedarias de lâmpadas mortiças depois de lançarem um olhar esquivo às imediações. Enquanto mastigava a derradeira fatia – era sempre a do meio que melhor lhe sabia -, pensou se abriria já a carta ou a leria, calmamente, no quarto. Não tinha pressa, como se desejasse prolongar a expectativa, aquele prazer hesitante que se saboreia até ao limite da curiosidade. Optou pela segunda hipótese. Foi descendo, sem pressa. Deu-lhe para olhar o relógio. Já passava da meia noite. Devia ter estado, seguramente, mais de duas horas a falar com a Mãe do Artur. Condoera-se, mas pensou que, se fosse a sua, não o deixaria partir, nem que se estendesse no seu caminho. Ser-lhe-ia difícil uma atitude igual. Sonhava partir, um dia, isso sonhava, para onde se pudesse alargar, conhecer outros pensares, visitar os ícones da Literatura, aquelas referências históricas que a leitura lhe avivava. Mas fálo-ia sem ser espicaçado. Abandonar, assim, a Mãe, seria um remorso de que nunca se limparia. “Dá-me a impressão que até o Diabo me fazia uma espera... Que raio de ideia a deste gajo...E numa altura destas, com o Liceu na recta final... Teria sido aliciado?... Hum... Se fosse, mesmo que não pudesse, dizia-mo “, pensava João, Santa Catarina abaixo, colado aos prédios. Na esquina do Automóvel Clube de Portugal, cheia de carros de luxo, meia dúzia de caras ricas conversavam por entre gargalhadas que a madrugada estendia.

Quando abriu a porta da casa, ouviu a tosse do velho. Devia ser a dizer-lhe que, por causa dele, acordara. “Grande cabrão, se fosses mas é ver com quem é que a puta da tua mulher te anda a pôr os cornos!“, mastigou. Pôs a almofada atrás da cabeça e leu a carta.

""João, meu Amigo:

Tenho a certeza de que, quando deres pela minha falta às aulas, virás falar com a minha Mãe. Pedir-lhe-ei, antes de partir, para te entregar esta carta. Não me despeço pessoalmente porque sei que não concordas com a minha decisão. Poupamo-nos os dois: tu de falares, eu de te ouvir... Aconteça o que acontecer serás sempre o meu melhor Amigo. Escrever-te-ei todas as vezes que puder e vou ter muitas saudades tuas. Acredita.

Parto com o Monteiro, aquele tipo de que te falei, a quem a puta da Pide matou o Pai, naquela maldita casa da Rua do Heroísmo, sabes?, e mais um tipo que ele me apresentou. Em San Sebastian há quem nos oriente até Paris.

Não tenho culpa de ter nascido aqui, neste rectângulo dominado por um jardineiro odioso que corta os rebentos e só deixa medrar as ervas. Não foi (minha Mãe vai, naturalmente, falar-te disso) a zanga com o seu querido (apesar de o ter corrido, vai voltar a chamá-lo, vais ver) que me impeliu. A marca vai ficar com ele e não comigo. Decidi-me em tua casa, nos dias que lá passei. O fatalismo e a soturnidade daquelas pessoas é ultrajante e mortal. Antes de enterrados já estão mortos. Vivemos numa terra em que o sol nasce sem uma esperança – uma mínima esperança, João - de um dia sermos diferentes e diversos nas opiniões, nos risos e nas lágrimas; livres, sem bufos nem vigias, com a certeza de que é melhor perdermo-nos na liberdade do que enfileirarmos na escravatura. Disseste-me, um dia – se calhar já nem te lembras -, que o futuro pertence àqueles que içam as velas. Lá vou eu, então, manobrando-as ao sabor dos ventos e das marés. Não sei se me afogarei, só sei que o prefiro a continuar à tona deste lago de podridão. Pode-te parecer precipitado sair, assim, com os exames à porta, mas há momentos em que tem de se arriscar tudo, mesmo à proximidade de um fim, hipoteticamente feliz que seja. Chama-me doido varrido, o que quiseres... Apesar desta Pátria não ter uma centelha de sobressalto, ser uma permanente escuridão, os seus olhos lampadários fúnebres e as suas bocas acentos de amargura, não sei se vou ficar muito ou pouco tempo sem a lembrar. Pode ser que isto mude e já não valha a pena estar longe; pode ser que a guerra do Ultramar acabe e já não tenhamos os pescoços no cadafalso. Mas não é apenas a recusa da guerra, a dúvida de morrer imolado na teimosia de um ditador de falsete que me leva a partir. Mais do que isso: é uma desilusão de sociedade encarcerada e, por isso, desconfiada, servil e bronca, que aceita tudo como se a vida fosse uma desgraça fatal. Não quero ser como esta gente e, antes que se me apegue o mesmo mal, vou aprender a falar sem medo. Afinal não é o Mundo só um e as fronteiras a sua aberração?

Oxalá entres na Faculdade e a guerra acabe antes de te chamarem! Desejo-te todas as felicidades!

