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11/13/09

MWEDA


(Gravura fictícia formada por imagens livres recolhidas na net)

O dia estava de inverno, claro, frio e com um grande céu azul e luminoso. Mweda e Dimike, duas belas raparigas vamwanga, desciam alegres as encostas do lado sul do planalto dos makondes, falando do triste fim do Nangonga, um jovem caçador da linhagem milandje, que morrera há dias atrás na floresta de kundonde vitima de ataque de abelhas quando tentava retirar mel de uma colmeia. As raparigas caminhavam cuidadosamente, uma atrás da outra, seguindo um caminho íngreme e serpenteante que descia a encosta abaixo até a um conjunto de arbustos rodeados de um imenso tapete de verdura fresca, onde desde os tempos imemoráveis as mulheres vamwanga colhiam os saborosos ingumbuli e muaka para o consumo.

Ingumbuli e muaka eram verduras apreciadas pelos makondes antigos e eram muito abundantes na zona baixa do lado sul do planalto makonde, mercê às condições climáticas associadas à humidade oferecida pela natureza naquele recanto do planalto. Estas verduras eram cozidas, temperadas com o pó de amêndoa de frutos silvestre e salgadas com maka e, normalmente, eram acompanhadas com ugwali de farinha de mapira ou mexoeira produzida no planalto pelos aldeões.

Entretanto, as raparigas chegaram junto aos arbustos, embrenharam-se pela pequena mata à dentro e onde se achava muito ingumbuli e muaka pousaram no chão vitumba que cada uma trazia nas costas amarrada com capulana, como se de bebé se tratasse, e que pretendiam enche-las de água do rio Chudi ao regresso. Dimike afastou-se para um lado e Mweda para o outro, não muito distante uma da outra.

A mata estava silenciosa. Aqui e acolá à uma distância razoavelmente distante, ouvia-se aves a piarem nos ramos e no céu azulado andorinhas e outras aves batiam as asas livres e desinteressadas.

As raparigas começaram a colher as verduras em silêncio guardando, punhado por punhado, nas capulanas que haviam servido para amarrar vitumba nas costas. Passado algum momento, Mweda aproximou-se a uma pequena porção de terra, curiosamente, muito húmida. Afastou cuidadosamente a vegetação que crescia em volta e de súbito, uma pequena porção de água borbulhou rapidamente. Mweda assustou-se. Olhou desconfiada a água que brotava da terra e de seguida, gritou:

- Dimike, Dimike... venha ver este incrível milagre!

Dimike assustou-se. Deixou no chão a verdura que colhera e rapidamente precipitou-se para junto da Mweda que não parava de admirar o fenómeno que se manifestava.

- O que foi? – Quis saber Dimike assim que se encontrou junto da amiga.
- Olha para esta nascente! – Mweda sorriu olhando a interlocutora com orgulho próprio. – Não é incrível avistar esta maravilha nestas bandas desprovidas de água?
É... – Concordou Dimike ajoelhando-se maravilhada junto da nascente que ainda borbulhava sem parar.
- Vamos cavar. – Sugeriu Mweda colocando-se de côcora.
- Vamos, vamos.

As raparigas limparam em volta da nascente, cavaram um pequeno buraco que rapidamente foi coberto de água e no fim, encheram vitumba de água limpa e cristalina e de seguida, sairam dali para casa felizes e anciosas de dar a conhecer a toda gente da povoação a boa nova.

Quando chegaram a povoação, o sol estava ao meio do céu. A aldeia estava quase deserta e muitos dos seus aldeões haviam ido às machambas deixando no terreiro da povoação apenas uma dezena de escultores, ferreiros e outros artesãos atarefados nos seus afazeres e embalados numa boa e animadora conversa. Pelas ruelas da povoação pequenos grupos de crianças nuas, na sua maioria, e razoavelmente nutridas brincavam alegres dando vida a pacata povoação dos vamwanga de Kaudje. Pouco tempo depois, Dimike e Mweda chegaram a casa da vovó Nkanama, onde a última vivia, e sem perder o tempo as raparigas contaram tudo o que haviam presenciado na baixa sul do planalto.

No entanto, a noticia não tardou a espalhar-se pela povoação inteira de tal modo que, até ao entardecer daquele magnífico dia a notícia chegou a outras povoações vizinhas. Nisto, na manhã do dia seguinte, muito cedo, o nkulungwa Kaudje mandou homens da povoação para junto com as raparigas irem certificar-se da veracidade dos factos que no dia anterior haviam alimentado, de certa forma, as conversas dos aldeões. Ao chegarem no local indicado, os homens constataram o que as raparigas haviam narrado e maravilhados cavaram em volta da nascente por forma que a água formasse uma lagoa considerável, onde permitisse os aldeões desfrutarem da água sem complicações. Quando terminaram, alguns homens tomaram banho, encheram as cabaças de água e regressaram a povoação, onde perante o conselho dos anciãos confirmaram o que as raparigas haviam narrado. Por unanimidade, o conselho decidiu baptizar a fonte pelo nome de Mweda e os aldeões passaram a desfrutar da sua água limpa, pura e cristalina.

Contudo, como antigamente, entre os makondes, quem descobrisse algo extraordinário morria por forças estranhas, Mweda, como não podia deixar de ser, morreu dias depois! Todavia, o seu nome ficou marcado na memória do seu povo, quem em 1913, aquando do conhecimento e aproximação dos portugueses com os makondes, soube influenciar o colonizador de forma astuta a chamar o planalto dos makondes de Mueda, em memória à Mweda que em tempos muito distantes descobrira a nascente de água limpa, pura e cristalina nas encostas do lado sul do planalto.
- Allman Ndyoko, Moçambique, 13/02/2008

Glossário
VamwangaLinhagem de Mwanga que também era conhecido por régulo de todos makondes da sua linhagem.
Milandje – Alguém da linhagem milandje.
Kundonde Nas baixas do planalto.
Ingumbuli Verdura comestível, espécie espinafre.
Muaka Verdura também comestível quase com características de cacana muito abundante na região sul de Moçambique.
Vitumba Plural de cabaça em makonde, recipientes usados pelos makondes antigos e contem porâneos para conservar e transportas água.
Nkulungwa Ancião que automaticamente era régulo na denominação portuguesa.
MakaCinzas de espiga de milho antigamente usado pelos makondes para salgar os alimentos.
Ugwali Xima ou massa de farinha.


12/11/09

MANGONDÈ


Um bando de aves em vôo apressado cortaram a aldeia em diagonal enquanto andorinhas em seu estilo característico batiam as asas em franca liberdade no céu claro, fresco e azulado de Mahunda.

Kabwela, um homem afável da linhagem vamatambwe, alto, forte, de rosto tatuado e dentes afiados conforme mandava a tradição, atravessou o limiar da povoação empunhando uma catana na mão e levando nas costas um arco e flechas e seguiu um carreiro serpenteante que conduzia à floresta adentro. Andou no meio da floresta cerrada e tenebrosa ouvindo os pássaros que lhe cantavam serviçalmente naquela manhã bela e boa para um passeio no bosque. Com a barba desleixada, descalço, palmas ásperas e um andar na floresta experiente, Kabwela marchava firme com a fisionomia denunciando um homem maduro, vivido e que deleitara e usara abusivamente os prazeres da vida.

