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7/22/10

TERESA

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Naquela manhã fria de Dezembro, um sol medroso espreitava pelas nuvens e as pessoas agradeciam folgando os agasalhos.

Encostado ao muro da morgue, eu via os carros a fazerem a curva dos trilhos dos antigos eléctricos. Em frente, no bem tratado jardim, uns patos pachorrentos grasnavam, satisfeitos, a aproveitarem as clareiras do céu, enquanto uns velhotes sumidos enganavam a reforma lendo as notícias dos crimes passionais e da necrologia. O hospital, velho convento do século passado, engolia doentes anunciados por esbaforidas sirenes que partiam, depois, silenciosas, cansadas de tanto berrar. Mais acima, pelas traseiras do quartel, entravam e saíam jipes com fardas.

A minha amiga Teresa, indefesa e inocente, era autopsiada ao mando da Lei. Uma pequena fila de carros funerários, enfeitados de cromados e interiores de púrpura, aguardavam vez numa postura de táxis. Uma morgue é um supermercado da morte de facturação consignada, com fingimentos dos compradores, como se os sentimentos se encenassem para melhorar o preço que a dor não discute, baralhada pelo espanto e as lágrimas.

Enquanto o sol vinha e ia, a minha memória remontava à meninice, àquelas tardes de sueca em casa da Teresa, com o Pai como parceiro, discussões sobre os ases, as manilhas e os riscos apontados numa mortalha com que ele fazia os cigarros de onça. A sesta semicerrava as portas do casario, mas nós passávamos o tempo nas algazarras das oportunidades dos trunfos. Quando o cansaço chegava, o Senhor Francisco – santo e honrado homem que fizera nome como feitor nos socalcos durienses – ia amainar as fúrias no sossego da sua cama, enquanto eu e a malta da escola íamos suar para o adro da capela da Senhora da Graça com cinco minutos a jogar a bola e outros cinco a procurá-la nas vinhas circundantes; ou, então, subir o monte de S. Pedro, cheios de praganas, à cata de grilos e dos ninhos de melros com sonhos de perdizes e coelhos à cintura em entradas triunfantes na aldeia como o Dr. Cândido.

Perto, alguém chorava, num gemido de desgosto, numa impotência revoltada incapaz de desarmar a irremediabilidade: uns olhos de criança tão vazios como uma estrela de madrugada de inverno, olhos de injustiça sem paga, de perda sem retorno.

Um auto-fúnebre movimentou-se e entrou, de traseira, no terreiro do Instituto de Medicina Legal. Um caixão negro veio lá de dentro, meteram-no naquele, tal uma qualquer carga, o viúvo, de luto carregado, sentou-se lateralmente e, no seu colo, a criança chorando uma saudade sem entender, ainda, o seu tamanho. Arrancou, e aí foi ele, para a confusão do trânsito, tentando recuperar a espera que a cova estava longe e devia ser tapada antes de o dia morrer. Tudo morre, os corpos, a esperança, a certeza, os dias, as noites. Morre tudo porque nasce.

O sol escondeu-se e o vento desarvorou pelas ruas. Uma ambulância, como um susto, afligiu a urgência hospitalar, os bombeiros, espavoridos, levaram a maca em correria, um deixou cair o barrete, outro gritou «deixem passar, por favor!», cabeças mórbidas debruçaram-se, curiosas das desgraças, e puseram-se a olhar umas para as outras a perguntarem por mais.

A minha amiga Teresa, cheia de vida e de trabalho, morreu-me no bocal do telefone naquele modo de dizer: «Sabes quem morreu? A Teresa! Nem sei bem como foi. O corpo sai amanhã do hospital.» Uma pessoa fica sem jeito, porque a morte não tem maneiras, sabe-se que ela existe, quase sempre nos outros, e, quando nos bate à porta, é como uma anormalidade que não se conta, uma realidade que não merecemos.

A meu lado há quem narre histórias de mortes violentas num consolo justificativo, numa desculpa de aceitação fatalista. Afasto-me para que o ruído da cidade impeça o escutar da morbidez.

Um gesto, uma paragem, o autocarro a chiar, depois a arrancar, levantando as folhas e os papeis do chão, as pessoas a segurarem-se para não se esmagarem. A Teresa, retalhada, lá se foi, os filhos sem Mãe, e o sol a fugir, e as lágrimas a caírem, e o vento a gemer, e o frio a gelar, e os lábios a tremerem, e o vazio da sua falta, e um buraco rectangular à espera no cemitério da freguesia. Para lá vai, transportada com pressa que os quilómetros são tantos e a Agência leva caro que se farta que a morte está pela hora da morte.

Gostava que morrer não fosse o fim da convivência, o arquivar da memória; não tivesse nada de prematuro ou inglório ou revoltado; que a felicidade se estendesse num tempo sem tempo - sem morte.

O carro que transporta a Teresa desapareceu por entre os renques do jardim onde os velhos fazem, agora, as palavras cruzadas; por entre a chaparia de insultos e vinganças de ultrapassagens em que as cidades se infernizam até ao choque final, até à morgue mais próxima.

Olhei para o alto e, cintilando-me nas lágrimas, o sol ia morrendo.
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro. Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

9/08/10

O ARREPENDIDO

Era uma vez um homem nascido de uma barriga de fome. A parteira da aldeia dera-lhe a primeira palmada e lavara-o num alguidar de barro. Cresceu descalço, de calções rachados no cu, comeu as azedas dos caminhos, fez saltar as pinhas na lareira, dormiu entre mantas de vindima, brincou no quelho com as galinhas, limpou o ranho às folhas das videiras, comeu cachos verdes escondido nas sombras de Agosto, aprendeu a tabuada e a escrever o nome com as mãos estendidas para a palmatória, jogou o monte e o sete e meio no adro da Igreja e chegou a tocar o sino para as missas de domingo.

Nos socalcos, conheceu a enxada da cava, o ferro dos saibramentos, o peso dos pulverizadores, a moderação da espampa e o carrego dos cestos nas fainas de Outubro. Nos terreiros de poeira, ou de lama, namorou com os olhos e com os lábios, dançou nos leilões, embebedou-se ao desafio, mostrou a navalha de ponta e mola, gabou-se de valentias diante de lobisomens nos Quatro Caminhos e das conquistas no Socorro e nos Remédios.

Os ralhos da Mãe e os rezingares constantes do Pai faziam-no olhar para o fundo do vale, onde a estrada, ébria de curvas, lhe sorria a evasão. Farto de brigas, da meia sardinha e um naco de pão ralão, da água-pé da cava, do pulverizador do sulfato e dos cestos atestados de uvas, abalou.

Ainda o sol não arreganhara os dentes a uma lua mal talhada, sem mala ou embrulho, meteu-se a caminho, acalentando os passos da fuga. Na vila ribeirinha ripou os tostões do bolso e tomou o comboio que o levaria à cidade grande. Ruminou sonhos de fato novo, raparigas para apalpar e possuir em becos escuros, filmes de mamas ao  léu, Cafés de gente fina, futebol em Estádios maiores do que a sua terra, ruas compridas cheias de gente.

O Revisor pediu-lhe o bilhete com uma voz de alicate. O rio, à sua esquerda, acompanhava-o, mas não era o mesmo que ele conhecia. O seu era manso e dava-lhe peixes para fritar; na sua borda, havia uma barraca onde, nas noites de Verão, adormecia com o seu deslizar como uma brisa de arvoredo. Mesmo nos Invernos em que ele galgava vinhas e transformava as ruas em canais, gostava de ouvir a água ali mesmo à beirinha, no cimo das rampas, sentir-lhe o cheiro a barro, aquele jogo de sobe e desce numa intimidade de risco e de estranheza. Quando ele regressava ao seu lugar, abandonando lama e entulho, partia-se-lhe o coração, desiludido com uma coisa tão linda ser capaz de deixar tanta tristeza. O rio que agora via não tinha fragas à mostra, era espesso e escuro, espremido por gargantas montanhosas e margens de lodos ondulantes; só os laranjais e o casario que trepavam até ao céu o alegravam.

Chegado à cidade, um bruá, sem origem e sem dono, esmurrou-o de espanto. Encostou-se ao varandim exterior, defronte das portas da Estação, entreteve-se a ver as saídas e as entradas, virou-se ao contrário para se rir com tantos carros a quererem passar ao mesmo tempo, como as poedeiras da Mãe à bulha por um grão, e aventurou-se, precavido, desconfiado de uma cilada.

A cidade do sonho era a confusão das gentes, que, de embrulhos nas mãos, corriam como se os tivessem roubado e fugissem, esbaforidas, de uma perseguição; gesticulavam, berravam, empurravam, cuspiam no chão e para o ar, gritavam de punhos erguidos ao mando de alto-falantes que esganiçavam palavras que ele nem percebia; pisavam os jardins, deitavam papeis para os pés e para os cantos. A cidade da lenda era um asilo de aleijados e cegos estendidos nos passeios, grupos de velhos encostados nas esquinas a falarem de futebol e de política ou sentados na solidão de bancos de praças despidas de árvores feitos lagartos ao sol; corpos jovens com caras gastas à espreita de carteiras distraídas; mulheres, de chumaços nos peitos, nas ruas das quinquilharias, a vomitarem palavrões de sexo estragado; rostos enfiados em máscaras a falarem sozinhos, rindo sozinhos, gesticulando sozinhos; loucos, de barbas desprezadas, a darem vivas a Reis de que nunca ouvira falar; velhas andrajosas, de cabelos encodeados, sapatos rotos e bocas sem dentes, sem um riso, sem uma mão de carícia, sem uma boca de ternura; crianças endurecidas por olhos de revolta e de escárnio, de dor e de desprezo, esticando os braços em busca de uma esmola como quem pede desculpa.

Não precisou de se afastar muito. Bastou-lhe subir e descer duas ou três ruas, dar a uma praça com uma estátua de um cavalo de perna alçada e um homem (devia ser alguém importante) em cima a segurar a rédea, para compreender que se enganara na ilusão. Olhou para o alto: o céu pintava-se de ferro velho. Não respirava como na sua aldeia, não ouvia um choro de criança a ecoar nos montes, sentia-se preso, e lá estava a torre da Estação com o relógio a marcar o tempo. Meteu as mãos nos bolsos, contou o dinheiro, comprou um bilhete de regresso, foi a uma taberna, logo ali ao lado, comer uma posta de peixe frito, bebeu uma taça de branco e voltou aos socalcos da sua terra.
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no Blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

7/31/13

SEM REMORSO

Ia com os filhos pelas mãos naquela tarde limpa de Setembro. Ainda era Verão e a cidade estava uma desordem. Os carros atrapalhavam-se, as pessoas amontoavam-se, as vozes confundiam-se. Não tinha para onde ir. As praias, sem nortadas, ficavam longe. Os filhos iam-lhe pedir balões e bolas de berlim; talvez, quem sabe, legos e bonecas; ou, até, quisessem ir ver a Pantera Cor de Rosa no cinema da Praça.