Dá cá um abraço! Faz força comigo!
Artur""

João, durante longos minutos, ficou de olhos especados na parede em frente da cama. Antes de se deitar achou o quarto mais inóspito, velho e gélido qual uma sala de Notário; os livros, em cima da pequena secretária, pareceram-lhe Códigos de leis injustas. Até o sono chegar, imaginou o Amigo aos saltos nos boulevards parisienses.
- Conto de M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

11/17/10

O QUARTO ALUGADO - III

Continuação daqui.
A Senhora do Monte ficava no fim do povo, na garganta de uns socalcos e no meio de um adro definido por um muro circular de pedras sobradas de antigos saibramentos. Ali descansavam as mulheres, pousando as bacias por momentos, depois de barrelarem a roupa nas margens do rio, ou os trabalhadores das vinhas que,
nas idas e vindas das quintas, por lá encurtavam caminho. Era a devoção de D. Carlota, o motivo para exercitar as pernas, mudar a água das flores, reacender pavios, repetir preces. Zeladora por Fé e por gosto, o asseio da pequenina ermida distraía-a da rotina, das amofinações do granjeio das poucas cepas herdadas e das preocupações de um filho único de um casamento relâmpago que nem dera oportunidade para uma zanga. Pelo caminho, saudavam, num cerimonial de velhos costumes, quem encontravam. As mulheres, assim que, pelos postigos, confirmavam os passantes, vinham, com os filhos às pernas, cumprimentar numa afabilidade que só a província tem. Contabilizavam doenças e melhoras, perguntavam pelos estudos do menino e quem era a visita, ofereciam préstimos e desabafavam saudades emigrantes.

- É incrível como nos sítios mais esquisitos se vêem reclames destes – anotou Artur, parando.

- Que reclame? – perguntou João, olhando para todos os lados.

- Ali – respondeu Artur, apontando para a parede de uma casa. - Não vês? - Adubai com Nitrato do Chile, único natural.

- E é bem bom... Como fertilizante não há melhor...– ajuntou D. Carlota.

- Mas isso há em qualquer curva ou canto! É como o Licor Beirão ou a Sandeman... – reinou João.

- E a guerra que isso deu!... – atirou ela.

- Guerra?... – espantaram-se, quase a par.

- Entre o Chile e os países vizinhos... É que antes de ser adubo serviu para fabricar explosivos...Chamavam-lhe o ouro branco...

- As coisas que a minha Mãe sabe...- ironizou João, lançando-lhe um sorriso divertido.

A capelinha tinha o encanto de relíquia e uma simplicidade amparada: dois bancos corridos, um de cada lado; um genuflexório com uma almofada já descarnada; quatro jarras de flores, duas aos lados da Senhora do Monte, que desfrutava o altar, e outras tantas para uma Senhora de Fátima, num suporte à parte, junto ao pequeno janelo lateral, coadouro tímido da luz do dia. Enquanto a Mãe rezava e o amigo se entretinha a estudar um carreiro de formigas, subiu a uma figueira e regalou-se na lonjura dos cerros pintados de sulfato, mudo num êxtase, tamanho o embevecimento. João, nestas alturas, sufragava as suas memórias, algumas suspensas nas paredes da sua casa, emolduradas num bafo de morte antes da hora justa. Sentia-se partido ao meio como se um dique lhe tivesse impedido o curso natural da vida. Não era como o Artur que cortara as raízes, mas, antes, uma dúvida perspectivada, em que teria de escolher entre o chão do vagido inicial e a aventura de um poiso distante. A aldeia natal assemelhava-a a um espelho da sua imagem ferida, num estatuto espartilhado pelas analogias da normalidade dos outros com a sua evolução, em que detestava as fautorias, quais piedades a adoçarem uma imperfeição que lhe tivesse anatemizado o berço. “Esta terra densa, esta leveza de ar, esta abóbada sideral são as minhas referências. Dizem-me que sou daqui, mas não sei se aqui vou morrer...”. Enquanto assim pensava, vinham dos montes ecos de fainas, cantos de aves e brisas de verdura. Gostava da cidade, aquela vantagem de ter tudo à mão, o viver sem vigias de comportamentos, despercebido, mais um no meio daquela gente toda, lugares onde aprendia que os horizontes se estendem mundo fora, mesmo que não saiamos da nossa coxia. “Mas nisto me justifico, como se entre mim, as coisas e as pessoas houvesse uma comunhão sanguínea, nascida desta seiva e deste húmus. Será a voz do meu Pai a chamar-me ao seu conhecimento, como se longe do túmulo o pudesse esquecer? Ou a presença da minha Mãe que, suspensa de um receio, pede à Senhora do Monte para que o destino não lhe leve o filho, ao menos o filho? “.

- Nunca esmagaste uma formiga?... – perguntou, debaixo, Artur, tirando-o do sério. - Não sei quem disse que matar uma formiga era destruir um bom exemplo. Já viste a disciplina e a paciência delas?...

- Igual à tua...

Ouviu-se um rodar de chave. Ao saltar, João tropeçou e caiu de joelhos.

- Estás habituado aos passeios das ruas do Porto...

- Como tu – enquanto, com as mãos, limpava as calças.

- Deixa lá, isso sai com a escova...- resolveu D. Carlota.

- Já rezou tudo, Mãe?... – abraçando-a com carinho.

- Rezei por vós... Para Nossa Senhora vos ajudar nos exames... No próximo ano tendes que estar na Universidade... O Artur também escolheu Direito?...

- Para não desfazer...

- Lá ides para Coimbra... Depois é que é preciso ter juízo... Lembras-te – virando-se para João - do filho do Pessegueiro? No Liceu foi sempre um aluno excelente, depois de ir para Coimbra não passou do primeiro ano...Queria ser médico, está num Banco em Lamego.

- E acha mau?...

- Foi um desgosto para aqueles Pais...

- Nem toda a gente pode ser doutor...Quem trabalhava as vinhas e pisava as uvas?...

- Querias ser tu a fazer isso?...

- Se não fosse filho da D. Carlota, que remédio... – subtilizou, perante a risada geral.

- O pior - interrompeu Artur com uma indisfarçável inquietação - é a guerra do Ultramar... Se não nos pomos a pau, vamos para lá como cordeiros...

- Não podeis perder nenhum ano e quando chegar a vossa vez já o Salazar resolveu a guerra. Tenho essa esperança - acrescentou ela com uma certeza tão genuína que nem dava hipótese de a rebater.