Entretanto, aproximou-se a uma moita bem tenebrosa e logo deteve-se com pasmo. Recuou dois passos e voltou a deter-se fazendo bater as pálpebras vezes sem conta. Passou a mão aos olhos, esfregou-os rapidamente e continuou olhando fixamente na moita. Em frente dos seus olhos uma figura humana envolta em pano branco, semelhante ao que se envolve aos cadáveres, lhe aguardava cabisbaixa e em silêncio tumular. O sujeito tinha a face pálida, olhos esbugalhados e um olhar apavorado que denunciava uma excessiva insatisfação. Kabwela olhou-o fixamente e no fim, pareceu-lhe familiar. Matutou insistentemente procurando se lembrar do homem. Rapidamente veio-lhe a cabeça. Deitou no chão a catana, o arco e as flechas que trazia e tremendo de medo no meio da floresta fugiu a sete pés com as mãos sobre a cabeça e gritando aos berros:

- Acudam-me, acudam-me, acudam-me...

De repente, a figura em volta em pano branco seguiu o gesto correndo atrás de Kabwela de forma incrível e sobre-humana. Pouco depois, Kabwela tropeçou um tronco escondido e enterrado no capim alto que predominava a floresta e logo o sujeito alcançou-o. Apeado em sua frente, o sujeito olhou-o assustadoramente com olhos ofuscantes e lhe rodeou com ar ameçador. Parou levando a mão às costas e, com uma rapidez indiscriptível, começou a bater Kabwela com uma haste delgada e flexível que parecia de uma árvore. Kabwela gritou forte e profundamente provocando um eco na imensidão da floresta, que se propagou imediatamente chegando a ouvir-se nas palhotas iniciais da povoação. No entanto, o sujeito bateu-lhe forte e feio e logo as lágrimas não tardaram a saltarem-lhe dos olhos. Desesperadamente tentou erguer-se para se escapulir, mas o homem de pano branco impediu-o deixando-lhe cair no tapete verdejante da floresta. Passado um momento, o agressor parou. Uma tempestade forte fustigou, repentinamente, a floresta e, precisamente, no ponto onde Kabwela lutava em vão para se pôr em fuga. Nesse instante, o agressor desapareceu misteriosamente entre nuvens densas e negras que, inexplicavelmente, formaram-se naquele ponto do bosque. Nisto, Kabwela ergueu-se com a cabeça mergulhada entre os braços. Soluçando fez uma ronda com os olhos em volta da floresta e temeroso fugiu, novamente, a sete pés fazendo caretas de dor.

Sem olhar para atrás, Kabwela, correu incansavelmente como um antílope e depois de muito tempo e de uma fuga desorientada desembocou na aldeia reiniciando os berros como uma criança.

A povoação parou e os aldeões curiosos seguiram o infeliz cerimoniosamente até a sua palhota, onde no meio do quintal deixou-se cair chorando fortemente esgravatando a terra e, de vez enquando, cerrando os punhos cheios de areia. Kabwela chorou durante muito tempo lacrimejando copiosamente e depois calou-se. Dois anciãos sairam no meio dos curiosos que o assistiam e ajudaram-o a erguer-se do chão. Depois, banhado de areia, encaminharam-o à palhota, onde após uns breves instantes de silêncio, os anciãos quiseram saber:

- O que sucedeu?

Kabwela calou-se. Passado algum momento suspirou profundamente, mergulhou a cabeça nas mãos e mentalmente começou a reviver o que lhe sucedera na floresta. No fim, soluçou uma vez e tremendo, respondeu:

- Ia andando a caminho da floresta, onde tencionava visitar as minhas armadilhas e arranjar algumas estacas para concertar o celeiro, quando, de súbito, numa moita tenebrosa vi um vulto envolto em pano branco. Parei, olhei fixamente e vi que era alguém que conhecia e que já não está no mundo dos vivos. Fiquei assustado e fugi. – Kabwela voltou a chorar fortemente limpando depois com a costa da mão um fio de ranho que lhe escorria pela narina abaixo. De seguida, calou-se e voltou ao ponto onde havia interrompido. – A pessoa perseguiu-me e junto de um tronco cai...

- É um mangonde. – Concluiu um dos anciãos. – É preciso sadaca para que não volte a reaparecer-lhe.

- Ele está aborrecido com alguma coisa. – Disse o outro ancião. – E para saber o que é será preciso consultar um wihyango.

- Não é preciso consultar a ninguém. – Disse Kabwela triste. – Ele é meu avô que não cheguei de conhecer e segundo os relatos da minha mãe, ele faleceu na floresta de kundonde, presumivelmente, devorado por leões quando voltava a povoação. Uma vez que não se teve certeza desse acontecimento, ninguém fez matanga. Quando hoje me batia, o avô fez referência a este assunto e advertiu-me que caso não fizesse nada algo fatal me sucederá.

- Então, faça a cerimónia o mais breve possível. – Disse um dos anciãos. – Os mangondes não mentem e podem matar.

- Farei o mais breve possível para que o avô descanse em paz. – Disse Kabwela aterrorizado.

- Estas situações são frequentes e as pessoas que normalmente fazem isto são as que lhe negamos a cerimónia relativa à sua morte. Quando isto acontece eles vagueiam aqui na terra e não são recebido no mundo dos ancestrais. – Disse alguém entre os dois anciãos.

- Então, quer dizer que matanga constitui para os mortos um cartão de entrada no mundo dos antepassados. – Concluiu Kabwela juntando os braços no peito.

- É sim um cartão muito importante para os mortos entrarem no mundo dos antepassados.– Respondeu uns dos anciãos sentado à beira da cama dentro da palhota iluminada por uma lareira que ardia lentamente no centro exalando uma densa fumaça branca. – E para provar isso, a agressão feita hoje basta para ilustrar a importância que a cerimónia tem para as pessoas que passam para o outro lado do mundo.

Entretanto, os anciãos deixaram a palhota e foram às suas vidas, um gesto também imitado pelos curiosos que cercava o quintal do Kabwela.

Dias depois, Kabwela fez matanga tendo , em memória ao seu avô, dado, no seu quintal, uma festa de invejar, onde os aldeões de Mahunda evocaram os espiritos dos antepassados de Kabwela, comeram, beberam e dançaram ao som secular dos tambores. Assim, após aquela festa pomposa à meneira makonde, Kabwela jamais voltou a avistar algo semelhante com o que havia visto na floresta naquela manhã clara, fresca e fatídica, confirmando-se assim o pensamento popular sobre a questão...
- Allman Ndyoko, 19/03/2008.

GLOSSÁRIO
Vamatambwe – Pessoas da linhagem matambwe;
Mangonde – Espirito ou fantasma;
Wihyango – Advinho que também pode ser curandeiro;
Kundonde – Zona baixa do planalto dos makondes;
Matanga – Cerimónia ou festa alusiva a morte de alguém familiar;
Sadaca – Festa que se oferece as pessoas após ter prometido ao antepassados fazer em sua memória.

11/19/09

O Monte Liungo

Ao longo da baixa do planalto makonde, para quem vai a actual aldeia Lutete, precisamente na povoação de Uavi, fica o monte Liungo. No passado muito distante, Liungo foi um lugar sagrado e procurado pelos aldeões do planalto, aventureiros swahilis e makondes de Tanzania, parentes dos makondes de Moçambique, para a realização de preces para, espantar maus espiritos, curar enfermidades, obter sorte na caça e nas viagens, alcançar a prosperidade, em fim, preces para diversos domínios da vida humana. Homens e mulheres vinham de todos cantos e subiam até ao cume da montanha, onde suplicavam e deixavam oferendas, como: pólvora, tecidos, espingardas, dinheiro, estátuas de pau-preto, máscaras feitas de madeira preciosa, ouro, pedras preciosas e diversos objectos de adorno. Todos pedidos feitos na montanha era realizados e quem prometesse algo em forma de oferta e no fim ficasse sem cumprir morria ou desaparecia simplesmente, podendo, às vezes, ser avistado deambulando pela vegetação que cobre o monte Liungo. Contudo, Liungo tinha também outras funções sociais: No fim de Outubro, por exemplo, o cimo da montanha cantava ú,ú,ú... sendo de tempo em tempo acompanhado de um vúúú..., vúúú..., vúúú...; Estes sons eram emitidos dia e noite anunciando à chegada da época da abertura de machambas e da consequente queima de mani. Assim, nos dias subsequentes era frequente avistar aldeões de várias povoações empunhando enxadas e catanas e dirigindo-se no coração da floresta. Quando o canto da montanha cessava, logo a chuva caia e a felicidade erradiava os corações dos camponeses. Este fenómeno repetiu-se gerações e gerações.

