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7/07/10

O REFORMADO

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Silveira, durante toda a sua vida de trabalhador bancário, nunca recusou um serviço ou um lugar. Assim, não se importou de mudar de terra, vendo a família só aos fins-de-semana, para ocupar a gerência de um Balcão de província. Fez a sua carreira com esforço, sem contabilizar horários, nunca discutindo tarefas, embora, muitas vezes, se achasse mal recompensado. Não se queixava. Ele é que escolhera.

Desmobilizado, quando do regresso de Angola, ainda voltou a Direito para fazer algumas cadeiras ao abrigo do estatuto dos ex-militares. Depois de um recomeço fulgurante que lhe consentiu os maiores entusiasmos, desistiu ao segundo chumbo de Obrigações, incapaz de suprir a ausência das aulas e dos pormenores que só a frequência daquelas dariam já que, não referidas nas sebentas, surpreendia-se sempre com o tamanho da sua ignorância de assuntos que nunca ouvira ou lera. Confundia-o, também, a bagunça contestatária, as constantes alterações de datas que o obrigavam, em vão, a faltar ao emprego e que a sua rotina militar de trinta e nove meses, feita de obediência indiscutível encarava mal. Aquilo já não lhe dizia respeito... Vira morrer e matara; estava cansado para, agora, se meter em guerras de berros. Soavam-lhe a arrufos de bem instalados, heroísmos intelectualizados, até ofensivos, comparados com os meses que vivera nos matos da Lunda.

Após umas experiências avulsas em Editoras e Agências de Publicidade, candidatou-se a vários Bancos que, naquela época, era um emprego seguro e com estirpe social. O primeiro a chamá-lo para os testes psicotécnicos admitiu-o, num fim de Verão, ainda o 25 de Abril estava longe. Profissionalmente estável e eufórico pela febre bolsista da Primavera Marcelista, Silveira ganhou dinheiro e o coração da Celeste que, numa Seguradora, começara a juntar para o bolo do casamento. Se algumas dúvidas ainda lhe restavam, elas dissiparam-se: perdia, definitivamente, a esperança de acabar o Curso interrompido pela convocatória militar.

Nascidos dois filhos com intervalo de um ano como se tivessem pressa de despachar a descendência, os anos passaram-se no desvelo da sua criação que culminou com as formaturas no Curso que ele nunca terminaria. Os filhos vingaram-no.

Quando apareceram os netos, fizeram contas à vida e, vendo-a mais curta, decidiram que era a altura de lhes dedicar a segunda paternidade. A Celeste, aproveitando a maré dos novos conceitos de gestão, para quem um trabalhador não passa de um dígito, antecipou a reforma para cuidar deles, em vez de os ver depositados, todas as manhãs, ainda ensonados, num qualquer infantário. Passou, então, a ser só ele a levantar-se nas madrugadas de segunda feira, com o sol ainda a dormir, de tempo espremido para a viagem até à Agência distante. Custava-lhe, no Inverno, aquela chuva enovelada na escuridão fria, sempre com o credo na boca pelo nevoeiro ou o gelo da estrada. As noites na residencial, então, sem o aconchego das suas coisas e da sua gente, eram quase irascíveis. Foram anos em que – quantas vezes! - pensou, também, reformar-se para ficar no remanso com o chilreio infantil a preencher o apartamento. Afastava a ideia, lembrando-se do seu velho Pai: «Um homem só se reforma quando morre!»

À Agência todos os dias lhe chegavam directivas a traçar objectivos de negócio. Com os outros dois colegas sempre ocupados, um na especificidade da Caixa e o outro no expediente normal, Silveira passava muitas horas no exterior a angariar novos clientes e visitando os antigos com propostas de aplicações financeiras. Nunca se retirava antes das oito, ocupado no trato da papelada administrativa empilhada no tampo da secretária e pondo a conversa em dia com a Celeste em telefonemas que, em alguns meses, lhe preocupavam o plafond autorizado. Sem pressa de sair - ninguém o esperava -, verdade se diga, contudo, que começava a sentir-se injustiçado. No Café da Vila, praticava algumas relações públicas que lhe granjeavam a simpatia do meio e a permanência de contas com bons saldos médios. Sentia mais a falta da família do que a abundância do trabalho. O vai e vem semanal enleava-o. Estava na hora de solicitar à hierarquia um regresso às origens, à certeza de sair de manhã e voltar ao fim da tarde, aquela rotina dos gestos e das vozes, o aconchego da noite com o corpo da mulher a aquecer o seu, sem fazer cálculos para o ajuste do fim de semana. Mal lhe soaram aos ouvidos, ou lhe caíram sob os olhos, os primeiros sinais de racionalização de custos, emagrecimento do pessoal, rejuvenescimento de quadros e outros quejandos na moda dos recursos humanos, passou a prestar mais atenção ao espelho para ver se as rugas o englobariam no rol dos dispensáveis. Não precisou de muito tempo - nunca dando a entendê-lo - para perceber que o seu dia estava prestes a chegar. Feitos trinta e cinco anos de serviço, excluindo mesmo o tempo a duplicar pela campanha africana, convidaram-no, entre encómios que lhe pareciam lisonjas interesseiras, se não quereria ir para o descanso. Não, ele não queria descanso, mas, continuar a trabalhar na terra onde estavam as suas companhias e posterioridades. Sentia-se credor desse desejo, justificado pela devotada dedicação profissional e pela humana justeza da sua razão. Fez ver isso às insinuações que lhe chegavam pelo telefone ou pelos convites sorridentes, com muitas batidelas nas costas, quando se deslocava à Sede, ninguém lhe garantindo a satisfação pretendida, porque «bem vê, com a reorganização em curso, muito difícil, a breve prazo, anuirmos ao seu pedido...». Sentia nessas ocasiões um adormecimento de desilusão, um «para que andei eu a sacrificar-me tanto...».

Deixou passar uns meses e negociou a reforma para o fim do Verão. Os foguetes do Ano Novo seriam o anúncio da sua despedida, amarga e revoltada. Mais que revolta, a constatação de que pouco lhe valera o vestir da camisola. Julgava-se, aos sessenta anos, amadurecido e disponível, ainda, para continuar. Estava no ponto ideal da cozedura, nem rijo nem mole, eficaz nas decisões e maleável no trato. Atingira o patamar do equilíbrio em que se é aceite pelo respeito profissional e pela experiência humana; ganhara a endurance cujo melhor retrato é o auto-domínio ao disparate, às pressões e às nervuras emocionais. Mandando-o porta fora, era como se interrompessem a história de uma vida ainda útil. Haviam-lhe comido a carne e como os ossos, irremediavelmente, já tinham prazo, antes que se quebrassem, davam-lhe o destino dos electrodomésticos fora de validade.

Apesar de tudo, nos primeiros tempos, inebriou-se na disponibilidade do tempo e da vontade. Passeou o que pôde – concretizou, finalmente, o sonho de conhecer Paris, onde passou oito dias estonteantes, regressando com a sensação de não ter saciado nem uma décima da sua curiosidade -, leu, sofregamente, os livros tantos anos adiados – até arranjou coragem para Saramago - e, em muitas soalheiras manhãs de sábado – detestava o domingo para passear – ia com os netos para o parque da cidade mostrarlhes os «patinhos no lago», fiscalizando-lhes as bicicletas com rodas de apoio. Deu-se à excentricidade culinária, especializando-se num bacalhau assado no forno que rotulou de Bacalhau à Silveira. Ao princípio, guiava-se pelas revistas do Chefe Silva que a Mulher esquecera numa gaveta, mas, depois, fiava-se na sua fantasia que recriava com especiarias que rebuscava nas prateleiras do Continente. Arranjou, contudo, algumas guerras com a Celeste, pois incomodava-se, seriamente, quando ela, feita sabichona, lhe chamava a atenção para alguns destemperos. Chegou a ir ao futebol para se certificar da diferença de quando o via pela televisão, os seus sons e tons, a histeria das claques, o bruá da multidão na eminência dos golos e o estoiro orgástico quando aqueles se concretizavam.