- O Salazar – balbuciou Artur – não resolve nada D. Carlota. Só complica... Os ditadores – prosseguiu, quase a medo, não sabendo que reacção encontraria – não têm esperança, nem lutam por ela.

Ela deitou-lhe um olhar de incómodo e João encolheu uma concordância. Ouviu-se, na correnteza da tarde, um estrépito de cavalgadura, e só quando já estava junto deles é que repararam - encostando-se ao muros do caminho - no Zé do Alto em cima do macho. Puxando a rédea, arriscou, em desequilíbrio, tirar a boina para os cumprimentar, mas, o animal não lhe deu azo e desapareceu, saltitante, qual Sancho Pança em busca do rasto de D. Quixote.

Andavam numa fona a acompanhar D. Carlota ao Grémio ou à Feira a mercar os comestíveis, metê-los a custo no velho corcunda alemão que ela conduzia, fincada no volante, qual náufrago agarrado à bóia salvadora, apitando – sob a troça alegre do filho e o riso desajeitado do Artur - em todas as curvas, mesmo nas descobertas; enrijavam os rabos nas carreiras de Lamego, vagueando pelo Parque dos Remédios, descendo a escadaria na mira dos joelhos das meninas; subiam os mortórios de tojo e de silvas à procura de ninhos de perdiz ou os morouços armados em furões. Quando chegava a noite, e no velho Schaub-Lorenz acabava o Café Concerto ou os hossanas de Dutra Faria, a casa assentava num pasmo. Punham-se, ainda, a conversar no quarto do João, que tinha as paredes forradas com fotos do Papa João XXI, dos Beatles, dos Shadows e da Sofia Loren, até se deitarem com projectos de novos passeios. Artur demorava a adormecer. Ouvia bater as horas no relógio da sala - metrónomo de tântalo -, seguidas de uma paz conventual que, em vez de lhe apressar a indolência, o espevitava. Faltava-lhe o ronronar dos eléctricos, as vozes dos noctívagos, a repetição dos carros. Inquietava-se com o miar de um gato, o ladrar de um cão, o estalido da madeira de algum móvel ou do soalho, até o deslizar de uma folha no abandono do quintal. “Como é que este tipo aguenta quinze dias nesta pasmaceira, sem um Cinema ou Café perto, sem carta para dar uma volta? Uma terra sem luz, a beberem água do poço, a Mãe e a velha da Aninhas a deitarem-se com as galinhas e a levantarem-se com o galo...”. Mas o seu caso é que era sempre chamado ao insono. Mortificava-o como se devesse alguma coisa a alguém e não arranjasse maneira de lha pagar. Onde estaria, agora, a Mãe? Dormiriam juntos? Lembrar-se-ia dele? Desde o telefonema da chegada nunca mais lhe ligara. Devia andar a ver os Museus com aquele emplastro atrás dele, um reformado camarário mal amanhado, a olhar para as telas como um bói para um palácio.

Pensava no Pai. Com o quinto ano feito arranjara um emprego no Cadastro da Casa do Douro e, quando herdou, deixou tudo para fazer da lavoura a sua profissão. Andava com os homens e com as mulheres, sempre à frente, nada lhe escapava, era proprietário e feitor, fazia a poda toda com a ajuda do Belchior, companheiro de Escola; na cava e na redra arredondava com a sachola as covas das cepas, colava um pulverizador às costas e só não acartava cestos na vindima porque aqueles anos debruçados na secretária tinham-lhe entortado a coluna. Nem aos domingos parava. Depois da Missa, lá ia ele dar uma volta pelas vinhas - como se respigasse qualquer falha - na espreita de um bardo com a espampa mal feita ou do susto de algum sinal de míldio. À mesa prognosticava a novidade e desancava no Comissário que lhe fizera a carregação do ano anterior e não cumpria com os pagamentos. Nunca, porém, lhe escutaram um arrependimento de escolha; dizia à Mulher que antes queria aquela vida do que a de estar todo o dia a ensinar a tabuada à canalha.