Mais tarde, com o passar dos tempos, no sopé da montanha foi construida uma povoação pequena de forma circular e habitada maioritariamente por makondes da linhagem vanamuegùa que se dedicava essencialmente a agricultura, caça, colecta de mel e artesanato. Para além destas ocupações, alguns aldeões dedicavam-se a actividade de guia levando forasteiros ao cume da montanha para a realização de preces ou entrega de oferendas aos espiritos do monte.

Reza a lenda que, uma certa noite de verão e de céu salpicado de estrelas chegou na povoação um bando de oito aventureiros swahilis carregando fardos enormes contendo panos, sal, álcool, tabaco, pólvora, espingardas e cachimbos para a venda. O bando pernoitou na povoação, onde foi tratado com civilidade e durante a conversa com os aldeões ficou a saber da existência de preciosidades na montanha. Nisto, três dias depois os aventureiros venderam as mercadorias e atarde foram despedir-se ao nkulungwa da aldeia visivelmente emocionado.

- Deus queira que a sua sábia chefia se prolongue por mais anos da sua vida e que os jovem da sua linhagem venham seguir os teus ensinamentos. – Disse de viva voz um dos aventureiros assim que entraram no quintal do nkulungwa.

- Que os corações dos jovens makondes te ouçam e que assim queiram os espiritos dos antepassados.

- Que assim seja! – Disse alguém dentre os visitantes.

O ancião serviu aos visitantes duas camas de lutandove e depois sentou-se numa cama posta no beiral da casa principal enquanto os outros emitavam-lhe o gesto.

- Muito bem. – Disse o nkulungwa com voz trémula de extrema velhice. - Em que vos posso ser útil, meus jovens?

- Vinhamos despedir. – Respondeu um dos visitantes e de seguida acrescentou. – Cumprimos integralmente as nossas intenções e para finalizar gostariamos de chegar ao monte para suplicar aos espiritos a proporcionar-nos uma viagem sem perturbações.

- Isso é muito simples. - Balbuciou o nkulungwa. – O Kwavango, um dos guias da povoaçao levar-vos-á ao monte.

- Uma vez mais agradecemos a sua bondade.

- Não têm que agradecer. – Sorriu. – Nós somos assim... hospitaleiros, mansos, bondosos, tolerantes, mas maus quando alguém provoca-nos.

Todos riram perdidamente e no fim, o nkulungwa chamou o guia; Apresentou-o aos forasteiros e depois, disse:

- Idem em paz e que os espiritos dos ancestrais venham proteger-vos.

O ancião fez uma pausa. Apoiou-se ao braço de um dos netos, fixou os pés no solo e quando certificou-se de ter pisado seguramente o solo, ergueu-se lamentando uma dor infernal na coluna vertebral. Fez uma cara feia, pegou na sua bengala e advertiu:

- Idem em paz e não deixem que a cobiça vos cegue...

Deu costa os visitantes com muita dificuldade e lentamente caminhou parando em cada três passos para repousar. Ele era muito velho. Tinha a face tatuada e cheia de rugas. A boca era desdentada e chupada.Tinha um corpo magro e curvado.

Quando o nkulungwa entrou numa das palhotas, os visitantes deixaram o quintal rumando à montanha guiados pelo Kwavango. Andaram muito tempo num caminho estreito ladeado de capim alto e mais tarde iniciaram a subida da montanha esquivando pedras soltas postas ao longo do caminho.

Entretanto, subiram seguindo um atalho alcantilado que circundava o monte numa subida quase infindável. Já no meio do monte começaram a sentir o ar fresco e a visualizar a enorme floresta que se estendia de todos lados até ao horizonte. Pararam por alguns instantes para descansar. Era já atarde. O sol luminoso de Junho derramava os raios sobre o planalto. No entanto, prosseguiram a marcha caminhando lentamente ao lado da ravina que circundava o monte. Após algumas horas os visitantes alcançaram com muita dificuldade o cume da montanha. Deixaram as trouxas no chão, descansaram algum momento e de seguida, prepararam-se para entrar no local sagrado...

O local era uma gruta com um enorme alta natural, onde podia-se vislumbrar diversos objectos preciosos ofertados por gente de todos cantos. Todas aquelas relíquias eram protegidas pelos espiritos, sendo impossível a sua retirada da caverna, pese embora o seu valor cultural e comercial.

Nisto, os visitantes ao entrar no interior da gruta e quando lá se encontraram ficaram estupefactos com a presença de objectos valiosos naquele lugar. Um dos visitantes aproximou-se a um punhal de ouro puro, olhou-o com manifesto interesse e no fim, fez movimento para tocar. Nesse momento o guia gritou:

- Não! Não toques no objecto. Ele é sagrado e quem tocar será amaldiçoado.

O visitante hesitou, mas depois encorajado pela cobiça tomou o objecto e começou a troçar o guia em swahil. Kwavango afastou-se da gruta todo medroso e fugiu a sete pés, tendo em seguida escorregado e caido na ravina. No entanto, na gruta os visitantes pilharam os objectos sagrados e sairam para iniciar a descida da montanha. Próximo a gruta prepararam pequenos fardos, carregaram nas costas e desceram o monte. Enquanto desciam, o céu ficou vermelho e nuvens coloridas aproximaram o monte cautelosamente. Um bando de aves cruzaram o céu piando deseperadamente e de súbito, uma trovoada ensurdecedora rasgou o céu quatro vezes e os homens que desciam o monte desapareceram misteriosamente. A aldeia ficou apavorada. No monte uma nuvem vermelha cobriu o cume durante algum momento.

Dias depois, no monte passaram a acontecer coisas estranhas e de arrepiar os cabelos. Ao anoitecer ouvia-se gritos fortes de homens clamando deseperadamente por um socorro. Ouvia-se também sons de correntes metálicas e chicotadas. Meses depois, seres estranhos e acorrentados nos pés e braços desciam da montanha no meio das noites enluaradas e faziam passeatas na povoação semeando terror e mal estar nos aldeões.

Após um trabalho árduo de expulsão de espiritos perversos e protecção da povoação por meio da magia negra, a vida voltou à normalidade.

No entanto, passadas duas gerações fenómenos estranhos voltaram a manifestar-se na montanha. Nas manhãs no cume do monte eram avistadas roupas brancas lavadas recentemente e estendidas nos ramais dos arbustos próximos à gruta. Quando chovesse as roupas estendidas desapareciam misteriosamente voltando a se avistar assim que precipitação cessasse. Nas noites o cume era iluminado por enorme linguas de fogo que se estinguiam ao alvorecer. Entretanto, o local foi proibido e os fenómenos estranhos e arrepiantes continuaram até os dias que correm.
- Allman Ndyoko, Moçambique, 17/11/2009.

Glossário:
Lutandove – Cama composta de base de estacas e atravessada com cordas tecidas compalha;
Nkulungwa – Chefe da povoação;
Swahil – Lingua falada na Tanzania;
Mani – Ramais de árvores abatidos na abertura de machambas;
Vanamuengùa – Linhagem Namuengùa.