Estranhamente, assim como de um dia para o outro, começou a acordar mal disposto e cansado, a pensar no que iria fazer para se ocupar. Sentia-se desamparado, longe dos ruídos e dos cheiros da Agência. Faltava-lhe o imprevisto dum telefonema atribulado, suplicando-lhe pressas de financiamento; aquele poder de influenciar fundos sempre balizados nas regras estabelecidas que o escudavam de remorsos nas recusas obrigatórias.
Continua...
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro. Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

9/23/12

OS IGNORADOS

Falo-vos da África dos matos sem fim,
Dos ecos perdidos no capim,
Das picadas vermelhas mas livres,
Tão livres como a liberdade.
Em cada curva uma palmeira,
Em cada lugar uma saudade,
Em cada sorriso uma clareira
De brancura e de amizade.

Falo-vos das noites de encantamento,
Das queimadas para lá do pensamento,
Da lua a beijar a baía de Pemba,
Do batuque e das esteiras na temba
Onde o meu corpo se satisfazia
Em outro corpo que, depois, dizia:
« São cinco quinhentas, patrão! »
E eu, cá dentro, aqui onde bate o coração,
Nem sei o que sentia.
Só sei que, depois, voltava
Com mais quinhentas na mão,
Roído pelo tédio e a solidão.

Falo-vos dos poemas proibidos,
Alguns esquecidos,
Outros lembrados
E agora publicados.

Falo-vos dos loucos a berrarem no entardecer,
Das sentinelas a dispararem para a escuridão
Com o medo aos saltos, na indecisão
Da manhã que não se sabe se vai nascer.

Falo-vos dos rios em que lavei o rosto,
Matei a sede ao sol- posto,
Gritei que não queria a guerra,
Mas não desertaria da minha terra.

Falo-vos da África onde não voltarei
Para matar a fome das minhas recordações,
Abraçar os irmãos que deixei
E lamber as feridas de todas as desilusões.

Falo-vos da África dos nossos soldados,
Dos seus sorrisos e dos seus abraços,
Uns, já mortos, outros, vivos-despedaçados,
Mas, todos eles, ignorados.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima representa parte do Parque Tsavo no Quénia/África e foi recolhida no site "Viajologia-Época-Viajando com Haroldo Castro". Composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

12/27/10

O SORRISO DO PIRES - parte 2 (final)

(Clique na imagem para ampliar)

Continuação daqui (1ª. parte).

- Tá triste, alfere...

- Conheces a serra Mapé, Gabriel? Sobe tanto que até parece a Estrela do puto, que não sabes onde é. Morreu lá um amigo meu. Mataram-no quando descia, todo contente, com aqueles com quem brincara nas férias de Verão, nos terreiros dos montes ensolarados, nos campos de girassóis, entre fardos de palha, uma volúpia de luz e calor a turvar a planície, os ecos da terra ressequida a findarem no infinito, o beijo da namorada na ilusão de um destino. Era meu amigo e tinha um permanente sorriso. Deixou-me o relógio e o fio de ouro para, «se lhe acontecesse alguma coisa» eu entregar à família.

- Frelimo, alfere?

- Sim, foi a Frelimo, mas não fales, não digas coisas que não sentes, não gostava que fingisses, é melhor assim, continuamos amigos. Tu não és desta guerra. Sabes por que estou aqui? Mandaram-me e eu vim. Não discuti nem fugi. Não quero matar, mas, também, não quero morrer. Podíamos ser todos amigos se quem governa falasse, mas os rancores não se falam. Qualquer lugar é um pedaço do mundo que não merece uma morte. Tudo se reparte, até a História, a felicidade ou a ausência dela.

- Num fala assim alfere... Num entende nada...

- Entendes, entendes. E não vai demorar muito tempo para compreenderes muito mais. Só te peço é que, quando chegar a hora de interrogares o teu futuro, não te esqueças desta noite. De todas as noites em que duas raças, no intervalo do amor, se degladiaram como numa guerra civil entre filhos da mesma pátria. Nós somos filhos do mesmo Mundo, que é grande ou pequeno conforme o imaginamos. Vais-te lembrar de mim, Gabriel, e eu de ti. Os homens são todos iguais, quem serve anseia ser servido, o escravo sonha dominar escravos, o bom de hoje transformar-se-á no mau de amanhã; a liberdade é, muitas vezes, um sofisma na encenação que a representa.

- Por favor, alfere, explica melhor, assim não...

- Gabriel, fuma mais um cigarro comigo. Só tenho LM, que tanto pode querer dizer Lourenço Marques, luz do mar, luta militar, linda mulata. Ris-te? Vês como me percebes? O teu riso é como as letras que se juntam por quem busca a ferocidade ou a beleza, o parêntesis ou o fim do caminho, a sombra ou a luz, a invisibilidade de uma emoção ou a aspereza de um instinto maligno. As letras são os tons da nossa alma, da nossa força ou da nossa fraqueza, o retrato do nosso berço, do nosso sangue. Como aqueles sons atrás de nós, ali na temba do Farol. Não ouves? Repara na sua linguagem: lentos como quem amacia uma pelugem; rápidos como quem acende uma fogueira num descampado ventoso; acelerados, quase desesperados, como quem sabe que um prazer vai acabar, ou alguém, que amamos, parte sem nós. E se fôssemos ver o batuque? Contigo a meu lado não haveria receios nem paragens de olhos desconfiados, continuariam a rufar como se a lua fosse um sol.

- Chi!, família espantar feitiço... Num pode...

- Respeitemos, então, as intimidades, Gabriel.O batuque é como fazer amor: tem leveza e fúria, suor e gritos, satisfação e cansaço. Vou-te deixar dormir. Prometo – devolvendo-lhe o dolmen – que cedo não te aborreço.

- Deixa mais um cigarro, deixa alfere...

Deu-lhe o maço e partiu picada fora. Ao fundo, à sua direita, viam-se as luzes da Intendência e dos Fuzos. As palmeira, os cajueiros e o capim alto orvalhavam, ressuando do calor do dia. Antes de entregar o Land-Rover e de se enfiar na “flat”, passou pelo barracão a fazer de morgue. Sobre a tampa do caixão viu o sorriso do Pires.
- Por M. Nogueira Borges, Porto, 15/6/10.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

    1/12/11

    A SESTA

    As amendoeiras estão secas, as favas-ricas espalham-se no chão, as buganvílias resplandecem nos jardins e os chorões beijam a relva. Os pinheiros mansos, oliveiras e raras acácias protegem os carros de latas escaldantes sob o calor do meio-dia.

    Caminho por entre alas de arbustos, administrando as sombras, derreado com os sacos de praia engordados de toalhas, calções e cremes anti-solares. A petizada chilreia em volta da piscina, as Mães, com pratos de cerelac, imploram-lhes as bocas; anafados passeiam cães de marca, deixando-se levar pelo esticar das correias; mulheres de ondulantes proeminências derretem, sem precauções, a sua celulite; as esplanadas enchem-se de estrangeiros a enfardar batatas fritas com canecas de cerveja que mais parecem cubas, numa algazarra que a desinibição em terra estranha facilita. Respira-se uma mistura de cheiros a cloro, ambre solaire, perfumes franceses, sardinhas assadas e febras grelhadas.

    Vim por aí abaixo, numa noite sem sono, para fugir ao calor e às bichas de esmigalhar paciências. Atirei-me, mal arrumadas as tralhas, à liberdade de um mar sereno e à vastidão dum areal que me imaginei, há muitos anos atrás, naquelas imensidões africanas com as palmeiras franjando o Índico. Quem me visse, tão criança, esbracejando como quem afasta repressões, julgar-me-ia fugido de algumas grades, mas, apenas abandonara as neblinas do litoral nortenho que, sem possibilidades de se virar o mapa ao contrário, se vingam aqui.

    Ao longe, depois de uma ponte pênsil sobre o rio Gilão e ramificações da Ria Formosa, um comboiozinho artesanal ronrona tão lento – em estirar de mamba - que parece ali andar desde o exórdio do mundo. Vai e vem sempre esgotado, levando e trazendo banhistas, entusiasmados na ida, arrastando-se na vinda.