O Pai morreu quando ele brincava no quintal e um reboliço de aflição trovejou pela casa. A Mãe desatou numa gritaria, foram ao lagar buscar um tabuleiro e trouxeram-no lá estendido. Ainda o levaram, no carro do Faísca, ao hospital da Régua, um velho palacete no cimo do Peso, onde só tiveram tempo para a certidão de
óbito. Recordava-se muito bem que ficara quieto, sem saber onde estava e o que fazer, fora do tempo, como se aquilo não fosse com ele, uma vertigem de incompreensão a interrogá-lo. Mas quando a Mãe, desfeita em lágrimas, o esmagou contra o peito como se se agarrasse a uma salvação, sentiu-se tolhido. Só chorou a seguir ao funeral, ao andar pela casa, a sentir o vazio do Pai, a falta do seu cheiro, dos seus passos e da sua fala. Ao princípio, quando o viram cair, julgaram que tivesse escorregado no calço, mas, depois, como não se levantava, aninhado qual inocente atingido por um tiro à falsa fé, a não responder aos chamados, benzeram-se, e o Belchior voou por cima das silvas e das pedras até abrir o portão e gritar a infelicidade. Nunca esquecera essa data. A sua existência ficara marcada por siglas: AP e DP, Antes do Pai e Depois do Pai. A primeira era fagueira e indomável como as histórias do Cavaleiro Andante; a segunda, escura como o País em que vivia. Detestava a negritude das mulheres aldeãs e os seus olhos de servidão; os modos fatalistas e as côdeas de suor dos homens que, aos domingos, se emborrachavam nas tabernas, recuperavam rixas antigas ou inventam novas, anavalhando-se sanguinariamente. Viviam de dia como se fosse noite e dormiam à noite como se morressem. Não fazia do local de nascimento uma canga domiciliária, longe dos mundos que se sonham. Nasce-se onde as Mães estão, e fora bendita a hora de a sua ter decidido vender a herança. Não morreria como um coelho no meio de um bardo, nem seria escravo de leiras, cujo sumo era chantagiado, todos os anos, por seculares jugos estrangeiros. Não trabalharia para implorar preços, ser pago pela arbitrariedade e aturar as perseguições de mandatários de pretensos exemplares da seriedade. Não pactuaria com os donos das unhas envernizadas ou entronizados com trajes de seda que, em cadeiras de couro, brincavam com quem todos os dias bufava nas terras na procura de um sustento qual ruminante espicaçado. Não viveria para o faz-de-conta, era novo, mas, já sabedor que a honestidade não enriquece e que os que trabalham sustentam a fauna dos parasitas e dos invejosos. Partira sem um remorso da terra que lhe roubara o Pai, partiria sem uma saudade do País que lhe tolhia a esperança, ao menos a esperança. Conversaria francamente com a Mãe, dir-lhe-ia que precisava de realizar a sua revolta; ao fim e ao cabo, ela, também, resolvera sair; libertava-a, assim, para, na sua ausência, deliberar o seu futuro. Aproveitaria os amigos da Aliance Française, saberia, antes que fosse tarde, se o destino está escrito nas palmas das mãos ou na vontade de cada um. Chegara a vez de procurar o Monteiro que tanto lhe sereiava os ouvidos desde que o Pai se acabara na sinistra casa da rua do Heroísmo - com cemitério ao lado e tudo –, maldito lugar para onde iam os perseguidos perante a indiferença de uma cidade acobardada. Iriam mundo fora, pelas estradas do atrevimento, com a fome na barriga e a fartura no coração, numa viagem sem mapa, de bolsos rateados, olhos abertos ao vento da tolerância. Não o mandariam para África matar ou morrer, mesmo que apodrecesse no não regresso. Nunca obedeceria à comandita de fatos e chapéus pretos, feios e cínicos, caras de cangalheiros e discursos póstumos, governando, pelo chicote, um povo analfabeto. Nada perderia porque não tinha por onde escolher.

Acordou sobressaltado pelos estoirar de foguetes e o retinir de uma sineta. Parecia-lhe cedo, quase de madrugada, ter dormido só uns instantes, a casa varrida por um motim de passos e vozes de pressas. João, a esfregar os olhos, veio chamá-lo para que se arranjasse.

- Despacha-te! Vem aí o Senhor! – esbaforiu.

Olhou o relógio: passava pouco das oito. Que raio de horas! No tempo da sua aldeia o compasso vinha de tarde, barrigas cheias e sonos ajustados. Pelos vistos, a casa da D. Carlota era das primeiras a ser visitada. Foi, para não armar desfeita, mal penteado, como quando acordava, de salto, para as aulas. Nunca ligara muito àquelas coisas. Dava-lhe sempre a impressão do cumprimento de um ritual para a sociedade ver, mais cerimónia que devoção. A Mãe sim, e o Pai, então, era rigoroso no costume, deitava uma nota de cem escudos no saco, oferecia bolachas e vinho fino ao Padre e aos acompanhantes, alguns já meio compostos nos rostos vermelhos do esforço e do álcool. Beijava sempre a cruz fora do corpo de Cristo, imaginando as
bocas lá passadas, e ficava-lhe uma espécie de remorso por não sentir o calor da Fé. Não tinha, nisso, qualquer presunção, antes um descontentamento por não ser como os outros, como os Pais, que praticavam uma religiosidade que até lhe parecia uma ofensa não os imitar. Gostaria de aceitar a doutrina, interiorizá-la num alimento invisível, um apoio sem o qual não fosse feliz. «Quando tiveres a minha idade, vais pensar de outra forma!», dizia-lhe o Pai, ao notar-lhe as reservas. Não se importava nada de o ter ali para continuar ou alterar as suas hesitações.

Durante o almoço, Artur, esforçando-se por ser natural, disse que seguiria para o Porto no comboio da tarde.

- Mas por que não vão os dois juntos para a semana? - interrogou, surpreendida, D. Carlota. – Como vieram, assim devem ir, não achas filho?

Olhou de lado para o amigo, enquanto chupava um bocado da cabeça cozida do cabrito, e não disse nada.

- Tenho que fazer umas coisas no Porto, a minha Mãe também deve estranhar eu ficar aqui este tempo todo, e acho que não devo abusar...

João, aqui, com a boca cheia de esparregado, mimo que a Aninhas, sabendo da sua perdição, lhe fazia sempre, disse por palavras meio entarameladas:

- Se não estivesse diante da minha Mãe e à mesa, respondia - te à letra...

- A sério......

- Bom...Bom...O Artur é que sabe... – compôs ela.

- Então vê se comes, que no comboio não há disto... – respondeu-lhe João, sem lhe esconder um sorriso céptico que Artur afastou, desviando o olhar.

Acabado o almoço, foram até ao quintal fumar um cigarro às escondidas de D.Carlota. Ao longe, ouvia-se a sineta da Páscoa e via-se à entrada das portas das casas, no caminho que levava à Senhora do Monte, restos de giestas e maias pisadas. Pelo vale ecoavam morteiros e os fumos suspendiam-se no céu como asas de anjos.

- Artur, que se passa contigo?... – perguntou, estranho, João.

- Não se passa nada... O problema é que não se passa nada... Estou cheio desta pasmaceira, pá. Isto é mesmo o cabo do mundo... Falta-me o bulício do Porto, sair à rua e saltar para um eléctrico em andamento, as boazonas de Santa Catarina, ir a um cinema. Porra!, tu gostas disto?...

- O que mais gosto aqui é deste ar. Ouvimos os passarinhos sem andar a procurá-los no Jardim do Passeio Alegre ou nos baldios das traseiras dos prédios...