A cidade era uma serra cimentada, de sobe e desce, muitos ruídos e cheiros. As mãos suavam. Havia carros que chispavam a arrancarem com ódio nos pneus. Por isso suava; o medo faz suar. As montras tinham saldos, coisas desejadas por quem anda sempre com a mesma roupa e a mesma fome das coisas. Estava calor, os filhos pediram água. Entraram num snack-bar e sentaram-se num canto. A filha bateu-lhe com a mão: «Já viste aquela mulher com as pernas à mostra?»; «Já.», abreviou. Pediu dois refrigerantes para os três. Contou o troco, contava sempre o troco. «Não quereis um bolo?», perguntou; «Então, tu é que sabes.», responderam. Comprou dois bolos com os trocos, o maldito tanto vem como vai. Cá fora as pessoas espionavam-se. Os gigolos encostavam-se às portas das boutiques, despiam as mulheres, mastigavam pastilha elástica ou fumavam para o ar. Não era uma cidade americana ou talvez fosse. As cidades já não têm personalidade. Pedintes, com as próteses ao sol, choramingavam esmolas; cegos tocavam acordeon e batiam no chão com as bengalas metálicas. Não era uma cidade africana ou talvez fosse. As cidades são, cada vez mais, o fim do mundo, por isso elas se povoam, à noite, de fantasmas, que os que trabalham de dia escondem-se nos dormitórios das periferias. Vendedores de banha da cobra impingiam tudo, desde fios de ouro a duzentos escudos a espremedores de laranjas a dez. Não era uma cidade persa ou talvez fosse. Todas as cidades têm a confusão institucionalizada. Às paredes colavam-se palavras de raiva com símbolos em volta, carros, com altifalantes, cuspiam frases sem sentido, voavam pelas ruas com asas de bandeiras coloridas; havia quem acenasse ou fizesse manguitos. Um pouco à frente, as pessoas esmurravam-se, não sabiam em quem batiam, nelas próprias ou no rancor que as dilacerava. Os filhos quiseram saber o que era aquilo. «È a falta de amor.», filosofou; «Mas eles não se conhecem....», contrapôs o filho; «Pois não, se se conhecessem abraçavam-se.», enfatizou.

Era uma cidade de ruas compridas como rectos gigantes, estômagos de úlceras em movimento, úteros rasgados pela violência da pressa, labirintos de vigaristas e proxenetas. As ruas da cidade são a revolta de quem trabalha, o tédio do desempregado, o ócio dos desocupados; são os consultórios das doenças, os escarros da bronquite e da má educação, a sujeira da demagogia.

(Se tu fosses vivo, meu Avô, os meus filhos andariam contigo. Não precisarias de bengala. Eles seriam a tua esperança para te agarrares à vida. Seriam a minha gratidão por te lembrares de mim e, portanto, deles. Recordo-te, meu Avô inesquecível, com os meus filhos presos às minhas mãos, aquelas mãos que tu agarravas sem poderes falar, mal adivinhaste a morte naquele dia em que caíste à cama para nunca mais te levantares. Recordo-te pelas vindimas com as rogas a cantarem e a dançarem a chula, as concertinas pelos caminhos da nossa aldeia, os ferrinhos e os bombos nas pousas da meia noite. As vindimas agora são de empreitada como quem ajusta um muro de pedra, uma pintadela de oca nas paredes da casa, um esmalte no portão; não têm alegria nem cheiro, morreram contigo; os lagares servem para guardar tralha que se não usa mas não se deita fora, que, apesar de tudo, ainda há os sabem que quem guarda tem. Por que me deixaste tão cedo? Não viveste até à minha primeira barba? Lembro-me da tua serenidade à vaidade alheia e da tua firmeza ao desperdício; da tua quinta enorme como um convento de ordem religiosa com aqueles pomares, aquelas matas e aquelas vinhas, aqueles tanques e aquelas fontes, aquela taça repleta de peixes de várias cores, aquelas tílias com troncos de séculos e aqueles estábulos de estrume. Recordo-me de tudo porque eras tu que me davas o espaço e o tempo. Deixaste-me nesta balbúrdia em que conto um outro espaço e um diferente tempo para chegar junto de ti).

«Que tens nos olhos?...», notou-lhe a filha; «São as lentes que não devem estar bem, o sol é forte e põe-me os olhos vermelhos.», desenvencilhou-se. Comprou dois balões, encheu-os até à saliva, largou-os. Subiram à altura dos prédios, para cima deles, para o desaparecimento. As pessoas iam e vinham num ió-ió mole e denso. Um ídolo de futebol antigo despertou a curiosidade: nos olhos um vazio de aplausos, no andar o jeito arqueado que lhe ficou das fintas dominicais, no rosto as rugas da velhice sem exercício; no seu todo uma frustração de quem só presta para publicidade. Os bancos já estavam encerrados, o sol enfraquecera, as paragens dos autocarros amontoavam-se de bocas mudas.

Ia com os filhos pelas mãos certo de que um dia eles se desprenderiam como os balões, se esqueceriam dele, arquivando-o num Lar qualquer para morrer de velho e de solidão. Talvez, mas o remorso não seria seu.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado em 12 de Março de 2011 (Sábado), pelas 15 h, na Casa-Museu Teixeira Lopes, 32, Vila Nova de Gaia (perto da Câmara Municipal de Gaia). Convite e informações aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Portugal. Faleceu em 27 de Junho de 2012. A imagem ilustrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada para este blogue e poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

12/27/10

O SORRISO DO PIRES

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No arredor de Porto Amélia, na confluência da picada para Montepuez, ficava o polígono do Exército, que, nesse ano de 68, juntava, entre outros, o comando do sector e a companhia de caçadores com guarnição metropolitana e provincial.

O pessoal, depois do jantar, juntava-se, na esplanada da messe, a conversar, a jogar o xadrez, as damas, a sueca ou os dados. Muitos davam uma volta à Jerónimo Romero para bebericar umas cervejas frescas nos seus dois ou três bares. Esta era a maneira de fugir àquele ambiente soturno, qual plataforma de logística bélica, com chegadas e partidas de Unimogues, Berlietes e Jipes despejando camuflados poeirentos. Vinham do mato com a pressa de um banho e de um prato quente numa mesa, debaixo da qual pudessem meter as pernas. Traziam olhares esgazeados, como se fugissem de um susto; rugas precoces de cansaço repisado, como se toda a angústia do mundo lhes encolhesse a pele. Havia noites em que a sala tinha mais comensais forasteiros que residentes. Era vê-los, estômagos compostos, a dirigirem-se para os terreiros das tembas ou para as cubas-livres e uísques na sala do barco, se fosse dia de S.Vapor, e que, acostado no minúsculo cais, noite fora, carregaria algodão. Os que regressavam aos seus destacamentos disfarçavam a contrariedade com gargalhadas desvirtuadas ou afivelavam o rosto, tentando esconder a interrogação futura – os seus olhares tinham a sombra da dúvida, a antecipação do sofrimento.

João, daquela vez, ia sozinho. Não lhe apetecia trocar palavra. Sentia-se sem préstimo. A fala era consigo, num turbilhão silencioso. A informação chegara por mensagem relâmpago e secreta, mas, instantes passados, já todo o sector a conhecia. O Pires morrera na Serra Mapé quando descia para Macomia, fuzileiros já incorporados após nomadização. Ficaram a olhar uns para os outros, à espera de que alguém contestasse a notícia. Então ele oferecera-se, todo contente, para ir buscar alguns dos seus amigos de infância, e morrera? Assim: «Comunica-se a morte em combate do...». Como? Em combate? Mas ele fora só ali abraçar os seus antigos companheiros de escola, que não via há muitos meses, e vinha já. Tocava-o um aturdimento sem compreensão, uma amarga irracionalidade, qual mudez do pensamento. Quando, ao escurecer,a patrulha regressou, com o furriel alentejano enfiado num saco de dormir, as lágrimas saltaram como balas de revolta, bocas fechadas nas caras de cera. Uns devem ter pensado «Olha do que me safei.», outros «Que porcaria de destino este.». O comandante, habituado, ou fingindo que sim, chamou o soldado cangalheiro para transformar o Pires num soldadinho de chumbo à espera de um barco ou avião.

Atravessou a avenida com passeios de terra vermelha, fumando LM, sem se perceber. Subiu à esquerda, passou pelo palácio do governador com dois sipaios, envoltos em capas de lona, pasmados à entrada. Um pouco acima, debaixo de mangueiras gigantes, ficava a casa do inspector da pide, lendo, talvez, sob a luz coada de um candeeiro de pau preto, os relatórios da subversão; ao fundo, rodeada de acácias rubras, a casa do seu conterrâneo Jaime, onde matava a fome da comida das suas terras. Desceu, encurtando caminho pelas escadas, que ligavam a alta à baixa da pequena urbe, e no Pólo Sul pediu uma laurentina.Como era possível morrer quando a vida mal começava, sem pai nem mãe saberem, uma razão a justificar a imolação? Levantou-se, descendo a Rampa, passou pelo barracão dos monhés, anunciando uma fita indiana, e parou no muro sobranceiro ao Índico, que reflectia a prata da lua. À sua direita, numa restinga, o caniço do Paquitequete preparava-se para fazer de lupanar nocturno.