    Os toldos amontoam-se ao pé de um antigo abrigo de pescadores em que restaurantes ocasionais gananciam em três meses pelo que não facturam em nove. A praia, de areias açucaradas, beijada por uma irresistível mansidão líquida, estende-se até os confins do olhar. Por ela se dispersa, num mosaico complacente, uma fauna de muitos lugares, condições, espécies e maneiras: há seios ao léu aprumados como setas, outros descaídos como moncos de peru, fios dentais a fazerem de conta que tapam sexos rapados, barrigas de maternidades, banhas de abafar, securas de espantar, esculturas de ébano, remedeios matrimoniais, cabelos loiros deslizando água, carecas sem um pêlo para flutuar, palhaços fora do circo a fazerem o pino para as palmas de senhoras que falseiam júbilos, vendedores de bolos cozidos pelo sol, sorveteiros esganiçados com
    arcas a tiracolo, rostos felinando as ancas e os traseiros que passam, velas de windsurf que enfunam como barbatanas de tubarões, figuras televisivas que escondem, sob óculos de escuro espesso, a autenticidade que não é igual à que dá a sala da caracterização, iates atulhados de nudistas a cortar as águas junto à costa, pantominas de motos espirrando jactos como baleias, mamas em carne viva e besuntadas com guinchinhos de chamar a atenção. No meio disto tudo, um velhote, vestido à marinheiro com botas de montanha, chama os netos com um apito de ajuntar cães, observo-lhe a cara, os olhos alienados, e penso que deve ser triste conviver com a loucura. Deixo, com alívio, essa ontologia diversificada, morto por um chuveiro que me limpe as areias e a aspereza salina.

    Quando o almoço acaba e a sonolência chega, a sesta é um prazer antes do gozo. Adormeço com um búzio nos ouvidos, numa leveza anestésica, já mal escutando o passar distante do comboio de Faro.
    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

    6/02/11

    TEMPO MOÇO

    Deitados na caruma, de olhos fechados, sentíamos os voos das pegas–azuis, os estalos dos pinheiros e, ao longe, na ondulação dos montes, os zumbidos dos pulverizadores.

    Não sei quantos anos tínhamos, talvez dezasseis, talvez dezoito ou talvez aquela idade em que não se sabe, ainda, contar os anos.

    Da pequena cachoeira, a deslado de um renque de salgueiros (pareciam salgueiros...), vinham os ralhos das mulheres que lavavam a roupa, misturados com a gritaria da canalha entre barrigadas na água e correrias pelas margens.

    Flutuavam aromas de Verão, o cheiro a terra e a flores silvestres entranhava-se nos corpos. Ficávamos, assim, colados ao restolho, cansados da subida, à espera que o comboio nos acordasse.

    Quando o pouca-terra-pouca-terra da via reduzida atravessava a ponte, sentávamos-nos a ver aquilo: carruagens esverdeadas, andar bocejante, fumaradas de cigarro, brinquedo de cascata sanjoanina. Os nossos cabelos eram fios de sol e trocávamos olhares tão ternos como a lua contempla o mundo nas noites quentes de Agosto.

    Corríamos os bardos à cata de ninhos de melros, e havia sempre, ao entardecer, um rouxinol que cantava para os lados da ramada que sombreava o poço.

    Tudo era verdadeiro, a amizade existia mesmo e ninguém invejava ninguém.

    Tínhamos a novidade do princípio que nunca se inicia nem acaba qual a sede num sonho.

    Trepávamos ao pinoco de cimento, que comemorava o ponto mais elevado do monte, e dali abarcávamos uma vista delirante: medonhas penedias forradas por simétricas fieiras de verde tão a pique que parecia impossível um homem conseguir lá botar sulfato; estavam mesmo junto às nuvens, numa adoração telúrica que nem sabíamos se era herética ou sagrada, enquanto o comboiozinho, ao longe, pronunciava uma curva larga, em câmara lenta, pedindo que algum santo o empurrasse.

    Ignorávamos o ódio que é feito daquele martírio de linguagem escolhida para a ofensa gratuita, expressa por olhos esbugalhados para perturbar a boa fé. As mãos das pessoas tinham calos e terra nas unhas, as barbas faziam-se aos domingos de manhã e o Padre madrugava com o sino da Capela a interromper os sonos.

    Ecoavam os cânticos das aleluias, o toque dos santos, a adoração da hóstia e, depois, os homens iam, abençoados, de sacho ao ombro, desviar as águas para as hortas.

    Líamos, às escondidas, o Crime do Padre Amaro ou Andam Faunos Pelos Bosques, enquanto as moçoilas, de caneco à cabeça assente em rodilhas, mostravam os vestidos de chitas floridas; as Mães, cansadas, catavam ganapos; os homens, nas tabernas, jogavam o monte ou o sete e meio, mastigando tabaco de onça e escarrando no chão térreo; os leilões de cravos, cestas de fruta e galos de crista vermelha fomentavam vaidades aldeãs em nome das festas de Santa Bárbara; os bailaricos de poeira, suor e olhares de soslaio alimentavam rivalidades ciumeiras.

    Naquele tempo desconhecia-se a morte. Ela estava cercada por quatro paredes, no canto mais afastado da terra, e não gostávamos daqueles toques metalóides dos sinos da Igreja quando uma multidão vestida de negro se arrastava, estrada fora, como uma cobra do rio.

    A morte era um eco difuso, pouco audível, que a noite, por vezes, avivava em receios de fantasmas. Depois, adormecia com a sensação de que me faltava alguém.

    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustrativa acima foi recolhida da internet livre e editada. Clique na imagem com o "rato/mouse" para ampliar.
    • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal.

    12/08/13

    LEMBRANÇA DE NATAL

    Fixo-me nesta pedra tumular, branca-escura de quantos lustres, ervas à espreita misturadas com cera derretida e flores campestres caídas de uma jarra. Debruço-me no gradeado que delimita o jazigo e penso: “A minha geração paternal está toda aqui, com o meu Pai à frente, há mais tempo do que eu tenho de vida. Estão no silêncio da eternidade, indefesos, noites e dias sem uma Avé-Maria, sequer um ciciar dos que não esquecem. Uns, partiram, ainda jovens, sem a oportunidade de um arrependimento, um adeus; outros, velhos, cansados de tanto esperarem. O meu Pai foi sem ouvir o meu primeiro vagido (imaginou-me apenas), derrotado pela doença maldita a que chamam prolongada. Morreu sem me beijar, fazer uma festa na moleirinha, pegar-me ao colo, imaginar parecenças, mudar-me uma fralda, alvitrar um nome baptismal, embalar um sono, viver a maior seriedade amorosa da existência.

    O que faz, afinal, a ilusão da vida? O que a dimensiona na escassez ou na lonjura dos anos? É a substância da dádiva e do amor, mesmo na brevidade biológica, ou o vazio desafectado no prolongamento biográfico? A vida nem ao menos tem lógica. Há quem morra sem uma ruga, com o sol e o pranto a adornar a despedida; há quem parta encolhido por remorsos velhos sem uma réstia de deixar saudades.

    Morreu-me antes do tempo, sem tempo para lhe pedir um conselho, uns tostões para rebuçados ou para uma bola de futebol, para divergirmos quando não estivéssemos de acordo, para nos amarmos, sempre, até o sangue secar.

    Aqui estou, só, com um sol fraquinho encoberto pelas nuvens de Dezembro a lembrar o Natal. Um Natal que nunca partilhei com ele e já nada me diz porque o transformaram numa hipocrisia, numa feira de vaidades, num símbolo pagão, materialista, sem solidariedade e sem virtude. Resta-nos as cruzes dos Cristos vivos e mortos, exemplos e memórias contra o ódio e a inveja que nos consomem. Um dia aqui estarei desde o nascimento sem ti até à morte contigo “. 

    Um vento agreste varre o alto da Corredoura. O sussurro da folhagem dos eucaliptos acentua o abandono do palacete envelhecido onde brinquei em criança, diante do qual encolho um grito inominável e pergunto por que vendem os homens as histórias das suas vidas? Lá ao fundo, para os lados de Rio Bom, há uma paisagem amarelecida, desamparada, com os fumos das chaminés a acentuar o deserto dos caminhos. O Douro, esse, não morre, continua a correr, leva nostalgias, sonhos e destroços. Há muitos Meninos Jesus na encosta-presépio de Loureiro, mas eu nunca tive um Pai Natal Vivo.
    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

    11/22/10

    PRECE

    Volta Jesus Cristo!

    Volta a este mundo de sacripantas,
    De escárnio e mal dizer.
    Volta a esta terra de vaidade,
    De desamor e egoísmo,
    Fria e vazia como um poço abandonado,
    Repleta de Sanhedrins da corrupção
    E de Zerahs gananciosos.

    Volta Jesus Cristo!