12/06/09

Contos E Poesias do Índico - HUVILO



(Clique na imagem para ampliar. Gravura fictícia formada por imagens livres recolhidas na net)

Corria o ano de 1840. Nas terras do velho Mbavala, o rei makonde, o sol caia vermelho colorindo o manto verde da floresta. Um grande grupo de guerreiros makondes de troncos nus e com as partes intimas cobertas de pedaços de pano encardido, adquirido nos comerciantes árabes e aventureiros swahil, acompanhavam atentamente, no terreiro da povoação, o discurso contagiante do rei Mbavala. Enquanto discursava, corria nas suas terras, de boca em boca, a surpreendente notícia de aproximação de um grupo Nguni que raptava homens e mulheres e cobrava coersivamente tributos às populações das povoações que ia atacando enquanto avançava em direcção ao extremo norte do actual território de Moçambique. O grupo pertencia a um outro grande grupo de guerreiros Nguni proveniente de Zwangendaba que, por volta de 1837, estivera no vale do Zambeze e em zonas limítrofes semeando terrores entre populações endefesas e mais tarde atravessou o Zambeze, perto de Cachomba, tendo uma boa parte se dirigido para Tambara e outra para o norte atraído pelas notícias de existência de um rendoso negócio de ouro, marfim e escravos.

- Meu povo! – Disse o ancião com uma voz trémula. – Tenham coragem para enfrentar o inimigo que vem. Ele vem de longe e carrega o ódio nos olhos, por isso, vai destruindo tudo que lhe aparece na sua frente. Os nossos mensageiros trauxeram notícias frescas dando conta da aproximação do inimigo. Os nossos irmãos que vivem nas imediações da nossa povoação começaram a chegar aterrorizados pelas notícias da chassina que inimigo vai cometendo enquanto caminha ao encontro das nossas terras...

Enquanto o velho falava para a multidão de guerreiros, pequenos grupos de velhos, mulheres e crianças aproximavam-se sorateiramente às varandas das cabanas que se achavam no limiar do terreiro ávidos de acompanhar as palavras do Mabavala.

- Protejam as crianças, os velhos e as mulheres. Defendam com bravura a nossa tribo e toda a riqueza que os nossos antepassados nos deixaram. Cantem as canções de bravura e coragem para que dignifiquemos o sangue derramado pelos guerreiros mais valentes da nossa tribo.

A multidão ululou, os guerreiros aceneram ao ar arcos e flechas e em conjunto deram o grito de coragem. Havia gente demais e o ar estava abafado. A noite entrava calma trazendo consigo estrelas e o nevoeiro. No alto, uma caravana de passáros cortou o céu num chilreio carregado de apavor. O velho calou-se. Acendeu um tabaco. Aspirou voluptosamente o fumo e, no fim, prosseguiu:

- Vigiem as fronteiras do nosso reino. Coloquem homens em todos os cantos para que o inimigo não nos surpreenda. Na hora da chegada, toquem o lipalapanda – o chifre de antílope – para que todos saibam que o inimigo está nas nossas terras.

Calou-se novamente. Levou o tabaco aos lábios. Puxou duas vezes. Tossiu vezes sem conta e voltou ao ponto onde havia interrompido.

- Meu povo! – Disse o ancião com uma voz entrecortada e trémula. – Preparem esconderijos para que as crianças, os velhos, os enfermos e as mulheres grávidas possam se proteger contra a chassina que vem. Preparem as armadilhas que os nossos antepassados nos ensinaram e ordeno para que esta noite todos guerreiros fiquem de vigia cantando e dançando para afugentar o espirito do medo. O curandeiro Namakhoi fará o trabalho que lhe compete distribuindo alguns punhados de ervas que vos protegerão de todo o mal durante a batalha. Coragem, guerreiros! Coragem...

O kôta virou-se para a corte, cruzou os braços nas costas e fez um sinal indiscrptivel para um dos anciãos mais antigo da tribo. De seguida, abandonou o terreiro dirigindo-se para a grande palhota andando com um cómico aprumo e movendo-se na noite tão cautelosamente como se estivesse a pensar em alguma coisa. Ao chegar a porta, mandou o mensageiro real reunir o chefe dos guerreiros, o curandeiro Namakhoi e outros ancião mais importantes da povoação e no fim, entrou na palhota fechando a porta nas suas costas. O kôta queria se inteirar de tudo, desde a estratégia da guerra até ao tipo da magia que o curandeiro Namakhoi pretendia usar para derrotar o inimigo. No entanto, o rufar dos tambores e o ecoar das vozes fizeram-se ouvir no terreiro. Vozes embaladas na brisa nocturna atravessavam a floresta densa do planalto dos makondes e homens fortes e valentes dançavam e cantavam canções de autores imemoráveis e perdidos na poeira do tempo cujas suas letras passavam de boca em boca e de geração em geração modificando-se constantemente de acordo com o momento. Os guerreiros dançavam em redor de uma grande fogueira contorcendo-se com abandono, simulando combates, zombando o inimigo e fumando bangui, a rainha da coragem. A medida que dançavam, as labaredas cresciam, a lenha ardia com intensidade e, de vez enquando, pequenas faúlhas saltavam no ar apagando-se rapidamente na noite fria.

O rei saiu da palhota, soltou um profundo suspiro e parado em frente da palhota pôs-se a contemplar no escuro a densa floesta, sentindo o ar frio da noite e aspirando o agradável aroma do planalto. Caminhou lentamente pelo quintal com os braços cruzados nas costas como era o hábito. Porém, deteve-se num tronco de Mula e sorriu consigo mesmo animando a sua face tatuada e dominada de profundos sulcos. O kôta recordava-se com saudade a sua juventude, principalmente, na época em que com bravura enfrentava gente de outras tribos que caçavam mulheres makondes nas machambas e riachos, afim de vende-las como escravas aos comerciantes árabes e aventureiros swahil. Fechou os olhos como se quisesse trazer de volta aqueles momentos e depois, deu meia volta e encaminhou-se novamente a palhota movendo-se com um aprumo forçado e cómico, típico da idade.

Já a madrugada, um jovem, que o chefe dos guerreiros escalara para guarnecer as imediações da povoação, irrompeu no terreiro correndo apavorado e vomitando sangue coagulado. Os guerreiros Nguni haviam lhe mutilado a lingua e obrigado a se dirigir a povoação afim de anunciar a sua chegada. O tam-tam dos tambores cessou imediatamente; Dois guerreiros dirigiram-se a palhota real, anunciaram ao rei o sucedido e voltaram novamente ao terreiro, onde os outros guerreiros haviam já abandonado e tomado a posição no limiar da floresta e nos ramos das árvores que se espalhavam nas redondezas da povoação. O rei e a corte fugiram para a floresta, onde foram escondido num abrigo preparado para tal. De súbito, a povoação ficou silenciosa e quando o sol ia se erguendo lentamente e a queimar, pouco a pouco, o orvalho no capim e nos arbustos ouviu-se um forte ulular e um grande grupo de guerreiros Nguni vestidos de peles e munidos de lanças e escudos de peles de animais bravios irrompeu o centro da povoação, pilhando mantimentos e animais domêsticos, quebrando potes e outros objectos de barro, e, quando ia incendiar as palhotas, os guerreiros makondes lançaram-se contra o inimigo dirigindo-lhe flechas envenenadas com ervas selvagens. A batalha levou muito tempo e, usando uma táctica de guerra desconhecida entre os makondes, os guerreiros Nguni infringiram pesadas derrotas aos guerreiros do rei Mbavala. Os prisioneiros de guerra foram severamente humilhados e quase metade da população foi escoraçada numa louca perseguição até às margens do rio Rovuma, onde atravessando a nado e numa visível situação de desespero refugiaram-se para as terras do Tanganhica, rei dos Massai, no actual território da República da Tanzania. Um outro grupo de Makondes liderado pelo o rei deposto exilou-se nas terras do Mataca, o rei ajaua, na actual província do Niassa.