Subindo, agora, as dezenas de escadas, avizinhou-se dos edifícios administrativos, ouviu os ecos dos futebolistas a treinarem, no Desportivo, sob uns holofotes, lançando mais sombras que luz, foi falar com o Eustácio do Niassa, pediu-lhe o Land-Rover e desarvorou para a praia. A balalaica cacimbada, com o andamento, acentuava-lhe a friura. Era em Setembro e as noites enovoavam de humidade. O Pires não riria mais consigo. Contava-lhe anedotas alentejanas, vingando sempre o escárneo tradicional. Estacou junto à casa em que, aos domingos, a oficialidade se juntava. Buzinou e clamou pelo Gabriel Mazumbo. Pediu-lhe umas barbatanas e uma toalha. «Chi!, alfere, vai nadar,gora?!...» Sim o alferes era doido, estava “apanhado”, ia lavar a alma nas águas salgadas; ia purificar-se do nojo do mundo que só vomitava o sangue da morte, dos grandes sacanas que usavam o mando para chantagiar a obediência, era uma raça maldita de eunucos que discutia as fardas sem nunca as ter vestido. «Patrão, n´guenta frio!...» Parece-te, irmão negro. Tu também aguentas tudo, até as maluquices de um militar branco que não te deixa dormir e desinquieta-te da sonolência da fogueira de capim. Estou a ferver, meu amigo, uma caldeira queimando-me a consciência de que existo, mas sou um cobarde que não sai do rebanho, a ver se nenhuma vergastada do “pastor“ me quebra os ossos, me leva ao açougue.

Agasalhado por um dolmen, que o mainato retirou de um prego da parede, assentou-se num degrau. Fez-lhe sinal para vir para a sua beira. Ofereceu-lhe um cigarro e puseram-se os dois a fumar. Era tão serena aquela baía, desenhada em meia lua, as espumas das ondas como carícias de sensualidade! Ao longe não se erguiam adamastores tétricos ou gritos de afogados. Como eram belas as noites de África! Como era obsceno morrer-se num palco assim! Por que não tinha a terra condições para se transformar num céu? A natureza conversava entre murmúrios de amor, namorando-se e amando-se na concretização das paixões eternas, ciciando juras que só ela entendia.
Continua...
- Por M. Nogueira Borges*, Porto, 15/6/10.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato

3/16/11

AS BOLINHAS

A praia está, ainda, praticamente deserta. É uma manhã limpa com um sol já acariciante e uma saborosa envolvência de maresia. Aqui também há classes: de um lado, a área concessionada; do outro, a zona dos chapéus de sol. Na primeira, estão montadas as sombrinhas com as cadeiras reclináveis alugadas por bom dinheiro; na segunda, o preço é o carrego que cada um está disposto a transportar. Escolho, nesta, um espaço que não tenha de alterar pela preia-mar, espeto o guarda-sol, espalho as toalhas a delimitar território, liberto-me dos chinelos e da camisa. Vou até à orla, viro-lhe as costas, de frente para os prédios gigantes que se erguem como insultos de ganância, e comprazo-me com a babugem da ligeira ondulação a lamber-me os pés. As construções tipo legos, de traça usurária e sem decoro, são depósitos de corpos que aqui fazem a vingança quinzenal dos nevoeiros e das nortadas; alguém lhe chamaria arquitectura dos trezentos para dar lucros de boutique de shopping.

Lentamente, o areal vai-se enchendo. Uns, arrastando sobejos de sono, estendem-se, imediatamente, como sardões mal despertados; outros, esbaforidos pelo peso das tralhas, limpam o suor e, antes de se acomodarem, distribuem tabefes pela rezinguice infantil. Há de tudo: burlescos com óculos de esquiador, tias das revistas com panons transparentes e cosméticas burundangas, maternidades deliciosas que a tudo acodem sem um azedume, cabelos brancos que ainda não desistiram de usufruir a vida e transmiti-la à descendência, leitores de escrita light e de jornais desportivos, utilizadores de telemóveis com ares de executivos imprescindíveis ou de empresários sempre a facturar, gordas sem vergonha de libertarem as coxas e opostas de linhas geométricas limpando as areias como se fossem formigas.

Num súbito, a vizinhança da minha toalha inquieta-se: soerguem, uns, os cachaços do areal, despertam, outros, para uma montra apelativa, sorriem, elas, num jeito de brejeirice a dissolver o desdém, lançam, os mais entradotes, olhares nostálgicos. A aparição justificava o sobressalto. Há mulheres tão espectaculares que chegam a ser uma ofensa à inteligência: alta, sem exageros basquetebolísticos, cabelos longos, cor de libra Vitória, espalhados e deslizantes pelos ombros como sedalina, óculos de voleibol de praia numas faces trigueiras decoradas por duas argolas ciganas, busto voluntarioso de mamilos agulheados e defendidos por uma t-shirt justa que descia até a meio das coxas torneadas a fazer de mini-saia generosa, fita vermelha no tornozelo esquerdo que lhe dava uma ar jamaicano de prospecto turístico. O seu acompanhante, de paciência na cara e peso nas mãos, arvorava uma docilidade canina, ornamentado com um bordão no peito e um relógio todo o terreno. Enquanto ela ajeitava, a tiracolo, uma carteira tipo saco de flores tropicais, ele transportava um guarda-sol, duas cadeiras e uma bolsa de lona que lhe deve ter restado da guerra colonial. A beldade esticou uma enorme toalha rosa estampada com palmeiras, sentou-se, atirou, num desafio, a cabeça para trás, retirou os óculos (os olhos cintilaram esverdeados), passou os indicadores metódicos pelas sobrancelhas, tirou a t-shirt, e os seios, como molas, estremeceram de liberdade, numa provocação ao redondel, até se deterem firmes como dois ponteagudos marmelos. «Quem me dera ser bebé!», disse uma voz, «Cala-te, palhaço!», respondeu outra. O homem, depois de arranjado o poiso, pegou no tubo do creme e, num silêncio ruminante, começou a untá-la. Ela não falava, só lhe indicava com as mãos os locais onde queria o creme: mais nos ombros e nas costas. A cara, os mamilos, os braços e as pernas foi trabalho dela, em pormenor demorado. Terminado este, ergueu-se e foi até junto da ondulação lavar as mãos na areia. O seu andar era sensual como o corpo, com tudo no sítio, sem um acrescento ou uma diminuição, um fio dental a relevar umas nádegas afoitas e seguras, a respirar sexo por todos os poros. Tinha, todavia, um aspecto de súcuba, olhar esguelhado, que acompanhava sempre com um maneio da cabeça e das mãos a fingir que tirava as madeixas dos olhos. Fumava desalmadamente, soprando, pelo canto da boca, o fumo para cima, num trejeito de rufia de esquina, retirando as areias das pernas como se catasse piolhos. Estendida, de cigarro entre os dedos, puxou o guarda-sol para lhe aumentar a sombra e retirá-la ao acompanhante que continuou impávido diante das notícias da Bola.

Ao longe, por entre o amontoado humano, nascem os pregões dos vendedores ambulantes. Trazem, em cada braço, caixas de pasteis que propalam consoante a força das suas gargantas e o seu engenho publicitário. Uns, são incisivos: «Bolinhas!»; outros, mais enfeitados: «Boliiiiiinhaaaas!»; ainda outros, mais secos: «Boli!»; e os que soletram: «Há bolinhas com creme e sem creme! Há pasteis de amêndoa!» Os rapazes, ao chamamento, pousam os caixotes e distribuem bolinhas a torto e a direito a cem escudos cada uma. O calor vai apertando. As pessoas renovam unturas, passam os jornais a pente fino, também há quem leia Cem Anos de Solidão, estudantes preparam a segunda chamada, senhoras relaxam a fazer renda, discutem-se os milhões das transferências futebolísticas, arrematam-se as últimas amêijoas junto dos barcos dos pescadores.

Um Cabo de Mar e um Polícia, num roldão de apitos e vozes alteradas, investem pela praia num despropósito que confunde toda a habitualidade. Os banhistas espantam-se, pegam nas toalhas e interrogam-se, olham para o mar a ver se alguém está em dificuldade, o que será e não será, até se perceber, depois, que perseguem um vendedor em qualquer ilegalidade. Um dos cívicos, passo ligeiro, lança: «Àquele já lhe vou tirar as bolinhas!» Uma senhora, que fazia malha há uma eternidade e queria os netos sempre à sua volta, levantou-se da sua cadeirinha picada por um alfinete, deixou cair os óculos, e exclamou anelante: «Ó Senhor Guarda! O Senhor tem coragem de tirar as bolinhas ao rapazinho?!» O Senhor Guarda olhou-a, riu-se bondoso e prosseguiu o seu caminho, deixando um magote de risos encolhidos. A Avozinha fulminou-os, atrapalhou um sorriso atenuante, sentou-se, retomou a malha e afivelou a cara da boa fé injustiçada, enquanto a aparição, de mamas ao léu, levantava a juba e desenhava um trejeito malhadiço a lembrar uma preguiça sardónica.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em Adobe Photoshop e PhotoScape e poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

2/08/11

OS FRONTEIRÓMETROS - 1

Quando, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, lhe entregaram um impresso para indicar três Quartéis onde gostaria de ser colocado, depois de terminado o Curso de Oficiais Milicianos, o soldado cadete João coçou a cabeça e pediu para entregar aquele no dia seguinte. De noite, na caserna, depois da instrução nocturna, enquanto o sono não se apresentava, magicou no caso. Tinham de ser terras onde houvesse Destacamentos de Infantaria. Porto foi logo a sua prioridade. De lá tinha sido arrancado, o curso de Economia no início, e gostaria de regressar à velha cidade granítica, mesmo que por escasso tempo, pois, sabia-o, mais tarde ou mais cedo, abalaria, num barco qualquer, para uma frente da guerra colonial. Era uma circunstância sentimental, uma maneira de regressar aos velhos lugares, embora com uma farda. A segunda hipótese levou-o a Vila Real, onde, em tempos, no 13, o seu Pai cumprira a obrigatória servidão militar. Seria interessante pelo simbolismo e, como ficava a escassos quilómetros de casa, podia, até, ir e vir todos dias, excepto aqueles em que a Ordem de Serviço o colocasse na escala. Mais difícil foi acertar com a terceira opção. Excluída Lamego, não coadunável pela sua especificidade, além de não estar fadado para Ranger ou travessias de rappel, sobrou-lhe Chaves. Nesta cidade raiana, na década de sessenta, quadra em que esta narração decorre, localizava-se o Batalhão de Caçadores Especiais 10, com o epíteto de fronteiros de Chaves, sempre excelentes e valorosos, unidade com fama de dura e rigor militarista, tanto na corporação castrense como nas margens da sociedade civil que, de algum modo, lá tiveram ou tinham familiares. João, também, não o ignorava, mas devia completar o quadro das três preferências, sempre confiante que, se não lhe satisfizessem a primeira, a segunda, ao menos, não lha recusariam. Com essa esperança fez as malas e partiu para casa, mal lhe deram a bicha de Aspirante, a aguardar futura ordem de marcha. Pouquíssimos dias depois, com um indisfarçável sorriso e sem espanto – que, das coisas militares, ele já de nada se admirava - , o carteiro entregou-lhe uma carta onde vinha a convocatória do Exército para se apresentar em Chaves.