- Também tens passarinhos da Ribeira...

- Pronto, está bem... A minha Mãe leva-nos ao Pinhão e lá nos encontraremos no Porto. É verdade, lembrei-me agora, acabaste por não ir ao cemitério da tua parvalheira ver o teu Pai.

- Fica para a próxima. Ele sabe que o vejo todos os dias. Não acontece o mesmo contigo?...

- É que tu tinhas falado; só por isso...

- Lá irei um dia...

- Tu é que sabes.

Chegaram à Estação em cima da hora: uma confusão de fardas, garrafões, malas e embrulhos disputados pelos bagageiros, pregões das rebuçadeiras e garrafas de cerveja vazias espalhadas pelo balcão do Bar, algumas até no chão.

- Minha senhora, nunca esquecerei as sua atenções. Desculpe qualquer coisinha...- disse Artur, no meio do alarido, depois de comprar o bilhete, estreitando, demoradamente, o amigo num abraço, fixando-o como se lhe quisesse dizer alguma coisa.

- Desculpar o quê? Tem cada uma... Quando lhe apetecer venha com o meu filho, que será muito bem recebido – alegrou-o, beijando-lhe as faces.

Quando o comboio partiu, assomou à janela um sorriso triste e os seus acenos desapareceram com a última carruagem. “ Esquisito... Este gajo nunca me deu um abraço assim...”, monologava João, abrindo a porta do carro e sentando-se.

- Tenho umas flores na mala e queria pô-las no teu Pai. Vais comigo, não vais? – perguntou-lhe a Mãe antes de ligar a ignição.

- Por amor de Deus, minha Mãe...Eu também tenho que ir lá - respondeu-lhe, pensando, ainda, naquela despedida que lhe pareceu de uma pieguice quase ridícula, ainda para mais num tipo como o Artur que nem era nada dado a sentimentalismos.

Enquanto a Mãe guiava de olhos esbugalhados como se quisesse ver para lá das curvas, ele reflectia o pensamento na toalha esverdeada do Douro. Não gostava dos domingos. Eram dias bocejados, de uma inutilidade a envolver as pessoas e as coisas. Davam-se passeios tristes para justificar o dia, passear os fatos e as gravatas, mostrar a ponte e o rio às crianças lambuzadas com cremes e bolos, calar as patroas que se perfumavam para apagar os cheiros das galinhas e dos assados.

- Estás triste... – disse-lhe a Mãe, sem descravar os olhos da estrada.

- As férias passam tão depressa... – contrapôs desalentado.

- O teu amigo não me pareceu muito satisfeito...

- É um bocado estranho... Se calhar é por isso que me dou com ele...

- Mas olha que temos de procurar quem nos dê alegria...

- São tão chatos os domingos, não acha, Mãe?

- Li, já não sei onde, que os domingos são o funeral semanal do mundo...

- Nem tanto, Mãe... Essa é da Senhora...

- Olha que li isso em qualquer livro. São das tais frases que nos ficam ou porque se encaixam em nós ou porque já as pensámos em qualquer altura...

- Cuidado!... Vá com cuidado, Mãe...

- Eu vou na minha mão, valha-me Deus...

- Mas há quem não vá... A propósito, lembrei-me agora, eu podia tirar a carta... Dava-lhe jeito a si e a mim...

- Mas ainda não fizeste vinte anos...

- Mas, aos dezoito, dava-me a emancipação e já podia...

- Quando entrares para a Faculdade, vamos pensar nisso...

- É o prémio?...

D. Carlota calou-se, fingindo uma redobrada atenção e apitando a despropósito.

- Mãe... Não me respondeu...

- Está bem, meu filho, é o prémio...

Sorriu e pareceu-lhe que já era segunda-feira... Atravessaram a aldeia, acenando aos cumprimentos dos que, encostados ao muro da estrada, faziam um intervalo para os quartilhos da taberna, até pararem no pequeno largo diante do portão do cemitério.
Continua...

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

11/16/10

O QUARTO ALUGADO - II

Estranhos, ali, eram os estudantes, encolhidos diante daquela libação popular, quase envergonhados por não terem calos nas mãos ou surro nas unhas, filhos de ventres diferentes que não os obrigavam à fedentina da vida.

João sempre gostara do mês de Abril; lembrava-lhe os rebentos pascais com as corolas a despertarem os sentidos. Na janela da carruagem passava o filme do alvoroço primaveril, a terra a despertar, rejuvenescida e liberta. Até as crianças, que acenavam, tinham uma alegria nova, lavada das tristezas de Inverno, como se flores lhes enfeitassem os sorrisos. O olhar rolava pelos campos - quadros de pintores naifes - numa volúpia epidémica. Pensativo, Artur, não dizia nada; parecia que congeminava enredos. Não se sentia à vontade, desconfortável no assento de madeira, mexendo-se na inglória procura de melhor cómodo para o rabo.

- Já estás arrependido de ter vindo?... – sibilou João.

- Podíamos era ter comprado um bilhete de primeira. Por mais qualquer coisa... – Artur, com um esgar de contrafeito, voltou a remexer o traseiro.

- Deixa lá, fica para a vinda.

- Há muito tempo que não andava nesta geringonça. Enquanto o meu Pai não comprou carro, vinha nisto ao Porto. Lembro-me que, numas férias de Verão, andava eu ainda na Primária, trouxe-me com ele. Levantámo-nos de noite e a minha Mãe arranjou-nos uma saca com pão, presunto e azeitonas. Quando chegámos a S. Bento, depois do susto do túnel, fiquei tão palerma que o meu Pai teve que me puxar. Amedrontei-me com o barulho, aquele chiar aumentado das locomotivas debaixo da cobertura, os carregadores a lutarem pelas malas, uma confusão depois lá fora, os eléctricos a tilintarem, as mulheres a venderem chocolates, toda a gente a empurrar-se. Tive tanto medo de me perder, que até nas lojas onde o meu Pai entrava não lhe largava a mão.