Entretanto, meses depois guerreiros makondes apoiados por homens valentes e corajosos da tribo ajaua expulsaram os invasores tendo-lhes perseguido até às terras mais distantes, em direcção ao centro do actual território de Moçambique . Passados alguns dias, o rei Mbavala e a sua corte regressaram do exílio acompanhado do rei Mataca. Porém, os que haviam atravessado o Rovuma jamais voltaram e por lá criaram a comunidade dos makondes da Tanzania. Nisto, alguns dias depois, houve uma grande festa na povoação que durou uma semana comendo-se carne caçada no interior da floresta, bebendo-se diversas bebidas tradicionais, dançando-se ao som dos tambores e assistindo-se diversas sessões de mapico. Como gratidão dos feitos heróicos dos guerreiros ajaua demonstrados no momento da expulsão e perseguição dos invasores, o rei Mataca recebeu de presente, do seu homólogo Mbavala, uma bela donzela para casar, uma enorme estátua de pau-preto com a sua figura «estampada» no tronco e teve de volta meia centena de mulheres da sua tribo que serviam de escravas nas residências oficiais dos membros da corte dos Makondes. Para além deste acto, houve uma cerimónia tradicional de firmamente de amizade entre as duas tribos, onde os curandeiros de ambos os lados foram convidados a oferecerem os seus préstimos por forma a abençoar aquela amizade que nascia e a garantir por via mágica a sua renovação de geração em geração até ao mais infinito.

No último dia da estadia do rei Ajaua nas terra dos Makondes, o sol nasceu muito quente e os seus raios brilhavam intesamente resplandescendo manjestosamente sobre o tapete verde da floresta. Um grupo de flamingos sobrevoou silencioso a povoação e, no fim, aterrou numa pequena lagoa que se achava no extremo sul da palhota do rei Mbavala. Um grupo de crianças nuas e desnutridas brincava debaixo do sol em frente da palhota do chefe dos guerreiros Makondes e dois cães vadios atravessaram o terreiro perseguindo-se numa empolgante brincadeira. Dois guerreiros ajaua munidos de lanças afastaram-se repentinamente da porta da quarta palhota real. A porta abriu-se e o velho Mataca saiu seguido pela rapariga oferecida pelo seu homólogo Makonde. De olhos cerrados, o rei aspirou o ar frio do planalto, lançou um olhar apreciador ao seu presente e caminhou para o terreiro, onde a sua corte e os donos da terra o esperavam para a despedida. Ao chegar, foi servido um acento no alpêndre improvisado para a despedida. Pouco tempo depois, o kôta Mbavala ergueu-se e discursou para o seu povo agradecendo o apoio dos Ajaua e pedindo às duas tribos para que valorizassem a amizade conquistada contando a sua história às novas gerações. Já perto do fim do discurso, a sua voz ficou demasiadamente trémula e, nesse momento, foi interrompido por um seu funcionário que o encaminhou ao acento. Quando ia se sentar, o chefe dos guerreiros quis apoia-lo, mas o ancião apartou-o com os braços fazendo um gesto de protesto de quem diz não sou tão velho para precisar de apoio para se acomodar. De seguida, o som dos batuques irrompeu o espaço reservado para a despedida e um grupo de dançarinos começou a dançar no meio da roda humana que assistia ao espectâculo rindo e cantando. Ao cessar o tam-tam dos tambores, o kôta Mataca fez um breve discurso agradecendo a hospitalidade, os presentes oferecidos e a libertação das mulheres da sua tribo feitas escravas muito antes da invasão Nguni. No fim, prometeu aos Makondes retribuir o gesto da devolução das escravas, defendendo que já não havia mais razões para as duas tribos manterem a prática de captura de mulheres das duas tribos para fins de escravatura.

O rei foi interrompido por uns aplausos que soaram de forma entusiástica. Contudo, quando os aplausos desvaneceram, o kôta retomou o discurso agradecendo vezes sem conta tudo quanto o povo Makonde havia lhe proporcionado. Dali, as duas cortes abandonaram o terreiro enquanto o rufar dos tambores se faziam sentir novamente e encaminharam-se na saída da povoação. Ao aproximar as paliçadas que circundavam a povoação, protegendo os habitantes contra os animais bravios, os dois reis apertaram-se as mãos efusivamente em sinal de despedida final e o kôta Ajaua deu meia volta e começou a caminhar juntamente com a sua corte e os seus guerreiros escoltando-o em todos os lados. O velho Mbavala não tinha ainda voltado para a povoação e se encontrava petrificado no sitio onde havia se despedido do amigo Ajaua, olhando-o de longe enquanto desaparecia por entre árvores frondosas e arbustos de meia altura que emergiam quase por toda a floresta. Quando os visitantes desapareceram, por completo, deixando a sua atrás vozes entrecortadas e trazidas pelo o vento, o velho encaminhou-se ao terreiro, onde pôs-se a assistir mais uma sessão de mapico até ao entardecer.

Passados muitos anos, a amizade das duas tribos ainda continua manifestando-se sob forma de huvilo e a sua genese corre de boca em boca entre as novas gerações de Makondes e Ajauas.
- Allman Ndioko, Moçambique, 17/05/2005

VOCABULÁRIO:
Huvilo - Uma espécie de amizade carregado de aspectos cómicos e menos sérios;
Makondes Grupo étnico de Moçambique localizado no planalto de Mueda, província de Cabo Delgado. Note-se que existe na República da Tanzania outro grupo de Makondes conhecido por Makondes da Tanzania e que é originário do actual planalto de Mueda.
Ajauas - Grupo étnico de Moçambique localizado no planalto do Niassa, no norte do país.
MbavalaRei do povo Makonde.
Mataca Rei do povo Ajaua.
Kôta Pessoa mais velha que pode ser pai, mãe, avô, tio, etc.
Bangui Soruma ou melhor cannabis sativa;
Mula Árvore frondosa e muito alta frequente no planalto de Mueda. Entre os Makondes de Moçambique a Mula servia, desde os tempos remotos até altura da independência nacional, para sinalizar campas nas grandes florestas do planalto;
Lipalapanda – Chifre de antílope, normalmente, usado para anunciar uma festa ou animar uma sessão cultural;
N’tela Erva medicinal que serve para curar alguma infermidade ou proteger qualquer mal. Normalmente tem tido efeitos mágicos.


10/24/07

O TURBILHÃO LENDÁRIO - Uma prosa acontecida em Pemba !