Numa reluzente manhã domingueira de Julho do ano de sessenta e seis, ao fundo de uma frondosa Avenida, em meia-lua espaçosa, viu o seu novo destino, admirando-se por, logo à primeira vista, dele ter gostado. Saiu do automóvel emprestado pelo Pai, correspondendo, ufano, à apresentação de armas do sentinela, e solicitou esclarecimentos ao Sargento da Guarda. Se pelo brilho do dia, pelo descanso da incógnita acabada, ou a frescura do edifício, foi satisfeito que estacionou o carro no parque, fez as apresentações ao Oficial de Dia, arranjou quarto, pousou a mala e percorreu, sozinho, as divisões da sua nova casa. O Quartel, reverberando ao sol, fazia-lhe esquecer a soturnidade conventual da Escola Mafrense, que, em depósito de meio ano, sempre lhe lembrara penitências de castrados fradescos, cumprindo, envoltos na escuridão, martirológios irracionais. Agora tinha, apesar da sua condição de milícia forçado, o calor e a brancura de um espaço que o aprazava. Mal ele sabia, infante ingénuo e generoso, que dentro daqueles muros, com um punhado de iguais, cozeria, no seu mais feliz período militar, o alimento puro e belo da amizade perdurável.

Em posição altaneira à cidade, como se velasse pelas suas gentes, costas defendidas pela Serra Amarela que se estendia, numa esquerda longínqua, para se grudar à cordilheira Castelhana, o Batalhão tinha uma ampla Porta de Armas, acedendo-se ao Comando e respectiva Messe de Oficiais através de uma escadaria bordejada por canteiros de verdura ou por dois curvilíneos arruamentos empedrados subindo ligeiramente. Atrás daquele, uma enorme Parada, impecavelmente limpa, com as casernas laterais, e, no cimo de uma pequena elevação cimentada, o Refeitório das Praças com a Messe de Sargentos ao lado. Depois do almoço, João desfardou-se e resolveu dar uma volta pela velha urbe onde Trajano deixara história. A apresentação ao Comandante da Unidade, dos Aspirantes esperados, seria feita na manhã seguinte, assim como a atribuição das tarefas futuras. Desceu a pé a Avenida que subira de manhã; passou no largo, onde, todos os anos, se amontoavam os feirantes da festa dos Santos; desaguou no jardim do Tabolado, em frente ao Liceu, e entrou no Aurora. Sentou-se, pediu um café, mirou e remirou o ambiente. Numa mesa do canto, escutado por uma tertúlia de catecúmenos, viu Nadir Afonso, que conhecia dos suplementos literários, de barbas grisalhas, provavelmente em vilegiatura flaviense. Reparando, descuidadamente, num jornal abandonado em cima do balcão, levantou-se, pegou-o, perguntou «Posso?», ressentou-se e, afastando a chávena, abriu-o sobre a pequena mesa redonda: era o Notícias do Tâmega. Sobre ele se debruçou, fingindo compenetrada inculca, mas reparando sempre em quem saía ou entrava. Deixou-se estar um bom bocado, pernas cruzadas, queimando cigarros. Eram bonitas as raparigas de Chaves... Depois, desceu a Rua de Santo António, virou à direita para as Termas, visitou a zona dos balneários cheia de aquistas que se amornavam nos bancos a fazer horas para a ração da água, retrocedeu para a Ponte Romana, sob a qual um Tâmega estival corria serenamente para a lonjura do mar, e reiniciou o trajecto ao contrário junto do posto da PVT. Os domingos não são bons dias para se perceber uma cidade, ausentes as rotinas, as surpresas e o nervosismo do quotidiano utilitário, mas pareceu-lhe – confirmado pelos meses seguintes - que Chaves era uma cidadezinha aconchegada, de conhecidas vizinhanças, limitada pelas faldas dos serros circundantes, onde, contudo, fervilhava um próspero comércio e um tolerado intercâmbio fronteiriço, um sopro suave e morno de fraternidade embrulhado num orgulho regionalista.

Quando regressou ao Quartel, deu, num abraço de risos e brados, com o Bandeira, seu antigo companheiro do Brotero, agora reencontrado em outra sorte. Pela noitinha, quanto viam a RTVE na sala da Messe, juntaram-se-lhes, vindos do Porto, entre outros, o Altino e o Ângelo que, feitas as apresentações, vá-se lá saber por que resultado afectivo, logo combinaram ficar no mesmo quarto de quatro camas e que tinha o número doze. João sentia necessidade de partilha, como se procurasse almas gémeas em que confiar. Boa parte da noite passou-se no desenrolar das experiências mútuas, numa pressa de conhecimento que selasse um pacto.
Continua...

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

8/04/10

A ROGA

(Clique na imagem para ampliar)

Em Setembro despertava-se da moleza de Agosto. Os que haviam debandado para banhos regressavam com as preocupações recobradas e os que tinham ficado esqueciam as sestas. Os casais iniciavam os preparativos da novidade: consertavam-se os cestos e soldavam-se as latas fundeiras; lavavam-se os lagares e as prensas; varriam-se os quintais, mesmo sabendo que eles ficariam imundos em poucos dias; verificava-se o estado dos toneis depois do dessarro e da mechagem; oleavam-se as tesouras, areavamse os potes e arejavam-se os armazéns e os cardenhos.

Com a esfolha feita os lavradores vistoriavam as vinhas, afligiam-se com um ou outro podre, faziam figas aos agouros de chuvas temporãs - às vezes desejavam-nas perante a secura da polpa dos bagos -, escutavam os feitores, consensualizavam o início das vindimas e mandavam vir as Rogas que, ajustadas com o pessoal diário da terra, seriam os intérpretes da harmonia final de um solfejo tecido só Deus sabia com que receios.

Eram os serranos. Vinham das terras de Baião, ali na fronteira do maduro e do verde, ou das cercanias beirãs em que os migalhos de cepas se perdiam nos fraguedos sem benefício. Juntavam-se por afinidades familiares, de amizade, ou pelos empenhos aos rogadores. Desciam ao Douro certos de uma jorna aumentada com que cultivariam os seus bocados ou reporiam os gastos com as vestimentas das festas de Verão. Cantando e dançando a chula ou o malhão ao som das concertinas, dos bombos, dos ferrinhos, das harmónicas de boca e, em alguns casos, das violas braguesas, chegavam cansados mas alegres. Roga que não exibisse este instrumental não era roga, porém, um ajuntamento despersonalizado sem hipóteses de renovação assalariada, a não ser que, no ano seguinte, se incorporasse em outros grupos de merecimento. Enchiam as estradas e os caminhos rumo às Quintas, onde, durante longos dias, cortariam as uvas, transportando-as até os lagares que, depois, pisariam em noites de pousa, quantas vezes prolongadas em incubações urgentes.

Eu via-as a meio do Caminho Velho que dá de Remostias a S. Gonçalo. Traziam, penduradas nos bordões, as trouxas para acartarem os cestos, alguma roupa extra para maliciar em bailaricos e, nos rostos congestionados, um entusiasmo festivo. Alcançado o alto sobranceiro ao vale vinhateiro - a quem os antigos chamavam Poço do Vinho de Feitoria - que se estende até os muros do Peso, os homens e as mulheres da Roga cumprimentavam efusivamente os já conhecidos de vindimas anteriores. Os novatos, medrosos e rituais, de olhar esquivo, insinuavam-se no agrupamento até se igualarem na confraternização. Combinavam-se rodadas de quartilhos e enrubescidos bailaricos. Os patrões desciam as escadas que ligavam a cozinha ao terreiro, as reverências prodigalizavam-se no contágio da euforia, e havia quem distinguisse a dona da casa: «Vindo eu daqui tão longe/ Sem pôr os pés na calçada/ Venho dar os parabéns/ À senhora esposada.» O som da concertina e dos ferrinhos alegrava os corações que se esvaziavam de diferenças. Quando a noite se anunciava, a ceia retemperava esforços e espevitava vigores. O Feitor aconselhava o deitar cedo; os homens e as mulheres escolhiam os lugares em cardenhos separados, à mistura com pilhérias libidinosas.

O dia começava cedo com dejejum de bagaço, broa e uma lasca de bacalhuço; a meio da manhã, serviam-se batatas com sardinha de barrica. O retinir das tesouras, pelos anfiteatros do gigantesco Coliseu Duriense, confundia-se com as cantigas e os chistes. Todos, novos e velhos, isentavam-se de pudores, mas, não chegavam ao destempero. Os novos arquitectavam namoricos e muitos beijos se roubavam a coberto da folhagem dos bardos. Os velhos, de nostálgicas sensualidades, instigavam-nas como num remorso por tempos de pouco proveito... As mulheres cortavam os cachos com a preocupação de não deixarem respigo ou bagos pelo chão, e gritavam «cesta!» para que o rapaz mais próximo a levasse para os cestos vindimos. Os homens aproveitavam para descansar, limpavam o suor, esvaziavam o garrafão e fumavam um cigarro; quando a fiada se completava, punham as trouxas nos ombros que fixavam nas testas com tiras de couro ou pano de saco. Subiam dos côncavos profundos, desciam as encostas arriscadas, arrastavam-se pelas estradas de asfalto escaldante, poisando, a intervalos, os carregos nos muros, para prosseguirem, depois, ao compasso da concertina ou da gaita de beiços do primeiro da fila, até alijarem a carga, com bufos de alívio, nos lagares.

Terminado o trabalho do dia, as mulheres e os homens aperaltavam-se – mais elas do que eles -, misturavam-se aromas de perfume Tabu, os rostos recuperavam  serenidade. No fim da ceia juntavam-se os instrumentos, afinavam-se modas e dançava-se sob a luz mortiça. Acudiam aos portões trabalhadores de outras vindimas, pediam licença, o quinteiro transformava-se num palco de gente saltitante, requebrada, envolvente, com o malhão no corpo, a chula na alma, a satisfação nos olhos, o riso nos lábios, o fogo no sangue e a disputa concupiscente das raparigas mais bonitas.