- Eu já não posso dizer o mesmo. A primeira vez que vim ao Porto de comboio não tinha mão nenhuma a que me agarrar...

Entre eles fez-se um silêncio que acentuou o ruído sobre os carris e o contorno de algumas conversas. A carruagem perdera, com a descida das matronas das cestas, a inflexão da feminilidade serôdia; à frente deles, um homem aparava as unhas com uma navalha e, nas suas costas, outros debatiam técnicas de trolha. A paragem em cada Estação era um clamor de vozes e correrias. O comboio chegava, como animal encanzinado, num afluxo tumultuário; a locomotiva, resfolgando, parava um bocado adiante para as carruagens ficarem na extensão do cais; os que esperavam e os que vinham saudavam-se; algumas malas passavam pelas janelas; uma azáfama estralejava no éter a lembrar desordens em romarias. Um silvo agudo, idêntico a um assobio de réptil, punha de novo em marcha aquele amontoado férreo e o ramerrão regressava. Nos apeadeiros, as mulheres, de bandeirola verde na mão, enquadravam figuras de sépia.

- Não achas que o viajar de comboio acicata a memória? Assim como um regresso ao passado? – surpreendeu Artur.

- Uma saudosa desfilada do tempo... - acrescentou João.

- Brincadeiras de meninos, os passeios aos montes de onde víamos esta coisa a deitar fumo, o eco do seu apito ao longe, uma recordação perdida para além do olhar...

- Porra, Artur, estás numa forma espectacular...

Desenhou um sorriso de tédio. Tirou, do bolso do casaco, um maço de CT e puseram-se a fumar. A carruagem estava quase vazia. Os trolhas e o homem que, em silêncio e ar desconfiado, cortara as unhas com a navalha tinham saído na Régua. Apearam-se no Pinhão e meteram-se num carro de praça. Até casa de João o trajecto era curto: vinte minutos bem contados por curvas e contracurvas entre desfiladeiros que abortavam no Douro e montes de vinhedos que tocavam o céu. Quando chegaram ao terreiro da aldeia, plantada num alto que abarcava o rio, João, lembrando-se que não tinha dinheiro que chegasse, pediu ao chauffeur para aguardar um instante e correu para os braços e para a bolsa da Mãe. Esta recebeu-o com a generosidade do sangue e ao amigo com a marca da ancestral educação rural; a Aninhas - velha criada da casa desde os tempos dos Avós - nunca mais o largava com aquele carinho da criação. Depois de pagos os vinte escudos do frete, atiraram-se, esfomeados, às fatias de bola de carne, aos jesuítas e ao café com leite, antes mesmo de desfazerem as malas. A Mãe – Carlota por assento teologal e Menina Carlotinha por baptismo popular – sentou-se diante deles, feliz de rever o filho e curiosa por desvendar aquele amigo que ele trazia e de quem lhe falara como um irmão. Afeita aos princípios estabelecidos entre as montanhas, como estas inamovíveis, gostava sempre de saber com quem se dava o filho, não fossem as más companhias estragar-lhe a justificação da existência. A viuvez não lhe secara a finura, dir-se-ia que a sazonara na roleta da vida. Debruçado sobre a chávena, Artur sentia-lhe o olhar inquisidor a investigá-lo num tacteio de caminho desconhecido.

- O Artur é destes lados, não é?... – a voz tinha o tom de quem inicia um interrogatório.

- Sou sim, D. Carlota. Sou do Alto do Cume.

- Terra bonita... Gente fidalga...

- A minha Mãe, depois da morte do meu Pai, vendeu tudo e foi para o Porto.

- Desgostos...

- Mãe, por favor, as férias não são para coisas tristes. Lembre-se que estamos na Páscoa, o tempo da ressurreição...

- Pois é, meu filho, tens razão.

Ela aprendera que os olhos espelham a alma e os lábios o carácter. Os dias seguintes, na naturalidade das horas e dos comportamentos, dariam para o observar, mas, sem perceber muito bem porquê, aquele rosto deu-lhe uma ténue impressão de ferida por cicatrizar.

João e Artur dividiram aposentos: ele, no seu habitual quarto do fundo com janela para a estrada; o amigo, no chamado quarto de hóspedes, em frente do corredor, virado para o pátio da habitação. Esta, vulgar casa de lavoura sem cosméticas arquitectónicas que merecessem distinção, tinha a forma de um L: numa parte, a Casa Um - nome que vinha já do Avô -, ficavam a cozinha, as salas, o quarto de banho e os quartos de dormir; na outra – que, por sequência, era a Casa Dois -, meia dúzia de divisões sem uso diário e que serviam de poiso para tabuleiros onde se espalhavam uvas escolhidas, figos, abóboras e outros frutos de época. No armazém, sob o soalho da primeira, alinhavam-se dois toneis e, numa divisão contígua, uma espécie de celeiro com cachos de cebolas dependurados de uma trave, batatas, feijão, favas secas e uma pequena tulha para o escasso azeite de colheita. Debaixo da segunda, dois lagares, com as respectivas prensas, e, entre eles, pousado nas beiras, o andor do mártir São Sebastião todos os anos ornamentado por D. Carlota, na festa do orago, em obediência à disposição testamentária do marido, que, àquele, toda a vida, devotou veneração. No quintal, espaçoso, com canteiros de cravos definidos por barbantes delicados, cultivava-se, em volta do poço, uma horta de repolhos, tomates e alfaces. A um canto, meio escondidos, ficavam um galinheiro de fecundas poedeiras e o alpendre-garagem do Volkswagen azul, achatado como uma joaninha. Era a sua casa. Ali nascera e se fizera sem artifícios, educado pelos dogmas de uma Mãe vestida de negro e de uns Avós que duplicavam as carícias ao neto de paternidade extinta. O Avô, além de umas leiras espalhadas, negociava em vinhos, calculando comissões, e a Avó subia e descia escadas com canecos de água à cabeça ou bacias de roupa que punha a corar conforme o tempo mandava. A filha costumava dizer-lhe: «Ó minha Mãe, a Senhora julga que estar quieta é pecado?!... Não tem quem lhe faça isso?!...» Ela respondia-lhe: «Trata dessa criança que já tens muito que fazer!...»