    Volta à medula das nossas misérias
    Para curares as chagas da inveja,
    Perdoar com a serenidade de quem ama,
    Limpar todas as Jerusaléns do nosso tempo.
    Volta depressa às nossas consciências,
    Aquecer a indiferença que nos rói,
    Gritar uma esperança para amanhã
    - Para sempre -
    Não morrermos sozinhos e tristes.

    Volta Jesus Cristo!

    Vem dar força aos Nicodemus sinceros,
    Encorajar os Josés de Arimateia verdadeiros,
    Julgar todos os Tibérios modernos
    Desprezar todos os Pilatos covardes,
    Apontar os Barrabás perdidos.

    Volta Meu Senhor e Meu Profeta!

    Vamos falar aos que morrem de ambição,
    Pregar a doutrina que nos salvará,
    Escorraçar os que comem na opulência,
    Agasalhar as crianças que tremem de frio,
    Sem carinho, abandonadas como destroços.

    Volta Jesus Cristo!

    Para devolveres às pessoas o riso da vida,
    Amar os que nada têm,
    Ensinar de novo o que todos esqueceram.
    Volta para me enxugares os rios da tristeza,
    Nas angústias dos fins de tarde
    E me abraçares nas horas de desassossego.

    Volta Mestre!

    Vamos berrar contra a alegria falsa,
    Contra o sorriso falso,
    Contra a amizade falsa,
    Contra os irmãos falsos,
    Contra os políticos falsos,
    Contra toda a falsidade.
    Quero ir contigo entoar a nossa Fé,
    Derrubar os déspotas com a nossa Cruz,
    Correr do Poder os que mandam sem saber.

    Volta Jesus Cristo!

    Eu quero abraçar-Te!

    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

    2/02/11

    AUSÊNCIA

    Não sei há quantos anos - talvez desde que me conheço – que transporto uma imagem-memória sem definição.
    Bem me esforço por lhe encontrar a forma, a cor e o conteúdo, mas, sempre em vão.
    Nessa procura me perco sem relógio, num suor pegajoso, numa dor de impotência, numa íntima aflição.
    São momentos de luta interior que tanto ocorrem numa noite de espertina ou na balbúrdia do dia, sem resposta para as minhas dúvidas, convencido de que nunca alcançarei o descanso da solução.
    Umas vezes, aquela imagem surge-me num revivalismo do já experimentado, mas, quando a aprofundo, logo se me dissipa a objectivação e tudo é engano, mistura de pensamento e de lembrança no esbatimento da monotonia.
    Tanto me aparece no roxo da revolta como no rubro da injustiça, no negro da ingratidão como no cinzentismo da apatia.
    Tanto chora numa premência de tristeza como grita numa brevidade de alegria.
    Há, porém, uma minúcia que já apreendi: o sentimento da ausência. É isso: a ausência como uma fome nunca satisfeita, uma falta insuprível, um espaço sem tempo e sem modo, continuamente à espera de quem a possa preencher.
    Será a ausência de uma alma que na minha se devia encaixar? Será uma incompreensão atávica perante a frieza de um mundo que não há meio de entender?
    Será uma desarmonia entre uma época sem sentido e uma consciência inadaptada?
    Um vazio, aquém (e além) do nascituro, como se o corpo fosse apenas o invólucro de um nome destinado ao cumprimento de uma obrigação gerada?
    Mas se, afinal, isto não se explica, por que buscar, então, no intervalo da vida e da morte, a pacificação do entendimento, essa imagem-memória, se ela é uma ausência ausente, que é o mesmo que afirmar uma incapacidade racional – não uma subjectivação incomunicável -, uma omissão que se sofre no envelhecimento de um retrato que escurece tão veloz que só damos por ele quando o espelho se fende?
    Vem-me de longe essa nuvem, esse tempo sem tempo, como uma sombra dos dias, como uma angústia de exílio. Queria-a na sua substância, demorar-me na sua presença para a saber inteira, porque só assim decifraria o seu sentido no relacionamento comigo.
    Bastava detê-la no meu (e no seu) conhecimento e, depois de esclarecido, largá-la definitivamente.
    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

    2/26/11

    CONTRA A CORRENTE

    Pega de caras o teu desencanto,
    Toureia-o no redondel da multidão,
    Numa qualquer praça, num qualquer canto,
    E não autorizes que te ponham a mão.
    Não vendas a tua palavra
    Nem a tua verdade
    Nem o teu amor.
    Vale mais, quando morreres,
    Teres o aceno de uma flor
    Do que um coro de fingidores.
    Podes contar os tostões,
    Uma vida inteira que seja,
    Podes contar as traições,
    Venham de onde menos se deseja,
    Podem-te vencer,
    Naturalmente,
    Podem-te roubar,
    Cobardemente,
    Mas não te podem prender
    Nem convencer
    A ficares calado,
    Humilhado.

    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" será apresentado  no próximo dia 12 de Março (Sábado), pelas 15 h, na Casa-Museu Teixeira Lopes, 32, Vila Nova de Gaia (perto da Câmara Municipal de Gaia). Convite e informações aqui.
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

    3/31/11

    A MINHA CIDADE

    (Clique na imagem para ampliar)
    Fotografia pertencente à galeria pública de Jaime Gabão 

    A minha cidade
    Tem o visco da saudade
    E o nevoeiro do futuro.
    A minha cidade
    Tem a tristeza do escuro,
    Mas, sobretudo,
    O brilho da verdade.

    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.

    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima pertencente à galeria pública de Jaime Gabão e poderá ser ampliada clicando nela com o mouse/rato.

    5/19/11

    PRETÉRITO IMPERFEITO

    Íamos, meios tontos, inebriados pela fantasia de que era tudo nosso, correndo pelos caminhos de sombras da mata, arrancando, aqui e além, ramitos de mimosas, até nos quedarmos, ofegantes, no encosto de um tronco, o suor a escorrer pelos corpos.

    Não sabíamos que o Mundo tinha hospitais e cadeias, lágrimas nos cantos da tragédia e ódios recalcados na desventura de vidas desconhecedoras do perdão.

    Ignorávamos que o amor é, tantas vezes, uma hipocrisia sustentada pela comodidade de não romper interesses ou ferir o futuro dos nascidos sem culpa.

    Julgávamos eternas as juras de fidelidade e que os dedos entrelaçados nunca se desatariam.

    Não conhecíamos a ingenuidade porque, entre nós, tudo era seguro e limpo.

    Troçávamos dos conselhos dos mais velhos como se fossem frustrações de quem não encontrara a felicidade. Esta nascia-nos nos brilhos dos olhos e na sofreguidão dos afagos. O dinheiro não contava porque matávamos a sede na água do riacho e a fome nos frutos que amadureciam sob o calor das férias.

    Da cidade chegava-nos a confusão, amortecida pela muralha do arvoredo, e os passarinhos cantavam connosco. Era lindo ser-se novo! Sentir na cara a seda da brisa e nas veias o sangue do desejo, libertos dos ralhos e das sinetas, sem vultos negros nos corredores semi-iluminados, sem o cheiro lixiviado das camaratas e as imposições dos recolheres vespertinos.

    Não voávamos que não tínhamos asas, mas os risos e os sussurros acompanhavam-nos na leveza de quem não fazia contas. O futuro não existia, ou antes, era o momento, tinha a dimensão de uma ternura e a certeza de que a luz da tarde nos daria o tempo suficiente para nos vingarmos da noite.

    Sentávamo-nos num banco de pedra a contemplar a colina do castelo, enlevados em romances de cavalaria e princesas encantadas. Do lado de lá, depois de um abismo rochoso, ficavam os lameiros onde se abatiam as codornizes enquanto não chegava o tempo das perdizes e dos coelhos. Eram terrenos férteis, de vales amplos, acordados pelos tiros e pelos gritos das manhãs cinegéticas.

    Não sentíamos as lágrimas da humilhação, a indiferença das almas egoístas, as cobiças insensíveis, a inveja deprimente.

    Éramos vazios do mal, só a boa-fé nos comandava. Traçávamos as linhas da honra sem imaginarmos que, um dia, mais repentinamente do que começáramos, as estradas dos nossos passos nos levariam cada um para seu lado com o mar a separar continentes e a guerra a enlouquecer uma geração.

    Mas valeu a pena acreditarmos, percorrermos a ilusão. Se conhecêssemos tudo o que a vida nos trouxe, desistiríamos, logo ali, de sermos felizes. A felicidade, por pouco tempo que seja, vale sempre, ao menos, uma memória.