O rogador (como me lembro!) era um tipo alto, pescoço de bisonte, ombros hercúleos, mas – contraste humilhante - , mancando desajeitadamente; quando andava, a sua perna direita parecia que enxotava cães que se lhe tivessem filado. Chegava-se à Micas, mulher de muitos homens, e berrava-lhe, julgando que cantava: «Ai anda cá ó cantadeira/ Vem p´ra minha beira/ Anda cá p’ró pé de mim/ Ai quando estás à minha beira/ Querida cantadeira/ Ai para mim é um jardim.» A Micas, de olhar malhadiço, respondia-lhe: «Já te ouvi querido cantador/ Estou agora a chegar/ Aqui estou à tua beira/ Ouve lá ó cantador/ P´ra contigo dançar.» Depois, num repente, descabreavam pelo meio dos outros, que se afastavam a entusiasmá-los com palmas, num vira e revira incrível. Ele agarrava-a, soltava-a, recuperava-a, sempre a abanar com a perna, e a Micas, agitada num riso de gralha, a deixar-se levar com o descaro da experiência. Acabada a música, ficavam à espera da seguinte, enlaçados, a arfar, de olhos desassossegados.

Quando as estrelas iam altas e a lua se pousava no Cume, o Feitor ordenava o recolher. Apagavam-se as luzes, fechavam-se os lagares e os portões, os cães ladravam, a gataria reatava o cio, os bêbedos esborrachavam-se contra as paredes, arremessando asneiradas e desafios de navalhas, a brisa de S. Pedro amaciava frémitos e o sono vinha pesado que, ao outro dia, a vindima e as cantigas continuavam.
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  •  *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro.
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

11/06/09

Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulo II

Sobre M. Nogueira Borges, O HOMEM E O ESCRITOR - Deste jovem contista, que escreve também poesia, várias publicações se dispersam já por inúmeros jornais. Escrevendo norteado pelos mais belos e justos ideais, a sua prosa é fluente e escorreita como um espelho a reflectir o seu espírito irreverente e insatisfeito. Apesar de todos os defeitos que lhe possam atribuir, ele é, acima de tudo, um enamorado da verdade e orgulha-se de pertencer aquela estirpe nobre de homens íntegros de antes quebrar que torcer e que não sabem, por natureza, mentir ou fingir.

M. Nogueira Borges não se filia em escolas literárias. Os seus escritos são misto ficção e realidade, projectados no tempo e no espaço de homens da rua, da aldeia, ou da cidade, da Metrópole ou do Ultramar. Tendo cumprido serviço militar em Moçambique, daí trouxe um conhecimento mais profundo sobre os homens e uma mais extensa visão sobre os seus legítimos anseios quotidianos. Não admira, pois, que a paisagem e o homem de África aqui apareçam, despidos de artificialismos. Acima de quaisquer limitações ele interessa-se pela mensagem humana e límpida que transparece nas suas ideias escritas e nas personagens das narrativas. Não é, portanto, a ânsia de se filiar ou de emparceirar nas letras que o levam a redigir os impulsos da sua imaginação sã e fértil ou a captar os sucederes do dia a dia, mas, muito simplesmente, a natural tendência para comunicar com os seus semelhantes. O conto é-lhe uma expressão livre de ideias e sentimentos que causam no leitor compaixão ou repugnância ou protesto, através duma capacidade inata de quem escreve. Tudo o que for livre, será de facto, verdadeiro e absoluto.

Possuindo diversa poesia inédita, esta prosa é escolhida entre as produções do melhor tez. Ela é a expressão do seu carácter modelado e do seu temperamento intransigente e põe, acima de tudo, as suas convicções que, apesar da ingratidão, nunca traíu, ainda que na vida isso já lhe tivesse custado incompreensões, represálias e até dissabores. Os seus contos são verdadeiros poemas com personagens, ora humildes, ora penosamente burgueses, ora semi-deusas postas a ridículo, escritas numa prosa segura e de forte estilo, ainda que indefinitivo, donde emerge uma lição de beleza pelas almas que sofrem sem protecção divina ou humana aguardando um amanhã melhor.

É com manifesta satisfação que presto homenagem ao camarada e ao companheiro de estudos e do serviço militar pelo nascimento do seu primeiro livro. E finalmente, não posso deixar de fazer votos por que o público não desperdice esta oportunidade de ir ao encontro da sua mensagem e que a crítica o leia a fim de se poder interpretar, com total discernimento a verdadeira dimensão artística dum espírito que nasce com a esperança de que NÃO MATEM A ESPERANÇA.
- Armando Figueiredo.


Não Matem a Esperança - Capítulo II

Havia noites terríveis na sua solidão. Noites de cinzeiros cheios de pontas de cigarros, de livros abertos, ao calhar, na secretária, de linguados escrevinhados com fúria desesperada, de fumo intenso infestado um quarto de janelas avariadas.

Noites de solidão dum ser-pensante que ainda pretendia ser poeta: poeta do vento, do amor-AMOR, da chuva, das prostitutas miseráveis que vendem a sua carne aos traficantes das esquinas ainda mais miseráveis, poeta dos pobres e dos oprimidos, das crianças que tomam banho nuas na fonte do jardim público da cidade. Ânsia de sair da opressão das quatro paredes em que se julgava sufocar e ir por essas ruas, sem rumo, gritar as poesias da sua alma-caldeira-de-revolta e atirá-las, como murros de pugilista, à cara de certas pessoas, enfiá-las pela boca abaixo para que as mastigassem. Pessoas egoístas que só pensam em si, que julgam ter nos outros uns bonecos de carne e osso que funcionam com corda; que gostam de ser bajulados, de sentir o reconhecimento escravo dos outros; que se lançam em momentos de fraqueza na ambiguidade da vida; que submetem a si; através do dinheiro (ganho sabe-se lá como), os seres dignos que se não queiram deixar borra e que são obrigados a aceitá-los por girarem no seu meio. E, raios! Que fingem como uns porcos sujos (se é que os porcos fingem), que julgam fazer dos outros parvos, tipos desconexos no essencial, querendo lançar os outros na sua confusão.

Incompreensão, interesses fúteis, preconceitos sociais estúpidos, mentes atrasadas e sem visão, uma sociedade moribunda, onde a família – seu núcleo formativo – é cada vez mais um foco de desunião, consequência de cobiças de bens possuídos e que geram as invejas – e uma pessoa a viver no meio disto. A viver no meio de comodistas bem colocados na vida, de cobardes e de traidores que lançam os inocentes para a fogueira, acompanhados da solidão que se sente no meio duma grande multidão. E ouvem-se palavras, só palavras, enfeitadas com promessas de liberdade (que nunca mais chega e era preciso ter chegado há muito), perfumadas ora de falsa importância capitalista, ora dum mais ou menos puritanismo poético e que os burgueses escutam refastelados em poltronas, sossegados se os defendem, inquietos e nervosos e revoltados os atacam; e, entretanto, os autênticos defensores da liberdade vão continuando a morrer nas mãos de homens que têm pelos no coração. Mas o tribunal do futuro há-de julgá-los a todos. Um novo Nuremberga se criará. E há programas de televisão que, como diz o crítico, demonstram até que pontovai o embrutecimento das massas e que o povo vê e ouve com a amorfiahábito de passados artificiais a fazer horas de ir para a cama com a mulher; e há seres humanos que são obrigados a viver com tudo isto a martelar-lhes os sentidos.

E, por isso, ele cada vez tinha mais pena da sua esperança do futuro, que amava com consciência e razão. Reconhecia-lhe a fluidez limpa, sem mancha (por enquanto), duma alma e de um corpo que eram a sua vida, a sua fé na felicidade. Ela o compreendia, sentia as mesmas angústias duma solidão que as pessoas determinavam. E, então, gritava-lhe: «Cautela minha esperança! Não faças como os outros dizem ou te pedem. O que eles querem é envenenar-te, violar os teus sentimentos virgens e inocular-te o vírus da ganância e da parcialidade. Deixa-os! Deixa os outros! Foge deles! Deles, os papões, os vampiros da vida «que comem tudo e não deixam nada». Mas eu tenho pena de ti. Porque sei, tenho a certeza (certeza cruel!) que, também tu, à medida que cresceres, te deixarás levar pelo rio da podridão e da decadência moral. Amanhã serás como eles, os outros, e irás receber uma medalha pelos bons serviços prestados à maldade da sociedade. E se eu choro, minha esperança, é porque sei que sou impotente para impedir a tua contaminação, é porque sei que até tu, tu que és a minha última esperança, morrerás no conhecimento do meu solitário mundo.».

Mas, enquanto a sua esperança não morria, ele ia vivendo com ela a seu lado.
- Continua.

8/29/11

Entre Porto Amélia e o Douro - Em tempo de Festas de Nossa Senhora do Socorro...

Em tempo de Festas de Nossa Senhora do Socorro  na Régua / Douro, recordo:

Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Por M. Nogueira Borges – Publicado no boletim de Festas de Nossa Senhora do Socorro – Peso da Régua - 1994. (Atualização)

Conheci-o em Porto Amélia. O meu destacamento, sediado em Quelimane, viera substituir uns "cocuanes"* que estavam de regresso à Metrópole. Para trás deixava a luxúria dos palmares de Penabe, o esmagamento das infindáveis plantações de chá do Gurué, o silêncio e os ruídos da selva esplendorosa de Mocubela ou Maganja da Costa, a confraternização da boa gente da capital da Zambézia.

Foi em Março de 1968. Em Lisboa, Salazar ainda não agonizava, e Marcelo Caetano repartia o seu tempo entre a Faculdade de Direito, a reescrita do seu Manual de Direito Administrativo e o seu escritório de jurisconsulto ali para os lados da Rua do Ouro, mal sonhando que, em finais desse ano, ocuparia S. Bento para assistir, num desterro brasileiro, ao funeral do Império. Em Lourenço Marques, a Polana estava cheia de sul-africanos e os ecos do Norte mal chegavam às esplanadas.

O Jaime Ferraz Gabão era, a par da sua actividade profissional numa empresa algodeira, o correspondente, para o distrito de Cabo Delgado, do mais prestigiado jornal Moçambicano - o Diário de Moçambique** - e criava, semanalmente, uma página regional onde dava oportunidade a jovens colaboradores. Uniu-nos a paixão pêlos jornais. Essa afinidade gerou entre nós uma profunda estima e, com o tempo, à medida que nos íamos conhecendo, uma amizade tão grande que, ainda hoje, à distância de vinte e seis anos, nem sei como definir.