(Aqui, imagem de autoria do artista gráfico italiano Piero "Ingonane" que residiu em Pemba de 1989 a 1999)
Nada de melhor nos terá acontecido, naquele ano, do que as nossas férias na baia de Pemba, no norte do país.
Eu e o mano Beto haviamos passado de classe e o kôta prometera, logo nos primeiros dias do ano, umas férias na casa do avô Omar, em Paquitequete .
Assim que ficamos de férias na escola partimos de Maputo para Pemba, de autocarro, na companhia da tia Awa que viera nos buscar à capital.
A viagem fora cansativa mas, ao mesmo tempo, divertida, desde o terminal do TSL, na Avenida das FPLM , até ao controle de Pemba, no bairro de Mahate.
Dali partimos de táxi com destino a casa do avô Omar, no bairro de Paquite, como os pembenses lhe chamam, onde ficariamos quinze dias a gozarmos as férias por entre o marulhar das ondas do Índico.
Enquanto nos dirigíamos para a cidade, que distava uns quilómetros, o taxista ia-nos amostrando a paisagem dominada, principalmente, por embondeiros e algumas árvores menos frondosas e arbustos vulgares.
Do Alto-Gingone, um bairro periférico do aeroporto local, vimos a “esteira” azul do mar deitada manjestosamente ao longo da baia, parecendo um enorme anzol feito de água.
Mas, para o lado direito da estrada que nos conduzia, emergia uma nova cidade próxima da faixa de areia branca que ladeia quase toda a cidade: era a famosa praia do Wimbe, um enorme potencial turístico da região norte do país.
No entanto, pouco tempo depois desembocámos na cidade e passámos pela artéria principal do bairro de cimento.
Enquanto o carro deslizava na estrada asfaltada, vimos de longe os bairros de Cariacó, Natite e Ingonane e, mais tarde, rumamos pela marginal até ao bairro costeiro de Paquitequete, na zona de Kumilamba, onde o táxi parou em frente da casa de um dos vizinhos do avô; descemos, caminhando depois por uma rua estreita que nos levou direitos ao destino.
Ao chegarmos, fomos recebidos com alegria e, dos familiares e vizinhos, recebemos apertos efusivos de mão, à moda dos makimuanes.
Sentado na esteira de palha, na companhia do mano Beto e de outros garotos curiosos que se aproximaram ao chegarmos, pus-me a contemplar a casa que era feita de pau-a-pique, rebocada com matope e coberta de macuti .
O quintal era de bambú suportado por diversas estacas sólidas provenientes de Ulonto, lá na outra margem da cidade.
Depois de todo o cerimonial que um visitante merece, não aguentei mais: ergui-me da esteira e fui para a frente da casa, onde fiquei olhando para o mar azul e ouvindo o som das ondas misturado com o som dos búzios.
Durante muito tempo fiquei ali imóvel e boquiaberto, vendo ao longe pequenas embarcações à vela, pescadores puxando redes carregadas de peixe, barcos a motor transportando passageiros para o Ibo, Mocimboa da Praia, Quirimbas e outros pontos da Província.
Depois de um tempo, deitei o olhar para a margem onde me encontrava e fiquei apreciando a beleza das ondas e assistindo ao espectáculo dos carangueijos que, espantados pelo marulhar das ondas, fugiam em debandada ao encontro dos seus esconderijos que raramente falhavam.
Entretanto, a minha tranquilidade naquele sítio não tardou a chegar ao fim.
Um garoto aproximou-se interrompendo a minha concentração na observação da natureza e, com uma ponta de timidez, informou-me:
- Precisam de ti.
- De mim? – Interroguei-o sem desviar o olhar do mar.
- Sim.
- Aonde?
- Lá no quintal.
- E quem precisa de mim? – Quis eu saber, olhando os seus olhos.
- Avô Omar. – Replicou ele, desviando o olhar.
- Voltou?
- Sim. – Sorriu. – Faz um tempo.
Saí dali e fui até ao quintal. “escoltado” pelo miúdo, que não parava de me lançar olhares furtivos, e, ao chegar, saudei o avô e fiquei conversando com ele desde o rpincípio da tarde até ao anoitecer.
Passados alguns dias e após termos pedido autorização ao avô, eu e mano Beto, e outros garotos do bairro, fomos à praia brincar.
Era sábado; a praia estava repleta de banhista e os pescadores ainda não tinham voltado do mar.
Ficámos na margem apanhando búzios, construíndo castelos de areia, perseguindo caranguejos, brincando com garrafas-azuis e ajudando os pescadores a puxar as redes e a tirar da água os pequenos barcos à vela.
Foi neste dia que ouvi dos nossos novos amigos a lenda do turbilhão Nunumuana, que fica a algumas milhas da Baía de Pemba.
Fiquei curioso e ao mesmo tempo cheio de medo.
Naquele dia não saí de noite para ver o mar sob o luar e muito menos para contar quantos segundos passam entre o acender alternado dos faróis das rochas de Ingonane e Ulonto.
Um certo dia, estando eu na companhia do avô Omar a pescar na zona portuária da baía, interroguei-o acerca da veracidade da misteriosa lenda que corria de boca em boca entre os garotos pembenses.
Ele garantiu-me a veracidade da história e prometeu contar-me tudo, noutro dia, porque a história era longa e complicada.
Os dias foram passando, um atrás do outro, e todas as noites ouvíamos histórias diversas contadas pelo avô, mas, curiosamente, o kôta não se lembrava de contar a história do turbilhão.
Nisto, numa certa noite de luar, décimo terceiro dia da nossa estada em Pemba, a curiosidade obrigou-me a pressioná-lo a contar a história prometida, pelo que o velho me respondeu:
- Tudo bem. Eu vou contar, já que insistes tanto.
Acendeu um tabaco, fumou em silêncio com o olhar perdido num ponto indefinido, como se estivesse a pensar em algo guardado nas profundezas da sua memória, sorriu perceptívelmente fazendo animar a sua face sulcada de profundas rugas e, por fim, começou a narrar a história.
- Reza a lenda que foi há muitos anos, muitos anos mesmo – Repetiu com firmeza, a ponto de acordar o mano Beto que já apanhara uma soneca. – que um barco transportando uma terrível curandeira e seus ajudantes naufragou, numa zona a algumas milhas da nossa costa, e o naufrágio matou todos os ocupantes.
- Ninguém se salvou? – Quis eu saber, curioso.
- Ninguém! – Disse, meneando a cabeça e pegando, ao lado do tronco onde estava sentado, numa “ exportação ” de nipa , que de seguida levou aos lábios, e bebeu um golo pelo gargalo.
Depois de pousar a garrafa no chão, avivou a fogueira que ardia no centro da roda humana, feita de miúdos do bairro ávidos de ouvir histórias antigas transmitidas oralmente de geração em geração, e em seguida continuou:
- Daí, os náufragos transformaram-se em fantasmas ferozes, a ponto de consiguirem, com a ajuda de um turbilhão acompanhado de ventos tempestuosos, imobilizar um navio enorme. A partir daquele dia, todos os peixes da baía passaram a ser deles e, quem pescasse à noite, era frequente deparar-se com fantasmas recolhendo redes e libertando peixes das redes e dos anzóis. Foi nessa época que o peixe, o alimento principal dos nativos, começou a escassear e os pescadores passaram a morrer em massa, vítimas de misteriosos ventos fortes.
Estremeci, escutei o som do mar e olhei em redor do quintal iluminado pela lua que derramava a sua luz sobre todos os bairros da cidade.
Depois, apurei os ouvidos e fiquei ouvindo a história que o avô contava, gesticulando e falando num tom de voz carregado de uma miscelânia de emoção e terror.
- Então, os nativos da baía reuniram-se para resolver o problema e, para tal, chamaram o curandeiro Amisse que, com a ajuda dos ancestrais, conseguiu falar com a curandeira náufraga. Durante o diálogo ela proibiu a pesca nocturna, o uso da rede de malha fina, e o derramamento de líquidos estranhos nas águas e, além disto, ordenou que todos os barcos que passassem pela zona do turbilhão atirassem para o mar alimentos diversos, de preferência carne fresca, como forma de pagar tributo pelos peixes apanhados na baía. Estes alimentos serviam para alimentar os peixes nas profundezas do mar, para melhor se reproduzirem e crescerem saudáveis.
O kôta tossiu três vezes interrompendo a locução; bebeu um trago da sua “primeirinha”, e prosseguiu:
- Quem não obedecesse ao que Nunumuana dissera, uma gigantesca massa de água que se revolve rapidamente cobri-lo-ia imediatamente e, se se tratasse de um barco naufragaria, e os seus ocupantes transformar-se-iam em fantasmas imortais e, depois, ocupar-se-iam de vigiar o mar e impôr a ordem quando se julgasse conveniente.
O velho fez uma pausa.
Puxou do tabaco enrolado num pedaço de papel de caqui, e aspirou voluptosamente o fumo que invadiu temporariamente o espaço da roda feito pelos miúdos que o escutavam com paciência e manifesto interesse.
Depois, enterrou na areia a ponta acesa do cigarro e logo voltou ao fio da história:
- Na verdade, após a cerimónia com o curandeiro, toda a gente passou a respeitar e a cumprir rigorosamente o que Nunumuana dissera e, em consequência disso, os peixes multiplicaram-se na baía, as mortes dos pescadores diminuíram drasticamente, e os nativos e outros habitantes passaram a viver felizes.
O Kôta calou-se e fez-se um silêncio absoluto durante o qual pude ouvi-lo a ressonar como um contrabaixo desafinado.
Olhei para os garotos à minha volta, vi que ainda se achavam atentos como mochos e, por fim, tossi propositadamente.
O velho assustou-se, acendeu novamente o tabaco que havia enterrado na areia e libertou uma grande fumaça que o fez tossir vezes sem conta.
Após um tempo bebeu de uma só vez a sua “ primeirinha ”, entoou em Kimuane uma canção sobre a lenda e, por fim, ergueu-se e começou a dançar enquanto o acompanhavamos em côro, batendo palmas.
Dois dias depois, eu e o mano Beto tomámos o autocarro de volta para Maputo, onde chegámos ao terceiro dia.
Passada uma semana, um impulso não me deixava e, consequentemente, impeliu-me a escrever estas linhas como forma de imortalizar a lenda e dar a conhecer a toda gente como os pembenses passaram a valorizar e a preservar o mar e os seus recursos.
O Turbilhão Lendário por Francisco Absalão - In Blocos OnLine
  • Biografia de Francisco Absalão segundo o "Blocos On Line" - O nome artístico é: Allman Ndyoko. Nasceu em 11 de Abril de 1977 em Pemba, província de Cabo Delgado -Moçambique. Residência actual: Maputo.