    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustratrativa acima foi recolhida da internet livre. Clique na imagem com o "rato/mouse" para ampliar.
    • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal.  

    9/25/10

    A CASA

    (Clique na imagem para ampliar)

    Todos, uns mais que outros, estamos ligados às casas onde morámos. As peripécias da existência levam-nos, muitas vezes, a geografias diferentes das que conhecemos na nascença. São as condições do destino, contrariando a vontade ou os desejos de mudança para a concretização (ou não) de um sonho. As casas são o canto das confidências ou o altifalante dos destemperos, a alcofa do amor ou o antro da repulsa, o espelho da harmonia ou da truculência, o retrato da ternura ou do gelo, a redoma das inocências ou o estilhaçar das más criações.

    As casas são pedaços da nossa memória povoada de risos e de choros, de zangas e de perdões, de vida e de luto, de realizações inesquecíveis e injustiças traumatizantes, de brincadeiras e de recriminações, de opulência e de escassez, de grandezas e misérias – de tudo, afinal, de que é feita a roda da vida.

    Quantas vezes uma casa é a referência de uma cronologia, o antes ou o depois de uma casualidade, a justificação de uma luta, o renascer de uma afirmação, o hiato de uma dificuldade, a certeza de uma vida inteira. As casas são sempre a moldura de uma época, figurantes imóveis da mobilidade do nosso filme.

    Há dias, vi, na longa avenida onde moro, uma dessas casas, por onde passei, ser demolida como quem esmaga uma inutilidade. Subia-se por uma escada em cotovelo, que dava a um longo corredor, marginado por quartos, até terminar numa pequena cozinha aproveitada numa reentrância da sala de jantar, frente à qual se estendia uma frondosa ramada que, todos os anos, dava alguns almudes de vinho americano, e onde, à sombra dela, as crianças faziam tropelias diante da complacência de uma bondosa avó. Foi ali que escutei, enquanto o sono não vinha, o ruído dos eléctricos nas suas correrias nocturnas, no tempo em que passear à noite ainda era uma liberdade; que, surpreso, ouvi sagas africanas de esplendor e de debandada, contos de honra e de abdicação; que ri com satisfação e me silenciei nas preocupações; afaguei nascidos e chorei por quem abandonava o mundo; que confirmei o ensinamento da minha meninice aldeã: a partilha do pão tanto pode ser por dois como por quatro.

    Quando o mastodonte de tijolos e cimento parar de crescer para o céu, vou pedir ao novo dono que ponha uma bandeira, lá no alto, com um coração desenhado. É A ÚNICA MANEIRA DE EU VOLTAR A OLHAR PARA LÁ.
    - Texto de M. Nogueira Borges*, Porto, Setembro de 2010.
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

    6/28/11

    ÚLTIMA VONTADE


    Quando eu morrer,
    Que seja em Agosto
    Com toda a gente de férias.
    Quero morrer sem desgosto,
    Sem dor e sem aborrecer,
    Envolto na brancura de um lençol,
    Só um padre, a família e os amigos,
    Sem mais ninguém saber.
    Quero morrer sem choros, sem gritos
    E sem anúncio no jornal.
    Morrer não é o fim,
    E quem me diz a mim
    Que a minha vida, afinal,
    Não se renovará num caminho
    De amor e carinho,
    De risos verdadeiros,
    Todos os dias renovados
    Como se fossem os primeiros?
    Quando eu morrer,
    Lavem-me com a lágrima do adeus
    Que quem morre sempre deita,
    Não com pena de morrer,
    Mas triste pelos que ficam,
    Mais tristes e abandonados,
    Sem saberem o que os espera:
    Se a disputa de uma herança
    Ou o fim de uma esperança.
    Quando eu morrer,
    Metam-me num jazigo
    Com uma ampla janela
    Para ver, através dela,
    O sol de cada domingo.
    Ponham-me flores e uma vela,
    Uma cruz e um poema
    Que aqui deixo escrito:
    Nasceu sem saber porquê,
    Viveu sem que o entendessem.
    Morreu sabendo para quê:
    Para que na ausência o lembrassem.
    Basta para dizer tudo,
    O que foi o meu mundo
    Em criança e em adulto.
    Atravessei mares e continentes,
    Chorei nas noites de abandono,
    Amei raças diferentes
    E não sei se matei por engano.
    Quando eu morrer,
    Não quero ir para a terra;
    Em vez de morrer uma vez,
    Morreria, então, duas vezes.
    Concordem que não o merecerei
    E, se o fizerem, garanto-vos,
    Nunca o esquecerei.
    Afinal, quem vive com os remorsos
    De uma última vontade não cumprida,
    Naquele instante de amargura e despedida
    Em que o sangue se esvai,
    No grito intolerável que a vida dá,
    Até se esbater cansado num ai
    Que até parece que, depois dele, nada mais há?
    Quando eu morrer,
    As andorinhas farão ninhos
    No beiral da casa onde nasci,
    Cantando de mansinho
    Para que não me interrompam o fim.
    Apanhem uma que seja dócil e bela,
    Prendam-na às minhas mãos
    E deixem-me ir assim com ela,
    Caixão aberto e o sol a brilhar,
    As pessoas espantadas a olhar
    Para um funeral nunca visto.
    Batam palmas devagarinho,
    Não se importem de parecer mal,
    Não falem durante o caminho,
    E vejam se vou a voar.
    Quando eu morrer,
    Se calhar, não terei tempo de dizer
    O que sempre calei em vida:
    Que amei tanto os outros
    E alguns não me mereceram,
    Que chorei por loucos
    E por quem não devia,
    Que encolhi silêncios
    Pelos que nunca me lembraram
    E alguns até se afastaram.
    Quando eu morrer
    Vai ser penoso ir-me embora,
    Deitado, estrada fora,
    Sem me mexer,
    Sem poder beijar os frutos da minha felicidade,
    Virtudes e defeitos do meu ser,
    Os seus rostos mais lindos do que o sol a nascer
    E sorrir-lhes, então, até à eternidade.

    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". A imagem ilustrativa acima é formada/editada por diversas fotos recolhidas da internet livre. Clique na imagem para ampliar.
    • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal.

    1/05/11

    GERAÇÂO ESQUECIDA - II

    África das manhãs morenas,
    Dos risos nas areias molhadas,
    Das noites suadas e serenas,
    Fora dos tiros das emboscadas.

    Beijei a tua boca em Porto Amélia,
    Acariciei os teus seios em Quelimane,
    Fiz amor contigo em Lourenço Marques
    E chorei por quem ficava,
    Do outro lado do mar,
    A contar os dias da chegada.

    África tão longe
    E tão longa,
    Corpos ao léu
    Em camas de céu,
    Amor às claras,
    Fremente de vida,
    Carne despida
    De falsos pudores.

    África das anharas,
    Dos caminhos da coragem,
    Das horas a sonhar
    O regresso da viagem;
    Negra risonha ao amanhecer,
    Mulata dolente ao anoitecer,
    Branca namorada de um Maio a nascer.
    Terra de fogo, de sangue e de gritos,
    Inúteis mortos e feridos,
    O sol a ver
    Um homem a morrer:

    Adeus até ao meu regresso,
    Sou este que me despeço.
    Fui corpo e, agora, sou alma.
    Uma bala me levou.
    Finalmente tenho a calma
    Que a guerra me roubou.

    Recados de condenados,
    Bocas espumas de sangue,
    Corpos destroçados
    Que viveram um instante.
    Nacala, Nampula, Molocué, Quelimane,
    Namacurra, Mocuba, Chire, Pebane,
    Porto Amélia, Mocímboa, Beira,
    Mueda, lá em cima, e Macomia perto.
    Madrugadas sem eira nem beira,
    Olhos de sono, mas sempre desperto.

    Que é feito das cruzes enegrecidas,
    Símbolos de uma geração sacrificada?
    Estão todas desfeitas, esquecidas
    A bem da Nação libertada?

    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

    10/15/10

    EMBOSCADA

    (Clique na imagem para ampliar - Imagem composta de itens recolhidos na net)

    Chove cacimbo
    Na terra do fim do mundo,
    Uma lua sorrindo
    Na floresta sem fundo.

    O dia há-de nascer do seu útero fecundo
    Envolto numa humidade de vapor,
    Num grito de dor,
    Carne inocente a arder.