O Jaime era uma alma generosa e não queria morrer com remorsos nem deixá-los aos vivos. Abandonara a Régua quando os seus sonhos se desfizeram e a realidade que os seus olhos contemplavam era tão crua que não hesitou quando um velho amigo o convidou para abalar até às paragens do indico.

Feito, posteriormente, o reencontro com a Mulher que sempre o acompanhou até ao fim dos seus dias, o meu saudoso amigo ganhou a paz a que todo o ser humano tem direito quando se está de bem com Deus e os seus semelhantes.

África dera-lhe a razão da vida e a justificação para a partilhar. Sob o tecto africano, nos dias abrasadores ou nas noites do cacimbo, o Jaime consumia e retemperava as energias de um homem que, no nosso Douro, herdara o amor do trabalho honrado. Nunca foi patrão nem capataz, nunca ostentou ou humilhou, nunca cortejou poderosos nem desprezou deserdados, nunca separou brancos de um lado e pretos do outro. Amou a África porque a África - caros leitores - é encantamento deslumbrante, um chamamento emocional que arrebata, uma sedução tão arrepiante que não há palavras para a descrever, só sentindo-a, calcorríando as picadas inóspitas e engolindo o seu pó, bebendo água do coco ou dos pântanos solitários, aganando sob o fogo do seu sol ou tremendo nas suas madrugadas de névoa.

Eu entrava em casa do Jaime Ferraz Gabão sem bater à porta, sentava-me à sua mesa sem perguntar onde era o meu lugar, conversávamos horas sem fim no deleite do entardecer, íamos e vínhamos pelas ruas e cafés de Porto Amélia com a naturalidade de quem vivia o tempo todo na fruição plena da fraternidade e as areias da praia de Wimbe já conheciam os nossos pés nas manhãs de Domingo.

Findo o meu tempo de serviço militar regressei à minha aldeia e o Jaime por lá ficou. Ainda recordo, comovido, as nossas lágrimas de despedida.

Um dia, nas sequelas da tal exemplar descolonizaçâo, ele voltou, também, às suas origens. Foi um trauma de que nunca se curou. Aquilo foi como uma traição que, na sua boa fé, não contava; um murro medonho na esquina da sua vida, na pureza da sua certeza patriótica. Desgastado e amargurado, vendo, mais uma vez, o seu ideal a fugir-lhe, mastigou em seco muitas desilusões e incompreensões. Pertencia àquele tipo de homens que não tem pele de elefante porque cultivava a franqueza e a capacidade de perdão. Custava-lhe a ruindade à sua volta, os anátemas dos retornados, a indiferença por uma terra e por uma causa que interiorizara tão profundamente que alturas tinha em que já não sabia se as raízes eram mais fortes - ou mais fracas - do que as saudades dolorosas dos batuques, do cheiro das queimadas, dos dias em mangas de camisa, da leveza das brisas da baía de Pemba, do carregado das trovoadas no mato, do odor a catinga ou dos gritos da hiena sem companhia.

O jornalismo enganou-lhe as recordações, sublimando-as em descrições sempre apaixonadas mas nunca desonestas. Sabia que um jornal, fosse qual fosse o seu dono, não era um palco de propaganda, nem um púlpito de ressabiados pessoalismos, nem um ócio de frustrados a envenenarem relações, nem um palanque onde os vencidos políticos ruminassem vinganças. Praticou um jornalismo de transparência porque não ocultava o relevante e, quando assumia a opinião, não ofendia sentimentos nem provocava a consciência alheia. Tinha a educação herdada do berço e cultivada no pragmatismo do quotidiano. Escreveu muitas páginas de memórias das terras e das gentes por onde andou e viveu sem verbalismos ou maniqueísmos. Viveu o dilema dos que, conhecedores dos largos espaços, se ressentem, sofrídamente, das estreitezas dos horizontes, onde, afinal, a poesia da alma se reflecte no limite dos muros da indiferença das coisas e das pessoas. Sem sabedorias arcádicas ou carreiras/academistas, mas possuidor de um entusiástico autodidactismo. O Jaime Ferraz Gabão transformava a simplicidade escondida na mais bela descoberta. Homem solidário, condoía-se de um pé descalço e não dominava as revoltas do seu sangue. Se é preferível a responsabilidade dos gestos que não praticamos porque outros nos impedem aos que não fazemos porque a eles nos recusamos, o Jaime culpava-se de todas as injustiças do dia a dia da vida. Era um espírito em permanente responsabilização e nunca contente de ver realizar-se o que se deve. Se aqui recordo o Jaime Ferraz Gabão neste livrinho das Festas em Honra de Nossa Senhora do Socorro, onde ele sempre colaborava com alegria, não é só para que conste, mas também para implorar à nossa Padroeira que, não se esquecendo de todos nós - os vivos - não olvide o meu querido e saudoso Amigo que, na Fé, viveu sempre, mesmo quando a morte já lhe rondava os passos.
- Por M. Nogueira Borges – Boletim das Festas de Nossa Senhora do Socorro de 1994 (“recorte” cedido gentilmente por J A Almeida).

* - "cocuanes" termo adaptado do idioma macua e que quer dizer velho(os), no caso: "...viera substituir uns militares mais antigos".
**retifico - Jaime Ferraz Gabão era correspondente e distribuidor para Cabo Delgado do Diário de Lourenço Marques com sede em Lourenço Marques, atual Maputo. Embora colaborasse eventualmente com outros jornais moçambicanos e portugueses, o Diário de Moçambique estava sediado na cidade da Beira e, se a memória não me falha, seu correspondente para Cabo Delgado era o também saudoso Administrador Zuzarte.
  • Jaime Ferraz Rodrigues Gabão citado no portal do Sport Club da Régua - Aqui!
  • Cartal de Longe - Lembrando o cidadão e  o jornalista Jaime Ferraz Rodrigues Gabão - Aqui!
  • UM DE NÓS - Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Aqui!
  • Várias 'ligações'(post's) que comentam Jaime Ferraz Rodrigues Gabão - Aqui!

RECORDANDO... - Por Jaime Ferraz Rodrigues Gabão, a propósito das Festas de Nossa Senhora do Socorro

Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Por M. Nogueira Borges – Publicado no boletim de Festas de Nossa Senhora do Socorro – Peso da Régua - 1994.


3/25/11

CARTA (IM)PROVÁVEL

Para uma MÃE... para uma Esposa, para um Irmão(a), para um Familiar... para um Amigo(a):

   Não sei o que queres de mim, diga ou faça. Olho-te para lá dos teus olhos, como se quisesse entrar na tua alma, lembro a tua cara de criança, quando te conheci, sorriso aberto e feliz, e é como se regressasse ao tempo da inocência, ao pensamento limpo, sem nódoas. Tanto quis que a nossa vida se desenrolasse em harmonia, com tudo lindo como o teu rosto! Agora, quando te fixo de lado, para, julgo eu, não te distrair, e te vejo de olhar vazio cravado não sei em quê; essas olheiras fundas que não te desaparecem nem que durmas um dia inteiro; essas rugas, antes da idade delas, que vão da testa à junção dos lábios, outrora vermelhos e sensuais, cujos beijos eram o onírico despertar do desejo; esses teus seios caídos e mirrados, antes redondos e firmes, onde aplaquei os arrebatamentos das noites de excessos; esse teu corpo vibrátil mas sempre pudico, abandonado ao cansaço da satisfação – quando recordo tudo isso não consigo encolher as lágrimas.

   Não sei o que queres de mim, diga ou faça. Ficas calada e quieta, como se eu não te pertencesse, como se tu não me pertencesses, mas eu pertenço-te, pertencemo-nos, não sou do teu sangue, mas sou de ti e teu porque fui de ti e teu na luxúria dos corpos, na franqueza da convivência, que é sempre o desnudar recíproco de tudo o que é, no mais íntimo, nosso. Sessenta e cinco anos dão para criar filhos e netos, para se ser feliz com eles novos e não adormecer a pensar neles, mais velhos, enquanto não chegam a casa. Em quarenta anos de comunhão já não há segredos nem originalidades, tudo se conhece de nós e muito dos outros, tudo foi dito. Monossílabas sons, alguns entendo-os porque uma vida inteira dá para perceber até o imperceptível; mas eu queria que te explicasses, porque era importante conhecer essa tua nova vida, o que se passa dentro de ti, o que sentes, se ainda tens consciência e desejo, se ainda eras capaz de recordar a brasa da nossa paixão, quando lá fora nada interessava, e só na nossa solidão preenchida, no nosso egoísmo compartilhado, nascia o amor, a insaciabilidade, o esquecimento.  Era indispensável que me demonstrasses o que aconteceu ao teu cérebro, à tua alma, aos teus nervos, à tua genica que, de tão grande, me confundia, por vezes, naquilo que eu julgava ser uma fuga de ti. Assim, queda e muda, de quando em quando um esgar, que acho de sofrimento ou de repulsa, sem uma reacção ao meu aperto de mãos, sem um esboço de vontade; assim ao teu lado, parece que não tenho ninguém, que vivo só na companhia de uma defunta por enterrar, um isolamento duplo, que já não sei se estou sozinho ou acompanhado.

   Quem diria, quando nos conhecemos, que uma coisa destas te (nos) iria acontecer! A medicina diz que não tem cura para ti. Vais, então até o coração (ou o cérebro) parar, levar esta vida vegetativa, sem te aperceberes de nada, de quando te dou os comprimidos, a sopa passada ou o leite por um biberão, como quando os filhos eram bebés, sem saberes quem é a enfermeira que me vem ajudar e ensinar a lavar-te, a mudar a algália? Será que não quero que morras? Tenho medo que apodreças, cries pústulas, e o teu espírito fuja pela janela de Agosto? Umas vezes, quando, cavalo enfreado, o desespero me toma, tenho ganas de te deixar, nunca mais ver essa tua cara de esquife, de fatalidade, esse rosto que foi tão belo e, agora, um desenho de mímica. Mas não fujo, lembro-me que podia ser eu no teu lugar, e tu, tenho a certeza, nunca me abandonarias. Para lá de tudo, o nosso amor não merece nenhum abandono, nasceu da atracção fulminante do nosso olhar, consubstanciou-se na posse da carne e na mistura do sangue; é tão forte que, mesmo quando não existirmos, havemos – almas invisíveis – de voar sobre a terra, e os que ficarem saberão que nenhuma memória se sepulta. De noite, quando me deito, apetece-me acordar-te; acaricio as tuas coxas, a tua púbis, subo ao teu ventre, aos teus seios, e é como se um cadáver estivesse a meu lado, só a quentura me diz que ainda existes; arrepio-me de ainda te cobiçar, querer possuir-te até ao fundo de mim, de nós, igual àquelas horas em que, loucamente, nos esmagávamos na sofreguidão. Não te troco nem me lembra de o pensar, falta-me a coragem de te substituir. Para onde foi aquela voracidade de viver que me ajudava a disfarçar os instantes de incerteza? Ver-te de olhos brancos, da côr da tua pele, sem um clarão, um lampejo, breve que seja, um sinal de presença partilhada, é um castigo sem culpa que me estremece de revolta. 