11/14/09

A bandeira Lusitana



O sol caia lentamente no poente colorindo o ambiente de tom alaranjado, quando inesperadamente um emissário branco e um homem makonde desembocaram na povoação de Mbavala portando uma mensagem do major Neutel de Abreu, acampado à escassos metros da entrada do planalto makonde com um efectivo militar de mais de duas centenas de homens brancos. Os dois estranhos atravessaram a aldeia em diagonal em direcção ao terreiro onde ficava a casa do nkulungwa Mbavala e outros parentes seus com laços consanguíneo. Enquanto caminhavam entre as casas da povoação o homem branco ia virando atracção, sendo, de quando em vez, apreciado com excessiva curiosidade como se estivesse em exposição. Quando chegaram a casa do Mbavala foram recebidos pelos súbditos do ancião sem emoção, pois meses anteriores haviam corrido em todo planalto notícias de aproximação de um contigente militar de homens brancos armados até aos dentes e que haviam subjugado os makondes da zona leste dos contrafortes do planalto. Segundo as mesmas notícias, grupos de infantaria e artilharia haviam respondido barbaramente alguns ataques perpetrado por nativos inconformados com a presença dos brancos que até já impunham novos valores que contrariavam, de certa medida, as expectativas dos diversos chefes das linhagens que tinham em seu poder o controlo das rotas do comércio clandestino praticado por swahilis, árabes do Zanzibar, povos do Madagáscar e alguns nativos.

Entretanto, os visitantes foram servidos uma cama de lutandove para se acomodarem e um jovem de estatura baixa, postura forte, dentes afiados e rosto tatuado afastou-se dali e entrou numa das casas que se encontrava no enorme quintal do nkulungwa Mbavala. Pouco tempo depois, o jovem voltou a juntar-se a outros três súbditos que encontravam-se sentados no beiral de uma das casas que aparentava ser a principal. Volvido algum momento, o nkulungwa atravessou a porta e marchou lentamente ao encontro dos visitantes.

- karibo, karibo. - Sejam bem-vindos. – Disse Mbavala acomodando-se numa das camas postas ali para si. De de seguida, quis saber. – O que vos traz nestas bandas?

- O major Neutel de Abreu manda informar que dentro de dias chegará um contingente militar que virá instaurar uma nova vida no planalto e pede a lealdade de todos chefes, em especial do senhor. – Disse o emissário de viva voz e acrescentou. – Qualquer tentativa de sublevação será esmagada impiedosamente pelas nossas forças e os chefes de tais sublevação serão presos e deportados para longe dos seus súbditos.

Mbavala manteve-se calado durante todo tempo em que o homem branco esteve a discursar e depois manteve-se atento ao interprete que era o homem negro que vinha na companhia do emissário. Entretanto, após a interpretação do discurso que foi feita de forma quase incoerente pelo homem makonde, que a avaliar o seu conhecimento rudimentar da lingua portuguesa não havia dúvidas que o sujeito aprendera a lingua do Camões com os padres católicos em Porto Amélia, terra até então desconhecida pela maioria dos makondes, nkulungwa Mbavala ergueu-se apoiando-se com uma bengala de pau-preto esculpido com esmero. Cruzou um braço nas costas e passeou lentamente pelo quintal enquanto o branco e o interprete permaneciam sentados aguardando o seu pronunciamento. O Mbavala estava perturbado, mas fez um esforço para não demonstrar aos visitantes. No entanto, enquanto passeava pelo quintal com a mente a fervilhar de tanto procurar um coerente pronunciamento face à afronta do major Neutel de Abreu, baixou os olhos e volvido algum momento, dirigiu-se ao emissário erguendo os ombros orgulhosamente e levantando o queixo com altivez e ar de desafio.

- Diga ao seu chefe que recebi a mensagem. – Olhou muito atentamente nos olhos do branco e prosseguiu. – Amanhã farei deligências para informar aos outros vakulungwa e dentro de sete dias receberá a nossa resposta.

- De que forma o major terá a tal resposta? – Quis saber o emissário com uma ponta de incredulidade.

Mbavala sentou-se entregando a bengala um dos súbditos. Humedeceu os lábios com a lingua e pensativamente, respondeu:

- Será muito simples. O nosso silêncio no sétimo dia significará o nosso consentimento à nova autoridade e a nossa presença no vosso acampamento será o sinónimo de recusa à tal dita autoridade branca.

- Muito bem. – Disse o branco torcendo o nariz. – As tuas palavras serão transmitidas ao major.

Mbavala não pronunciou uma palavra se quer e nisto, o emissário e seu acompanhante despediram-se do velho e sairam da aldeia admirando a grandeza e beleza da povoação e o prestígio que gozava o nkulungwa que há pouco tempo haviam tido a oportunidade de o conhecerem. Ao atravessarem o cerco da aldeia feita de troncos enormes de árvores seculares para impedir a entrada de animais ferozes e gente intrusa, os dois homens embrenharam-se pela floresta adentro deixando-se de avistar-se, devido as trevas que já começavam a cobrir o ambiente.

Já na povoação, Mbavala reuniu imediatamente os anciãos que compunham o conselho da aldeia, deu a conhecer a mensagem do major Neutel e rapidamente foram tomadas as posições cuja a realização dependia muito do pronunciamento dos demais vakulungwa das povoações de todo planalto makonde, incluindo os chefes do longinquo kundonde. Assim, uma vez que o nkulungwa Mbavala gozava de uma boa reputação entre os makondes do planalto e era o mais velho de todos vakulungwa e sua povoação era a mais expressiva do ponto de vista de grandeza e do número de aldeões, três dias depois houve na sua aldeia o grande encontro dos régulos makondes. Estavam no encontro os régulos Mbavala e seu súbdito Chilavi, Mbomela, Mbalale, Likama, Negomano, Machangano, Lidimo, Chipungo, Neengo, Nkapoca, Ntchingama, Kavanga, Nkwemba e Nachomwe.