    Ninguém pode dormir para esquecer,
    Só há tempo para morrer
    Ou viver.

    Os soldados,
    Enlameados,
    Como vermes enrolados
    Numa espera fatal,
    Só pedem um sinal,
    Um barulho de metal,
    Para libertarem o medo,
    Estoirarem o sossego.

    No ventre da selva há gritos
    E tiros,
    Correrias e rebentar de granadas,
    Dois corpos de pernas decepadas.

    Uma estrela apareceu,
    Mas breve desapareceu.
    Foi a vida que nasceu
    E logo morreu.

    Lá longe, na beira rio das arcadas,
    Na Praça das Medalhas,
    Dos Dez de Junho Imperiais,
    Ditadores imortais
    Não querem saber
    Que a geração sacrificada
    Esteja a morrer
    Para nada.

    - Poema de M. Nogueira Borges* extraído o livro "Lagar da Memória".

    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

    11/01/10

    NOVEMBRO

    (Gravura editada de imagem recolhida na net)

    Quando o céu escurece nas tardes de Novembro,
    Lembro:
    O silêncio de um quarto alugado
    Com uma velha a tossir no do lado
    E gente cansada nas ruas do vento.
    Quando as plantas apodrecem nas sacadas
    - Uma chuva miudinha a entorpecer o mundo -
    Abraça-me a saudade de antigas namoradas
    - Promessas breves de um segundo -
    Como cobertores de Inverno em corpo gelado.
    Quando as pombas se arrolam no telhado
    E se aproxima a neblina do mar,
    A noite, deslizando na ampulheta do dia,
    Espera os enjeitados da democracia.
    Quando as Avós estendem as roupas dos netos
    Nas cordas de uma vida de restos,
    De fatalismos há muito arquivados,
    Calando passados,
    É como se viver
    Fosse quase morrer.
    Quando as árvores amarelecem
    E se despem
    Como esqueletos de ossos
    Sem a carne da vida,
    Os olhos ( os nossos e os vossos )
    Choram as esperanças traduzidas
    No silêncio das palavras reprimidas.
    Quando os pássaros, esbaforidos,
    Fogem aflitos
    Para a defesa dos beirais,
    Defecam no cego que tapa o acordeão
    E na mão do pedinte sob os umbrais;
    Quando os cauteleiros apregoam a sorte
    E os sinos anunciam a morte,
    A chuva lava o chão
    Para onde irá o meu caixão.

    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O lagar da Memória".
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

    11/30/10

    A MÃE DE TODOS

    Alice deixou um dia a aldeia entre as montanhas durienses para servir na casa de um Senhor Doutor do Porto, levando consigo a ilusão de um sonho. Ainda foi à terra, duas ou três vezes, mostrar a roupa da cidade e os brincos que a patroa lhe oferecera. Hoje, porém, talvez já nem saiba como se toma o comboio. Enterrada a Mãe, que o Pai nem conhecera, vendida a leirita de uns almudes, fez um risco no calendário da sua recordação. Gastava as tardes domingueiras no jardim diante da casa onde fazia a comida e as camas, aspirava a alcatifa e sacudia as carpetes, limpava as pratas e entretinha adolescentes rabugentos, até achar o companheiro da sua sina. Afeiçoou-se por um mecânico e foi viver para uma casita mal alevantada dos subúrbios.

    Começou cedo a criação; enquanto as marés sobem e descem, viu-se com uma ranchada de filhos. Dava umas horas como mulher-a-dias com a sogra na guarda da canalha. Passava muito tempo no hospital, nas consultas de pediatria, e dava-se, por isso, com enfermeiras e médicos com o à vontade consentido de tantas idas e vindas numa preocupação aflitiva por quem levava ao colo e pelos que deixava sob o olhar da segunda Mãe. Já nem precisava de papel ou de espera, todos lhe toleravam a prioridade, que a uma Mãe procriadora não é só o respeito a mandar, mas, também, uma admiração condoída. Vinha do fim da cidade onde a auto-estrada se estende numa fita preta que se perde, ao longe, com os carros disparados a afundarem-se nas lombas.

    O rosto de Alice mostrava canseira, envelhecido antes da razão; as pregas nos olhos e nos cantos da boca traduziam embaraços e noites mal dormidas. Quase que não tinha peitos, chupados pelas bocas da inocência sem culpa de terem nascido a eito. Contudo, por cima desse espelho de privações, um sorriso bonito, muito bonito, tornava-a simpática e afável; era um daqueles sorrisos de quem logo se gosta por não enfatizar as desgraças. Acarinhava os filhos sem pieguices ou obsessões. Sempre «lavadinhos e arranjadinhos», não se escusava de, em pleno átrio, desnudar um seio mirrado para o meter na boca de um mais apressado pela hora do sustento.

    Joaquim sujava-se na oficina e em biscates de fim-de-semana para sustentar a prole. Não era gastador nem seroava nos Cafés. Viciado, só no tabaco e no futebol, mas, até nestes, se moderava: fumava Definitivos e o seu clube militava numa distrital sem nome nos jornais de segunda feira. Ia sempre como um fuso para casa, sem o fastio dos casamentos arrastados. Quando a mulher se demorava, esperava sempre que a porta se abrisse. Os vizinhos da ilha não lhe ouviam um ralho ou uma descompostura e, como «casal que não se insulta não se ama», julgavam que apenas se toleravam.

    Um dia, porém, as horas passavam e a Alice não chegava. Sabia-a numa consulta com «o mais novinho, de seis mesinhos». Combinou com a Mãe a continuação da vigília e meteu-se a caminho. Encontrou a Mulher na paragem do autocarro, diante do hospital, com dois bebés, um em cada braço.

    - Então o autocarro não vem, é?... Estás à espera do 99 como o Samora?!... – troçou.

    - Quantos já passaram!... – retorquiu a Alice.

    - Espera – espantou-se -, de quem é esse bebé?!

    - Foi uma senhora que me encontrou à saída e pediu-me para lhe ficar com ele.

    Disse que era só tempo de ir ali, não sei onde, fazer umas compras, já lá vão mais de duas horas e não aparece. Estou preocupada...

    - Oh! Mulher... Ela não volta mais! Não vês que o abandonou?!... Deixa lá!... Quem cria nove também cria dez! Vamos embora!

    E lá foram, cada um com o seu filho, no autocarro apinhado, a caminho da casita mal erguida nos confins da cidade para continuarem a servir o futuro do mundo.
    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

    12/30/10

    A SENHORA DAS DORES

    Caminho sem relógio, procurando as sombras, turvado pela mornaça e um cheiro de flora que me lembra o caril. As vivendas, com avisos de empresas de segurança e grades nas janelas, têm as persianas semi-cerradas por onde escapa o ressonar das sestas. Os carros, de marcas alemãs e suecas de não sei quantos turbos, também dormem embrulhados em lonas escurecidas de pó, pintalgadas por cagadelas de pássaros e folhas ressequidas. Vê-se que é uma zona chique onde o dinheiro não tem ideologia, de tanto nem se conta, ou, então, de pouco se disfarça em muito. Ao lado, na Estrada da Mata que leva a Vila Real de Santo António, o parque de campismo diz-me que talvez haja quem viva com mais gosto, sem medo de assaltos, a cheirar o restolho, os pinheiros bravos e as sardinhas assadas. Percorro a longa avenida Vasco da Gama, de esplanadas vazias, onde destila um ou outro loiro ariano a atestar o depósito com enormes canecas de cerveja que só de olhar metem impressão. No vasto areal continuam os fanáticos do bronze grudados às areias a derreterem os cremes e a celulite. O chão escalda como piche, desvio-me para a zona pedonal, evito o largo das carroças à espera do fim do dia para os passeios turísticos, entoando chocalhos e empestando o ar com as necessidades cavalares. Um grupo de peruanos (ou bolivianos?) montam, já, a aparelhagem para o espectáculo nocturno de música andina; algumas bocas lambuzam-se de gelados num ritual de lábios e de línguas que envergonha os atrevidos quanto mais os pudicos. Mostruários de jornais e revistas do jet-set, raquetes e bolas, camisetas berrantes e óculos de sol, fios dentais e calções de banho, isqueiros e pilhas, cremes e preservativos, colchões de plástico e remos do mesmo, cadeirinhas e guarda-sóis, toalhas e almofadas, chinelos para meter entre o polegar e o indicador e sandálias para as unhas pintadas, bóias e flutuadores infantis - tudo o que cabe num armazém de chinas. Os restaurantes, pegados uns aos outros, atravancados de preçários, esplanadas de cadeiras e reclamos de visas e american express, não dão uma folga para as pessoas passarem.