   Lembro-me de quando dávamos banho aos filhos ou íamos a correr com eles para o médico, mal qualquer tosse ou febre nos inquietava o sono ou o instinto. E recordo, muitas vezes, nestas alturas, não sei por que absurda  associação de ideias, quando te vi pela primeira vez! Tinhas umas covinhas na cara, uns olhos de Primavera e um riso de Estio. Escrevia-te cartas incendiadas, chamava-te amorzinho e boneca das minhas brincadeiras. Como passa e se transforma a vida! A porteira do colégio, medrosa, entreabria a porta com um sorriso de adorável cumplicidade, pegava no envelope e dizia-me que era a última vez. Mulher corajosa e amorável, que arriscava, aos olhos tentaculares das freiras, o seu emprego, como se aquele amor clandestino também fosse dela ou imaginasse um semelhante. Nas tardes de domingo seguia-te os passos aonde te levavam as vestes negras. Rias-te às escondidas, tapando a boca com as mãos, a Manuela a dar-te cotoveladas, eu a mandar-te recados pelos olhos, e tu encolhias os ombros, desenhavas um coração com os dedos e « Amo-te » com os lábios. Meu Deus!, como se trituram sonhos, se desfazem previsões! Olho as paredes, e apetece-me deitar fora as fotografias em que estamos, esmagá-las sob os meus pés, queimá-las na lareira, arrasar as nossas lembranças, para que nada reste do antigo e que me ofende quando o comparo à idade de hoje. Nem quando te vêm visitar e me misturo, nesse intervalo, no movimento das ruas para não me desabituar do Mundo, te esqueço. És um castigo que não merecia, ainda menos tu, mas és esse castigo que me interroga a ideia de Deus, embora não consiga apagá-la numa certeza, ao ponto de não suportar os sinos das missas domingueiras e ter vontade de mudar de casa para o meio de um monte só com pedras para esmurrar, e ouvir, ao longe, num eco sem fim,  os berros que engulo neste sexto andar. E aí chorar bem alto as lágrimas de raiva, de desgosto, de porquê a mim?, de injustiça sentida como uma ingratidão sem nome. Será possível, meu amor, que te tenha acontecido uma coisa destas, a ti, que foste o sol da minha vida, o corpo do meu ( do nosso ) prazer, a razão de todas as manhãs te deixar com vontade de regressar depressa, de te telefonar duas e mais vezes ao dia com o chefe a perguntar-me se tinha alguma amante, o pessoal a rir-se quando eu dizia que era a minha mulher.

   Como aconteceu isto? Ignorámos, durante anos, que a morte tem o privilégio da impunidade e a vida se sujeita a todas as arbitrariedades julgadoras; que a desfilada dos anos aniquila a espontaneidade  e cimenta a rotina dos silêncios onde mergulham as saudades do que nunca fomos. Não tínhamos à volta, nem em nós, a gelatina da mistificação, conhecíamos as agruras alheias, mas não as víamos na vizinhança dos nossos passos.  Afinal, chegaram, quando nunca as esperávamos.  Já não as conheces; eu, como escolhido, vou ter  que  aprender a fingir que as divido contigo. Quero-te útil até acabares. Vamos, então meu amor, ser vizinhos até ao fim.
- M. Nogueira Borges*, Portugal, 26/2/2010.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em Adobe Photoshop e PhotoScape e poderá ser ampliada clicando nela com o mouse/rato.

7/07/10

O REFORMADO

(Clique na imagem para ampliar)

Silveira, durante toda a sua vida de trabalhador bancário, nunca recusou um serviço ou um lugar. Assim, não se importou de mudar de terra, vendo a família só aos fins-de-semana, para ocupar a gerência de um Balcão de província. Fez a sua carreira com esforço, sem contabilizar horários, nunca discutindo tarefas, embora, muitas vezes, se achasse mal recompensado. Não se queixava. Ele é que escolhera.

Desmobilizado, quando do regresso de Angola, ainda voltou a Direito para fazer algumas cadeiras ao abrigo do estatuto dos ex-militares. Depois de um recomeço fulgurante que lhe consentiu os maiores entusiasmos, desistiu ao segundo chumbo de Obrigações, incapaz de suprir a ausência das aulas e dos pormenores que só a frequência daquelas dariam já que, não referidas nas sebentas, surpreendia-se sempre com o tamanho da sua ignorância de assuntos que nunca ouvira ou lera. Confundia-o, também, a bagunça contestatária, as constantes alterações de datas que o obrigavam, em vão, a faltar ao emprego e que a sua rotina militar de trinta e nove meses, feita de obediência indiscutível encarava mal. Aquilo já não lhe dizia respeito... Vira morrer e matara; estava cansado para, agora, se meter em guerras de berros. Soavam-lhe a arrufos de bem instalados, heroísmos intelectualizados, até ofensivos, comparados com os meses que vivera nos matos da Lunda.

Após umas experiências avulsas em Editoras e Agências de Publicidade, candidatou-se a vários Bancos que, naquela época, era um emprego seguro e com estirpe social. O primeiro a chamá-lo para os testes psicotécnicos admitiu-o, num fim de Verão, ainda o 25 de Abril estava longe. Profissionalmente estável e eufórico pela febre bolsista da Primavera Marcelista, Silveira ganhou dinheiro e o coração da Celeste que, numa Seguradora, começara a juntar para o bolo do casamento. Se algumas dúvidas ainda lhe restavam, elas dissiparam-se: perdia, definitivamente, a esperança de acabar o Curso interrompido pela convocatória militar.

Nascidos dois filhos com intervalo de um ano como se tivessem pressa de despachar a descendência, os anos passaram-se no desvelo da sua criação que culminou com as formaturas no Curso que ele nunca terminaria. Os filhos vingaram-no.

Quando apareceram os netos, fizeram contas à vida e, vendo-a mais curta, decidiram que era a altura de lhes dedicar a segunda paternidade. A Celeste, aproveitando a maré dos novos conceitos de gestão, para quem um trabalhador não passa de um dígito, antecipou a reforma para cuidar deles, em vez de os ver depositados, todas as manhãs, ainda ensonados, num qualquer infantário. Passou, então, a ser só ele a levantar-se nas madrugadas de segunda feira, com o sol ainda a dormir, de tempo espremido para a viagem até à Agência distante. Custava-lhe, no Inverno, aquela chuva enovelada na escuridão fria, sempre com o credo na boca pelo nevoeiro ou o gelo da estrada. As noites na residencial, então, sem o aconchego das suas coisas e da sua gente, eram quase irascíveis. Foram anos em que – quantas vezes! - pensou, também, reformar-se para ficar no remanso com o chilreio infantil a preencher o apartamento. Afastava a ideia, lembrando-se do seu velho Pai: «Um homem só se reforma quando morre!»

À Agência todos os dias lhe chegavam directivas a traçar objectivos de negócio. Com os outros dois colegas sempre ocupados, um na especificidade da Caixa e o outro no expediente normal, Silveira passava muitas horas no exterior a angariar novos clientes e visitando os antigos com propostas de aplicações financeiras. Nunca se retirava antes das oito, ocupado no trato da papelada administrativa empilhada no tampo da secretária e pondo a conversa em dia com a Celeste em telefonemas que, em alguns meses, lhe preocupavam o plafond autorizado. Sem pressa de sair - ninguém o esperava -, verdade se diga, contudo, que começava a sentir-se injustiçado. No Café da Vila, praticava algumas relações públicas que lhe granjeavam a simpatia do meio e a permanência de contas com bons saldos médios. Sentia mais a falta da família do que a abundância do trabalho. O vai e vem semanal enleava-o. Estava na hora de solicitar à hierarquia um regresso às origens, à certeza de sair de manhã e voltar ao fim da tarde, aquela rotina dos gestos e das vozes, o aconchego da noite com o corpo da mulher a aquecer o seu, sem fazer cálculos para o ajuste do fim de semana. Mal lhe soaram aos ouvidos, ou lhe caíram sob os olhos, os primeiros sinais de racionalização de custos, emagrecimento do pessoal, rejuvenescimento de quadros e outros quejandos na moda dos recursos humanos, passou a prestar mais atenção ao espelho para ver se as rugas o englobariam no rol dos dispensáveis. Não precisou de muito tempo - nunca dando a entendê-lo - para perceber que o seu dia estava prestes a chegar. Feitos trinta e cinco anos de serviço, excluindo mesmo o tempo a duplicar pela campanha africana, convidaram-no, entre encómios que lhe pareciam lisonjas interesseiras, se não quereria ir para o descanso. Não, ele não queria descanso, mas, continuar a trabalhar na terra onde estavam as suas companhias e posterioridades. Sentia-se credor desse desejo, justificado pela devotada dedicação profissional e pela humana justeza da sua razão. Fez ver isso às insinuações que lhe chegavam pelo telefone ou pelos convites sorridentes, com muitas batidelas nas costas, quando se deslocava à Sede, ninguém lhe garantindo a satisfação pretendida, porque «bem vê, com a reorganização em curso, muito difícil, a breve prazo, anuirmos ao seu pedido...». Sentia nessas ocasiões um adormecimento de desilusão, um «para que andei eu a sacrificar-me tanto...».

Deixou passar uns meses e negociou a reforma para o fim do Verão. Os foguetes do Ano Novo seriam o anúncio da sua despedida, amarga e revoltada. Mais que revolta, a constatação de que pouco lhe valera o vestir da camisola. Julgava-se, aos sessenta anos, amadurecido e disponível, ainda, para continuar. Estava no ponto ideal da cozedura, nem rijo nem mole, eficaz nas decisões e maleável no trato. Atingira o patamar do equilíbrio em que se é aceite pelo respeito profissional e pela experiência humana; ganhara a endurance cujo melhor retrato é o auto-domínio ao disparate, às pressões e às nervuras emocionais. Mandando-o porta fora, era como se interrompessem a história de uma vida ainda útil. Haviam-lhe comido a carne e como os ossos, irremediavelmente, já tinham prazo, antes que se quebrassem, davam-lhe o destino dos electrodomésticos fora de validade.