Carlota estudara, conforme regra daqueles tempos, num colégio de freiras, em Lamego, de religiosidade e disciplina austeras, até lhe saltar aos olhos Joaquim Silvestre, primogénito dos Casais, abastados lavradores dos baixos de Sande. Era um jovem e bem apessoado professor primário numa Escola citadina que, todas as tardes domingueiras, se postava, junto do salão de chá, a vê-la passar rumo aos terreiros dos Remédios. Carlotinha nunca notou a marcação. A clausura colegial retirara-lhe a arteirice de adolescente. Silvestre, por conhecimentos colegiais, soube o seu nome e escreveu-lhe uma inflamada declaração amorosa. O que ele fez! A carta foi direitinha ao Pai que, atónito, tratou de descobrir «o mariola que anda a desencantar a minha
filha!». Quando soube que era o filho do Casais, a quem algumas vezes tratara das carregações, amainou o reproche e não conseguiu esconder um sorriso travesso. Depois de muita cavaqueira com a consorte - que o aconselhava a moderar-se - e noites mal dormidas a magicar no futuro da sua donzela, cruzou-se, por uma daquelas eventualidades que até se afiguram como encontros combinados, em plena rua dos Camilos, na Régua, com o dono do candidato à sua filha. Entraram no Nacional, sentaram-se e pediram dois cafés. Depois de muitas finezas e interesses escondidos a que a natureza humana não resiste, separaram-se com um abraço tão festivo como se tivessem selado um chorudo negócio de vinho a contento de ambas as partes. - Só eu – contava-lhe a Mãe, algumas vezes, nas horas mortas da saudade – não sabia de nada. O teu Avô a fabricar o casamento com o teu Pai e eu, ali enfiada a rezar e a estudar, longe de tudo. Vê lá tu que nem me deram a ler a carta dele, como se fosse a mensagem de um demónio! Não era, de facto, o recado de um demónio, mas uma involuntária predição.

Carlota e Silvestre (re)conheceram-se num almoço de domingo, fingidamente casual, nas férias de Verão. Os Pais haviam-lhe anunciado, de véspera, a chegada de visitas para o almoço. Estava a ajudar a Mãe a pôr a mesa quando elas entraram. Nas apresentações, o rosto de Silvestre trouxe-lhe uma identificação já vista, uma remanescência de qualquer lugar, mas não sabia de onde. Durante a refeição, no meio de conversas sobre míldio, sulfato, perspectivas de vindimas e elogios ao arroz de cabidela, Silvestre lembrou os passeios dominicais e o lugar em que a via ir, no meio daqueles vestidos todos iguais, azul de céu, colarinhos debruados a branco, pela avenida das tílias, «rumo ao retiro – carregando no substantivo - dos Remédios». Decantava a conversa com uns olhos castanhos de sombrio romântico que se lhe fixavam a estudar a reacção. Decididamente o tipo estava a galanteá-la. Empalidecida, fitou o Pai que, à cabeceira da mesa, lhe sorriu numa cumplicidade estranha, ele que tantas vezes a advertia para a manha dos homens. Não estava a perceber nada. Calou-se, envolta em pudor, e foi com alívio que se levantaram da mesa. Ia a retirar-se para o seu quarto, quando a Mãe, desajeitadamente, lhe sugeriu «uma voltinha pelo quintal com um sol tão bonito...». De repente, percebeu-se emboscada. Não desdenhava o Silvestre, o seu ar já maduro, com cara de gente. O subentendimento paternal entreabria-lhe a oportunidade de se libertar de uma submissão quase monástica que os seus dezoito anos, a custo, suportavam. Enquanto passeavam por entre os craveiros, dentro da casa, na sala das visitas, fumando e bebericando café e uns cálices de aguardente velha, os donos dos dois, satisfeitos com «a milagrosa coincidência que Deus quis», desfrutavam já o futuro estatuto familiar; e o Senhor Casais dava carta livre ao Senhor Oliveira – assim se chamava o Avô de João – para lhe colocar o vinho da próxima vindima na Casa Inglesa com quem intermediava.