    Deixo o Monte Gordo cosmopolita, dos prédios altos como pinocos, ilhas verticais de camas-sofás, e meto-me pelas ruelas estreitas da povoação antiga, pertença da genitura piscatória, com casinhas renteadas aos passeios. É a zona dos cafés-tipo-tasca ao custo do Norte, dos pratinhos de tremoços e amendoins a acompanhar imperiais, do frango de churrasco, do bezugo nas brasas, dos idosos desfiando o tempo em cadeiras de lona às riscas, das crianças gincanando por entre os carros estacionados, das mulheres de crepes vitalícias.

    Entro na pequenina Igreja semelhante a um adereço de presépio, de suave frescura, simples como tudo o que, em nome de Deus, devia ser. Custa-me a adaptar os olhos à penumbra. Vejo uma Senhora de Fátima num nicho à direita do Altar. Todas as Senhoras de Fátima são assim: rosto plácido, olhar terno, boca sem ofensas, mãos delicadas segurando um terço com as contas dos pecados do mundo. À esquerda, um Senhor dos Passos, transportando uma cruz, tem um rosto de sofrimento mas os olhos sem rancor. Um arranjo floral, mistura de gladíolos vermelhos e gerberas amarelas, está aos pés de uma Imagem ornamentada com um cónico manto roxo até aos pés. Aproximo-me para melhor A ver e paro, surpreso, com a presença de uma velhinha, cabelos todos branquinhos, vestido negro, um ciciar de Padre Nossos tão leve que nem a notara, sentada a um canto junto à porta da sacristia. Fiquei especado, sem me mexer, transportado aos vultos da minha infância. Esboçou um sorriso e disse-me: «É a Senhora das Dores... É linda não é?...» Sorri-lhe, também, agradecido, e respondi com os olhos afogueados: «É linda como a Senhora que me fez lembrar a minha Avó!...» A velhinha, então, num farfalho de saias, levantou-se, abriu-me os braços, beijou-me, e acrescentou: «Deus Nosso Senhor o acompanhe!»

    Quando abri a porta, à saída, por entre o ranger das dobradiças, ouvi (ou foi um eco da memória?):  «Deus Nosso Senhor te acompanhe, Meu Filho!» Era a voz da minha Avó que vinha das profundezas da terra, ou das alturas do céu, e se manifestava à rutilância do sol.
    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

    7/15/10

    O REFORMADO - Parte 2

    (Clique na imagem para ampliar)
    Iniciara-se ao balcão, a receber as propostas comerciais, ensinar o preenchimento de livranças ou letras, e acabara a decidi-las no suporte informativo do bom ou do mau nome. Voltara à nulidade sem préstimo ou importância. Agora só lhe pediam paciência, aqueles expedientes de velhos amanuenses que, sem nada para passar o tempo, agradecem um entretém. Sem feitio para dizer que não, passava horas nas filas de espera para cumprir as burocracias dos filhos, bufando e fumando. Sentia-se trapo, esfregona de limpar pingos, amortecedor de rebeldias juvenis. Como passara a vida... Onde mais lhe percebia a brevidade era quando levava o neto mais velho à Escola, igual àquela onde aprendera o a, e, i, o, u. Vinha-lhe tudo à lembrança: os Pais que uma vida inteira na lavoura não os tirou da precisão, sempre iludidos pelo fascínio das vinhas; a Professora, cuja morte na curva da estrada, apanhada por um carro de praça, lhe ficou como o estigma de uma vida roubada por um Deus indiferente; os cânticos da tabuada e os vivas a Salazar pendurado na parede ao lado de uma Cruz e do Carmona como imagens petrificadas do medo; as brincadeiras no recreio de terra batida com os velhos do Asilo ao lado, sentados nos bancos de pedra e olhos no chão. Recordava a alegria do fim das aulas com a Mãe à sua espera, sempre de avental, um sorriso de bondade e um afago de calos. Dava a mão ao neto e era, agora, com se fosse a Mãe a perguntar-lhe: «Trazes muitos deveres?»

    Aborrecia-se por tudo e por nada com a Mulher que, num troco dobrado, também ajudava. Deixou de rir e falar só quando não podia ficar calado. Por vezes, até os netos o insuportavam. Passados uns meses, por plágio do que escutava a outros, foi a um Psiquiatra que lhe receitou meio lexotan de manhã e outro meio à noite e exercício físico. «Caminhe, sempre a plano, e convença-se de que está num novo e belo ciclo de vida!», aconselhou paternalista. Durante algum tempo assim fez, chegou a pedir-lhe uma segunda receita, mas, a sua tristeza não tinha fim. «Alegra-te! Até parece que tens uma doença! Falta-te alguma coisa?! Porra pró homem!», sacudia-o a Celeste.

    Abandonou os almoços semanais com os antigos colegas e isolou-se progressivamente. Mal se sentava no sofá, adormecia diante da televisão. Sempre fumara muito, mas, agora, fumava muito mais. Os cigarros iludiam-lhe as horas e consumiam-se num ápice. No Verão ainda passava mais ao menos. Ia à praia com a miudagem a encher-lhe o carro e as preocupações; passeava, com o sol a alegrá-lo, pelas redondezas do quarteirão, apreendendo os hábitos da vizinhança, onde descobriu um estudante de Arquitectura que fazia os trabalhos práticos diante da Igreja a tentar desenhar o seu Românico; surpreendeu-se com um reformado dos Transportes Colectivos pela educação requintada e vasta cultura, passando horas, no Café, debruçados no jornal de Artes e Letras, discutindo as novidades publicadas. Deprimia-se com a chegada do Outono, e o Inverno, então, gelado e húmido, de chuva perpétua a escorrer nas vidraças, até o disfarce lhe tirava. Sentia-se desalentado, sem apetite. Mais cansado e desolado do que quando trabalhava.

    Dormia mal, aos solavancos, e começou a acordar, repetidamente, com uma necessidade irresistível de urinar, facto que, pela anormalidade, lhe lembrou aqueles anúncios patéticos de jornais com elixires para a próstata. O Urologista consultado meteu-lhe no cu um dedo enluvado com gel e, sorridente, sentenciou: «Não se preocupe. Está tudo bem. Vou só pedir-lhe umas análises de rotina, incluindo o psa, e receitar-lhe umas cápsulas destas – escrevendo a receita – para tomar uma todos os dias, depois do pequeno almoço, só por uma questão de controlo.» Nunca precisara de tomar nada e, agora, eram só caixas de medicamentos. Não lhe bastavam os calmantes, acrescentavam-lhe, agora, cápsulas de libertação prolongada para a hiperplasia benigna da próstata, sem falar nos comprimidos para o colesterol que, posteriormente, o laboratório sentenciara alto...

    Uma tosse irritante, seca e rouca, com arrancos espasmódicos que não o deixavam dormir, a ponto de ter que se sentar na cama para serenar um pouco, levou-o ao Dr. Pias, seu médico de sempre. Como de costume, perderam-se um bom bocado a falar de política, descascando no (des)governo - fosse qual fosse, estavam sempre contra –, até, finalmente, começar a consulta. Depois de repetidas auscultações, o médico pousou, atonamente, o estetoscópio no tampo da secretária e disse: «Amigo Silveira, ou deixamos de fumar ou estamos mal!» Tremeu e perguntou: «Tem que ser mesmo não é?...» O experiente esculápio foi bruxo, mas atrasado. Quando, mais tarde, viu o pneumotórax solicitado, o Dr. Pias dissimulou como pôde o sobressalto que a chapa lhe causou. “Raio! Parece uma bola de ping-pong...”, dizia para si, observando no contra luz uma mancha branca no pulmão esquerdo.