Apesar de tudo, nos primeiros tempos, inebriou-se na disponibilidade do tempo e da vontade. Passeou o que pôde – concretizou, finalmente, o sonho de conhecer Paris, onde passou oito dias estonteantes, regressando com a sensação de não ter saciado nem uma décima da sua curiosidade -, leu, sofregamente, os livros tantos anos adiados – até arranjou coragem para Saramago - e, em muitas soalheiras manhãs de sábado – detestava o domingo para passear – ia com os netos para o parque da cidade mostrarlhes os «patinhos no lago», fiscalizando-lhes as bicicletas com rodas de apoio. Deu-se à excentricidade culinária, especializando-se num bacalhau assado no forno que rotulou de Bacalhau à Silveira. Ao princípio, guiava-se pelas revistas do Chefe Silva que a Mulher esquecera numa gaveta, mas, depois, fiava-se na sua fantasia que recriava com especiarias que rebuscava nas prateleiras do Continente. Arranjou, contudo, algumas guerras com a Celeste, pois incomodava-se, seriamente, quando ela, feita sabichona, lhe chamava a atenção para alguns destemperos. Chegou a ir ao futebol para se certificar da diferença de quando o via pela televisão, os seus sons e tons, a histeria das claques, o bruá da multidão na eminência dos golos e o estoiro orgástico quando aqueles se concretizavam.

Estranhamente, assim como de um dia para o outro, começou a acordar mal disposto e cansado, a pensar no que iria fazer para se ocupar. Sentia-se desamparado, longe dos ruídos e dos cheiros da Agência. Faltava-lhe o imprevisto dum telefonema atribulado, suplicando-lhe pressas de financiamento; aquele poder de influenciar fundos sempre balizados nas regras estabelecidas que o escudavam de remorsos nas recusas obrigatórias.
Continua...
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog Escritos do Douro. Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

2/12/11

OS FRONTEIRÓMETROS - 3


OS FRONTEIRÓMETROS - 1
OS FRONTEIRÓMETROS - 2
Continuação:

Os risos encolhidos explodiram como champanhe, mas logo o Boaventura cortou:

- Ó pá vocês não se riam nem saiam da sala, porra! Se os tipos vêem a malta a rir-se fode-se tudo!

Pouco depois, tal uma carga de cavalaria, ouviu-se um tropel de botas a descer.

- Lá vêm as cavalgaduras! – disse o Bandeira.
- Formem em fila! - mandou o Boaventura. – Para começo – olhando o relógio – não está mal! Atendendo a isso, não há flexões para ninguém. Vamos, então, dar início à vossa prova de aptidão. O nosso Aspirante Ornelas é o encarregado de orientar o primeiro teste.

Este, armado da cara mais séria que pôde arranjar, plantou-se diante deles:

- Atenção! Firme! Sé...ópe! Dá licença, meu Tenente? – fazendo tremer o braço numa continência espectacular.
- Pode mandar! No fim da aula apresentem-se neste mesmo local – ordenou o Boaventura.
- Esquerda... vooolver! Passo de corrida, em frente... marche!

Passados uns minutos, o grupo abandonou a sala, atravessou a Parada e foi assistir à sessão, disfarçado no morro sobranceiro ao campo de obstáculos, atrás de um renque arbustivo, num esforço incrível para recolher os risos com os lábios e as mãos. O Ornelas parecia que estava a dar instrução ao seu pelotão: mandou-os correr em círculo, intervalando com flexões em frente, abdominais e saltos de canguru, rastejar sob o arame farpado, saltar a vala, a paliçada e o galho, subir às cordas, ficando de fora o pórtico. Tudo num silêncio só entrecortado pelo farfalhar dos corpos e a voz autoritária daquele. Uns soldados que passavam, estranhos pelo que ouviam àquela hora, aproximavam-se curiosos, mas, sobressaltados, viram o Bandeira a afastá-los. Suados, cheios de terra e a bufar, troaram no átrio. Alguns tinham o ar de quem não cria no que lhes estava a acontecer.

- Então, nossos fronteiros, gostaram da instrução que o nosso Aspirante vos deu? Sim ou não?
- Sim, meu Tenente...
- Mais alto! Sim ou não?
- Siiim, meu Tenente!
- Porra!, parece que estão a morrer... Um caçador especial grita sempre alto, com genica e alegria! GOSTARAM OU NÃO?!
- SIIIIMMM, MEU TENENTE!!!
- Óptimo! Muito bem! Gosto de vos ver felizes... Nosso Aspirante Alves dê um passo em frente. Vou-lhe dar – entregando-a - uma ordem de patrulha que todos devem cumprir sem uma falha. Tem anexado um croqui para não haver dúvidas acerca do vosso objectivo. Nem precisam de bússola... Quero avisá-los de que até à Casa Amarela, onde se acoita o inimigo, temos informações de que há bandos terroristas dispersos que vos podem surpreender. Agora vão à Companhia da Formação, onde, na Caserna 8, o Cabo quarteleiro já está avisado para vos fornecer uma FBP a cada um. Bem vão precisar delas... Podem ir e, nunca antes nem nunca depois da meia noite, devem-se apresentar com a missão cumprida. Na Porta de Armas já estão avisados da vossa missão, o nosso Aspirante Alves só tem que comunicar ao nosso Sargento da Guarda. Sigam...

Depois daqueles transporem os portões, uns deixaram-se ficar, entretidos com a televisão, a leitura, o bilhar ou a sueca, alguns foram ao Cinema e o João, o Altino e o Ãngelo, passada uma boa hora, meteram-se no carro para irem ver o movimento dos praxados, passando-os quando eles se encontravam a conversar, sentados nuns pinocos longe, ainda, da Casa Amarela...

Quando a patrulha regressou, à hora indicada, mais minuto menos minuto, já todos estavam a postos, ansiosos pelo bródio que se seguiria.

- Então nosso Aspirante, como decorreu a operação? – interrogou o Boaventura.
- Meu Tenente, mal saímos do Quartel, logo a seguir à curva do muro, como ouvimos uns ruídos esquisitos, resolvemos, para nos precavermos, montar a segurança - explicou o Alves, todo gestos.
- E depois? O que viram?
- Verificámos, afinal, que eram pessoas pacíficas, moradores na zona...
- E como é que souberam? Não me diga que são bruxos?!...
- Falavam de futebol e...
- Mas que perigo, nosso Aspirante! Mas que perigo! Falar de futebol e logo à noite! Não pensou que isso podia ser uma armadilha? Então não sabe que o futebol é o ópio do povo? Vocês podiam ter sido anestesiados como criancinhas! Mas diga, diga...
- Depois continuamos a marcha - o Alves molhava os lábios para contrariar a secura da boca -, sempre guiados pelo croqui, até que, num morro, voltamos a montar a segurança para observação do terreno que ficava em baixo. Estava tudo calmo, era já numa zona desabitada...
- E bateram esse terreno, claro...
- Não vimos ninguém...
- Ai queriam que o inimigo estivesse à vossa vista, a dizer estamos aqui, fodam-nos! Mas que merda de caçadores são vocês?! Tinham que ir lá, procurá-los como furões à caça de coelhos! Mas para isso é preciso ter os colhões no sítio!...
- Mas ó meu Tenente...
- Mas ó meu Tenente o caralho!... Continue, continue...
- Deixámos - nos estar ainda um bocado a ver se havia algum movimento suspeito...
- As folhas a mexer...
- Algum vulto, algum...
- Que viesse ao vosso encontro?!... Meu Deus... Avance, nosso Aspirante, avance...
- Não vimos nada e ...
- Tiveram sorte não levarem umas fogachadas no cu...
- Tinha sempre três homens a caminhar de costas, de frente para o caminho...
- Esses, então, levavam-nas nos tomates...
- Meu Tenente, olhe que a gente...
- Olhe uma merda!... - Continue lá com a descrição...
- Quando chegámos ao cruzamento...
- Montaram a segurança...

Começava a ser difícil conter os risos. Eles ameaçavam estralejar como trovoada em noite abafada de Verão.

- O sítio era perigoso e, antes de o atravessarmos – prosseguiu o Alves, mais confiante e a entrar bem no papel -, tínhamos que ver bem como o fazer. Como mandam as regras, montámos, de facto, a segurança. Dividi a patrulha em dois grupos, um para a esquerda, outro para o direita, e atravessámos, depois, em pontos mais afastados do cruzamento. Prosseguimos a marcha e, como o pessoal estava já um pouco cansado, resolvemos descansar um pouco e montámos a segurança...
- Parou nosso Aspirante! Chega! Porra!, ainda não chegaram a meio do objectivo e quantas vezes já montaram a segurança? Andam cem metros e montam a segurança, andam mais duzentos e montam a segurança.... Foda-se! Tem que me apresentar essa PUTA da SEGURANÇA que eu, também, a quero montar!... Acabaram de chegar e já se fartaram de montar!... Vocês devem ter um tesão do caralho!...Se as catraias sabem disso não vos largam a Porta de Armas!... O que vocês precisavam era – virando-se para o aparelho de televisão – fazer a patrulha no lugar onde aqueles galgos estão a correr atrás da lebre... Sabe como se chama aquilo?...
- É uma corrida de galgos...
- Que novidade! Queria que fosse de coelhos?!... Como se chama o recinto onde eles estão a correr?... - Meu Tenente, aquilo – olhando fixamente para o televisor – é um pavilhão...
- E como se chama?...
- ...
- Diga-me uma coisa, se fossem cavalos a correr como é que lhe chamava?...
- Hipódromo...
- Então, e galgos?!...
- Não sei meu Tenente...
- Galgómetro, nosso Aspirante!... Galgómetro!...

As gargalhadas, já impossíveis de reprimir, soltaram-se como uma prateleira de cristal estilhaçada, alguns agarrando-se às barrigas, as lágrimas deslizando nas faces por um sufoco há muito controlado. Trocaram-se abraços, esvaziou-se uma garrafa de Logan, discutiram-se as peripécias da brincadeira e conheceram-se origens por entre risos intermináveis.

Ia adiantada a hora quando o João, erguendo um copo, gritou: «Malta! A partir de agora somos os fronteirómetros de Chaves!»
Final.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "Escritos do Douro". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.