O encontro começou, no terreiro da aldeia, no meio da manhã de um dia calmo e de céu coberto de nuvens brancas e cinzentas. Após um longo discurso do Mbavala explicando a razões que haviam norteado a convocação daquela historica reunião, os convidados foram chamados a tomar da palavra. Nisto, o nkulungwa Mbomela ergueu-se e com a voz fremente de emoção, disse:

- Caros irmãos! Nos tempos passados os nossos ancestrais resistiram a qualquer tipo de subjugação de outros povos. Hoje somos afrontados nas bárbas das nossas terras e da nossa gente por um povo branco e desconhecido. Face a esta infame provocação proponho ao povo makonde à resistência às intenções destes forasteiros que pretendem tomar de nós, de forma astuta, as nossas terras, o nosso povo obediente e respeitoso, o nosso prestígio secular, as nossas relações comerciais estabelecidas há séculos com povos de terras distantes e tudo o que é nosso e belo.

Mbomela sentou-se. O ancião havia se emocionado demasiadamente e a pressão arterial subira vertiginosamente. No entanto, Mbalale levantou-se e dirigiu-se aos presente de forma vigorosa:

- Estas terras e esta gente que nelas vive é nossa por herança. – Fez uma pausa para ordenar o seu raciocínio e logo voltou ao ponto onde havia interrompido. – Os nossos ancestrais deram-nos de presente pelo amor que tinham por nós, pela confiança e certeza de que eramos capazes de conduzir os destinos da nossa gente num clima de paz e harmonia social. Por todas estas e outras razões eu, Mbalale, nkulungwa de kunambalale, discordo categoricamente qualquer presença nas nossas terras de qualquer povo com intenções de subjugar-nos.

Nkapoca ergueu-se assim que Mbalale acomodou-se tremendo de extrema velhice. Muito calmamente o ancião disse:

- Estou sem palavras! As palavras que havia reservado foram-me tiradas pelos ilustres que por aqui falaram de forma sábia. Assim, sem mais demora digo: como os brancos querem guerra, então guerra deverão ter. Eu estou disposto a sacrificar gente da minha povoação em número que se julgar conveniente... Esta terra é nossa e não concordo que sejamos arrancados sem mais e nem menos!

No entanto, muitos vakulungwa discursaram naquela manhã histórica e todos eram favoráveis à afronta ao inimigo. Nisto, Mbavala pediu a palavra e ergueu-se vagarosamente. De seguida, olhou aos seus compatriotas e de forma calma confessou:

- Estou extremamente admirado pela bravura de todos vós. – Baixou os olhos, levou uma mãos nas costas e continuou erguendo os olhos. – Contudo, confesso-vos que estou com medo. Esses homens brancos fizeram chacina na zona leste do nosso planalto tudo porque, os nossos irmãos se rebelaram. Se tais irmãos tivessem ponderado a sua capacidade, de ponto de vista de meios de combate, se calhar teriam agido de maneira diferente ao invés de se entregarem ao fogo como se tratasse de carne de canhão.

Houve um murmúrio ensurdecedor, mas logo o velho Mbavala soube refrea-lo usando a sua carismática diplomacia.

- Esses homens brancos trazem armas enormes que cospem fogo mortífero e uma infinidade de armas ligeiras extremamente potentes mais que as nossas de fabrico caseiro ou adquiridas junto dos comerciantes estrangeiros. Por isso, eu não gostaria de ver os nossos jovens a morrer por uma guerra possível de evitar.

Houve um grande protesto contra o discurso do ancião, chegando alguns a chama-lo abertamente de cobarde. Contudo, Mbavala, continuou:

- Pelo que ouvi do emissário, os brancos pretendem trazer outro dinamismo na nossa sociedade preservando as estruturas tradicionais, promovendo o convívio pluri-étnico, respeitando a natureza da nossa organização social e os diferentes valores humanos da nossa sociedade. O que não acho ser má ideia!

Mbavala calou-se. O gesto foi imitado pelos demais participantes do encontro. Depois, o velho prosseguiu o discurso procurando mostrar aos demais vakulungwa a sua visão pacifista.

- Por todas estas razões, eu Mbavala, sou de opinião que não afrontemos o inimigo através de uma guerra, mas sim deixemos que venha conviver connosco através de um processo contínuo de aprendizagem mútua e assim evitaremos o derramamento de sangue.

O velho sentou-se e o terreiro foi invadido por uma onda pacífica de protestos. Entretanto, Ntchingama pediu aos demais para que se mantessem calado e depois, em voz baixa e tom solene, como de costume, disse:

- O nosso irmão Mbavala pede-nos que aceitemos os brancos que veem, tudo para que a nossa zona mantenha a paz e harmonia social que sempre se caracterizou. Cá por mim, concordo plenamente com a visão e expectativa do nosso irmão. Pode ser que a maioria de nós esteja errado da forma como encaramos esta situação e também é normal que os nossos espiritos exaltem-se demasiadamente. Contudo, devemos reconhecer que o inimigo tem um poder bélico e militar mais do que nós. Assim sendo e, na minha opinião, qualquer tentativa de resposta por meio de guerra o nosso povo sairá em desvantagem, pois trata-se de uma situação que nenhum de nós preveu. – Fez uma pausa para ordenar o seu raciocínio e continuou. – Se formos a ver a nossa capacidade de resposta veremos que é extremamente insuficiente porque as nossas previsões não iam mais do que uma possível guerra com uma tribo distante e gente com recursos similares aos nossos. Analisando desta forma a situação, sou obrigado pela circunstância a concordar com o ponto de vista do nosso irmão Mbavala. Não à guerra! Vamos evitar o derramamento de sangue no seio do nosso povo. Vamos aceitar conviver com o estranho e no fim de tudo, independentemente das suas atitudes futuras, verão que sairemos a ganhar e as gerações futuras saberão compreender a nossa posição e valorizarão o nosso sacrifício.

Dito isto sentou-se. O terreiro ficou silencioso durante alguns segundos e as intervenções que seguiram subscreveram taxativamente à intervenção do Ntchingama. Assim, passado algum momento, a reunião chegou ao fim e os régulos voltaram às suas povoações.

Ao entardecer aquele dia, o céu ficou sinistro e rugiu, vezes sem conta, como se lá lançassem dezenas de tambores vazios. Trovoadas ensurdecedoras e relâmpagos aparentemente mortíferos coriscaram os céus emitindo faíscas assustadoras que formando alternadamente ângulos salientes e reentrantes acabavam se lançando rapidamente no coração da floresta. Este espectáculo natural cheio de luz e cores durou muito tempo até que ao principiar a noite uma chuva assustadora despenhou do céu ruidoso e luminoso. Choveu torrencialmente toda noite criando cursos de água que ameaçavam derrubar palhotas erguidas nos caminhos da água e as que tinham capim de cobertura reduzido. Ao alvorecer, a chuva parou e um belo dia nasceu com o céu azul e claro.

Uma semana depois, demanhã, o contingente militar português entrou no planalto makonde sem resistência e sob o olhar indiferente do Mbavala e apreciação curiosa dos aldeões. Naquela manhã calma e clara, o contingente militar marchou orgulhoso no meio da povoação exibindo, sobretudo, a sua superioridade militar e bélica e no coração da actual vila de Mueda, próximo da fonte Mweda, acampou içando de seguida a bandeira lusitana, numa acção clara de demonstração da mudança do curso da história do povo nativo.
- Allman Ndyoko, Moçambique, 04/03/2008

GLOSSÁRIO:
Lutandove – cama composta de base de estacas e atravessada com cordas tecidas com palha;
Karibo – Bem-vindo; Servido;
Kunambalale – Povoação de Mbalale;
Vakulungwa – O plural de nkulungwa.