    Os médicos amigos do Dr. Pias, a quem o recomendara, dividiram-se: uns, inclinavam-se pela operação, outros, que nem valia a pena. Aqui, Silveira viu-se a desaparecer numa onda escura, tomado de um pânico de afogado. Passou os dias a rebobinar o filme da sua vida; de noite, a Celeste ouvia-lhe a tosse, mas, não via as suas lágrimas a salgarem-lhe as faces. A morte, então, era isso: a perda da capacidade de se aborrecer ou divertir-se consoante a disposição do momento; deixar o chão e o céu, as caras dos filhos, dos netos, o corpo da Celeste, a liberdade dos passos, a comodidade das vontades. Percebeu tudo distante, como se nada pudesse repetir-se. Havia nos seus olhos uma penumbra de fim, na sua alma um choro irregressível. O alento do seu querido Dr. Pias, que o esperançava e defendia a operação – «Não tem nada a perder, Silveira. Vai ver que tudo corre bem. Não deixe de lutar, homem!» -, deu-lhe alguma coragem. Reuniu a Mulher e os filhos e concordaram que iria à faca. Apossara-se dele, estranhamente, uma raiva semelhante a quando nos acusam sem razão. Não fez quaisquer preparativos domésticos, não deu conselhos de despedida, nem sequer se preocupou com transferências de dinheiros. Assinou o termo de responsabilidade e «seja o que Deus quizer!».

    Quando, ainda na sala de recobro, abriu os olhos e se sentiu vivo, sorriu tanto que a Celeste o agarrou até gritar de dor com o aperto das costas. Regressou a casa com um saco de medicamentos e uma descrição escrita dos tratamentos futuros.

    Contudo, escassos meses demoraram aqueles. Cansava-se cada vez mais e custava-lhe a respirar. Sempre que vinha do IPO, sentia-se um frangalho, vomitava uma baba azeda, bebia leite e deitava-se. Apalpava as coxas e via-as desaparecer, o cabelo sumia-se em fiapos de algodão, só o rosto, diante do espelho, lhe surgia, singularmente, inchado. Estava disforme, Silveira não tinha gosto em si. Aos que o confortavam com esperas de melhoras, respondia com um sorriso triste que era mais um trejeito de legenda do que uma concordância correspondida. Ele sabia que o tempo se lhe escoava porque já vira o mesmo em outros. Lembrava-se sempre do Alberto que em meio ano se apagara. Já nem podia esconder os sinais do corpo que lhe recusava o esforço do gesto mais banal. Encolhia o sofrimento porque pertencia ao grupo daqueles que nasceram para o consenso e não para, por tudo e por nada, se reflectirem nas preocupações alheias. Talvez por isso, furtava-se, cada vez mais, aos encontros, não queria mostrar a sua decadência. A Celeste – já avisada pelos médicos – fingia-se desentendida, praticando uma esforçada normalidade diária, encolhendo a amargura, soltando as lágrimas só quando ele conseguia dormir, mentindo-lhe que o Operador lhe dissera que estava limpo. Quando, raramente, sempre com os netos pelas mãos, se ausentava, pedindo à irmã que a viesse substituir, distraía-se por Santa Catarina a comprar «umas roupinhas para os que me irão adoçar a solidão».

    No dia em que convenceu a Mulher que, a partir daí, cada um dormiria em quartos separados para que, ao menos ela, pudesse dormir umas horas, chorou toda a noite (ignorando que a Celeste fazia o mesmo), misturando as lágrimas com as dores.

    Não era só o corpo dela que se afastava, era a sua morte que se aproximava.

    Nos últimos dias que passou no Hospital, com uma máscara para respirar e tubos de soro para se alimentar, repetia, enquanto as forças lho permitiram, a quem o visitava: «O meu mal foi reformar-me. Despertou o bicho que estava amansado.»

    Agramonte recebeu-o com muitos e muitos colegas e amigos espantados com a brevidade daquela reforma. A Celeste, já sem lágrimas para chorar, tinha um alívio de dever cumprido; os filhos, com os nós das gravatas pretas descaídas - como aquilo que se usa apenas para cumprir um preceito -, falavam com os conhecidos; só os netos já crescidotes, escolares primários, tinham olhos de despedida - era a inocência que chorava.
    - Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
    • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro. Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

    9/30/10

    NO CIMO DO MONTE

    (Clique na imagem para ampliar)

    Cheguei ao cimo cansado, alagado em suor e a garganta ressequida. Com cuspe e o lenço limpei as reticências de sangue que, ao longo da subida, as silvas tinham escrito nos braços.

    Arranquei algumas giestas e sentei-me. Após a retoma do fôlego, estendi-me na caruma e deixei-me estar com as agulhas coladas à camisa a picarem-me levemente.

    Olho o céu por entre as copas dos eucaliptos: sereno, dum azul-marinho sem nuvens; o sol, intrometendo-se naquelas, beija-me o rosto, tento olhá-lo, fazendo uma pala com a mão. Assim fico, não sei por quanto tempo, absorto e feliz. Ouço o esvoaçar dos estorninhos, o pio dos rabilongos, o restolhar das perdizes, os estalos das madeiras e das folhas secas, o zoar das moscas contra as quais invisto, os sussurros cavos do sopé em que a aldeia existe.

    Um melro, à Guerra Junqueiro, desafia-me num voo de alvoroço. “Filho da mãe... Devias estar a ver-me há muito tempo, tens ninho perto e julgas que vou lá... Descansa bico amarelo que não te enjeito a criação...”. Inspiro o aroma dos eucaliptos a espantar agoiros de constipações inverniças, mando um grito só para escutar a resposta na largueza suspensa; umas pegas estarrecidas mudam de galho.

    A toda a volta, sem um intervalo, uma mínima fenda que seja, a sólida serrania esmaga numa ansiedade de respiro. São fieiras e fieiras de vinhedos ondulando por socalcos de geometria paralela com equidistâncias traçadas a compasso, uma dimensão verde que cega, um contraste de paz e de medonho, uma escadaria de santuário milenar que termina num apogeu de obelisco como se, depois dela, só Deus estivesse para receber as promessas cumpridas. Disseminadas nesta orografia de milagre, como temperos pictóricos, casais, modestos ou solarengos, adormecem na vertigem, ligados por veios terrados de muitos passos e encontros. Onde as gentes tomaram as posses que as heranças e os usucapiões determinaram, a casaria, aconchegada ao campanário que marca as horas e clama as almas, fez-se povoado para cumprir a história: ficar sempre como se é ou transformar-se no que se pode.

    Lá ao fundo, sob a transparência do calor, o rio, num S perfeito, desliza em vagar estival, cansado das fúrias de Janeiro que nenhuma barragem domina porque a natureza não se doma, respeita-se.

    Viro-me a um ruído conhecido. Lá vai ele, entre postes de electricidade, ronceiro, miniatura ferroviária, curvando quase a descair, resfolegando nas subidas como cavalo expelindo vapor pelas narinas, apitando forte não vá algum distraído oferecer a sua vida a uma coisa daquelas, subindo a custo o gigantismo da paisagem, até desaparecer como um tunante das montanhas.

    Começo a descida. Paro junto de uma antiga pedreira, agora um silvado. Os grilos calam-se, colho um pintor de touriga e recordo-me da lenda das facadas. É aqui que aparece o Pitonga. Morreu numa luta de navalhas com o Fragão que envelhece numa penitenciária. Diz o povo que pareciam dois lobisomens a espumarem de ódio. Porquê? Ora... porquê!... «Uns copos a mais, mulher para aqui, mulher para ali, és um corno, corno manso és tu, não és homem nem és nada, navalhas fora do bolso, e aí está a desgraça dum homem... Foram os dois por aí acima, um atrás do outro, “ladrão que te mato, não me importo de ir para a cadeia, vê se és capaz”, o Pitonga ficou logo estendido e o Fragão foi-se entregar à Guarda.» A alma do Pitonga pena nestes sítios, já houve quem a visse numa túnica de sangue; os guardadores das vinhas juram que é pelas três da madrugada, quando o sono lhes aperta e aqui vêm encostar-se, que o Pitonga usa esta ladeira para o sortilégio da aparição. Um, o Quim, ouviu-o e viu-o, em jeito de vagamundo, numa voz que parecia vir do cavado de um poço: «Quim, quando encontrares a minha, diz-lhe que não demore que estou com falta dela.» E ai de quem o desdisser porque o guardador já afiançou que lhe faz o mesmo que o Fragão fez ao Pitonga.

    O sol vai-se finando. No ocaso, uma mancha de desmaio alaranjado. É a hora dos velhos do Asilo desentorpecerem debaixo das ramadas. A algaraviada da criançada distrai a quietude. As Avé-Marias, no campanário, clamam à devoção. Abarco, num relance, a majestade da terra e aí vou eu sorrir à vida que as crianças espalham.
    - Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no Blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.