Para encurtar razões, que este tipo de enredos casamenteiros rematavam-se sempre da mesma maneira, pois aquela época não consentia emancipações ou recusas ao familiarmente ajustado, Carlota e Silvestre legitimaram a sua união, no ano seguinte, em cerimónia a condizer com a vetustez da velha Sé, num trigueiro sábado de Maio – as Mães dos noivos assim diligenciaram por ser o mês de Maria - do ano em que os ares andavam turvos e a Polónia, com os panzers hitlerianos à porta, sem ter a quem pedir socorro. O velho Casais meteu uma cunha ao Director Escolar – aproveitando, sem rebuço, o copo de água em que era um dos convidados – para o filho ser transferido para a Escola da terra de Carlotinha. Esta fez-se, assim, exemplar doméstica, ou antes, Dona de Casa, deixando a canseira dos livros e a prisão colegial. As núpcias foram em Lisboa, gastando as poucas horas disponíveis fora do hotel, sito nas imediações do Chiado, a visitar a Torre de Belém, o Mosteiro do Jerónimos, o Palácio Cor de Rosa em que mal tilintava a espada do Fragoso, o da Assembleia Nacional, cujo anexo de S. Bento guardava o grande filho de Santa Comba Dão, o Jardim Zoológico e a Boca do Inferno; não falharam, também, uma revista no Parque Mayer, o corropio do Bairro Alto, Alfama e Mouraria à procura da sombra da Severa, assim como as prendas para os Pais nos Armazéns Grandela. Regressaram revigorados e felizes, recebidos com mimos e risinhos coniventes. Poucos meses depois, Silvestre caiu na cama, destroçado por um inexplicável cansaço que lhe embargava as forças e suores incompreensíveis a minguarem-lhe as carnes. Alvoraçados, consultaram o Dr. Feliciano, médico de ambas as famílias. As análises pedidas mostraram um aumento anormal dos glóbulos brancos – leucócitos lhes chamaram – , os vermelhos muito abaixo do mínimo. Como a resposta à medicação era nenhuma e o emagrecimento acentuado, recorreram aos melhores Especialistas do Porto. Por alvitre de um primo afastado do Casais, até a Lisboa foram, penosamente, na peugada da fama de um, em derradeira esperança de cura. Todos os consultados animavam os acompanhantes, e lá iam dizendo, simplificando, para susterem mais perguntas, que era uma infecção no sangue. Só depois da sua morte, que pouco demorou, e com a Carlota grávida, é que os familiares souberam que tinha sido uma leucemia a causa de tamanha tragédia. Ela, esgotada de tanto padecimento e desiludida pelo luto, agarrava-se à barriga como se temesse um fadário igual para o fruto da sua breve união. Quando o pariu e lhe escutou o primeiro choro, foi como se um grito de injustiça lhe brotasse das entranhas.

- João!

- Mãe!

- É o telefone para o teu amigo.

João e Artur, no fundo do quintal, contemplavam o vale, esmagado entre penhascos que se levantavam lancinantes às cumeeiras dos astros, o rio correndo cheio de graça na rudeza da paisagem. Espreitava-se a parte ribeirinha do Pinhão e a sua ponte, abarcavam-se montes e montes de vinhedos com solares de vigia, elos de estradas e calços de simétricas escamas em dorso gigante, tudo envolvido por um silêncio imponderável de fim de tarde que dava a impressão do lento esmorecer de um gemido longínquo. Ele era, de facto, dali. Conhecia aquele recomeço do viço, os cheiros da erva e da terra ressuada, aquela doçura de promessas de frutos e a alegria das maias a repelirem o diabo. Era dali, mas, às vezes, julgava-se estranho àqueles rumores dos trabalhos e das vozes das gentes; àquela orografia ondulada de proporções colossais, sideral e terráquea, tão compacta e eloquente que agitava a alma.

- Era a minha Mãe – informou o Artur quando se lhe voltou a juntar.

- Podias-lhe ter telefonado, mal chegaste. Estás à vontade.

- Eu sei. Passou-me.

- Está tudo bem?

- Telefonou para saber se tínhamos chegado direitos. O resto não sei... Isto é mesmo bonito... Aquilo lá no alto o que é?

- Não estou a ver.

- Aquelas bolas suspensas nos fios.

- Ah! dizem que é por causa dos aviões.

- Olho para isto como se não tivesse nascido aqui, nem memória tenho.

- Amanhã vamos à tua terra.

- Nem penses. Irei lá, se for, quando já ninguém se lembrar de mim.

- Não queres ir pôr flores no teu Pai?!

- Claro, mas isso é diferente. O cemitério fica desviado da aldeia e não há olhos a cheirar. Aborrecem-me as perguntas de saco, estou mesmo a imaginar, como vai a Mãezinha, foi uma pena o Paizinho, e o Menino anda bom?, nunca mais cá vieram... Como se estivessem a tirar a pele a um gajo, a despir as misérias familiares... E se encontrar por lá a beata, a quem a minha Mãe manda, todos os meses, dinheiro para o arranjo da campa, ainda durmo lá. É uma chata que nem imaginas.

- Eu acho graça a isso... É como se todos fossem da família.

- Família?... Não alinho muito nessa coisa do mito da franqueza aldeã. São implacáveis, não perdoam nada, e cilindram qualquer um sem dó nem piedade. Não se pode dar um peido que toda a gente sabe e, se gostarem de ti, em vez de um dás cem...

- Gente ruim há em todo o lado. Não encontras, na cidade, a ajuda das pessoas daqui. Estás a encruar, falas como um citadino. Claro que lá passamos despercebidos, somos um número, aqui temos um nome, um passado...

- E futuro... Um futuro do caralho...

- O futuro somos nós que o fazemos...

- Deixa-te de merdas... Não me venhas com frases feitas. Quem gosta da agricultura é masoquista. Desde que perdi o meu Pai, perdi a terra. Com ele morreu tudo. Quando a minha Mãe resolveu vender a casa e as terras ao meu Tio até fiquei satisfeito, assim como se me libertasse de um fardo, como um namoro antigo desfeito por uma traição intolerável, entendes?...

- Podíamos dar uma volta enquanto falamos. Que dizes?

- Ver o quê?...

- Pedras, lagartixas, vinhas, oliveiras, um sabugueiro perdido, gente suada, canalha com ranho, mulheres emprenhadas, borrachões, raparigas sem cremes...

- João, vê se te acalmas...

A Mãe, com um xaile verde azeitona sobre os ombros para se resguardar da fresca do entardecer, desceu as escadas da cozinha, enxotando o Leão que, aos pulos, a envolvia em afagos.

- Vou à Senhora do Monte – insinuando a informação num convite.

- Estava precisamente a dizer ao Artur para irmos dar uma volta... Deixe, eu levo-lhe a chave – disse João.
Continua...

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.